Conhecido pelas exuberantes praias e, recentemente, também em função da ocupação humana desenfreada, o município de Angra dos Reis (RJ) sofre desde junho com um novo inimigo: o decreto 41.921/09. Assinado pelo governador Sérgio Cabral, ele autoriza construções em zonas antes não edificáveis da Área de Proteção Ambiental (APA) dos Tamoios, responsável pela manutenção do equilíbrio ecológico em 21 mil hectares espalhados no continente e por mais de 90 ilhas. O problema é que nem sequer o conselho da unidade de conservação foi questionado sobre o texto antes de sua publicação. O grupo, agora, tenta suspendê-lo.
Criada por decreto em 1986, a APA só começou a existir, de fato, oito anos depois, quando o Plano Diretor que rege as normas de uso e ocupação do solo foi concebido. Ele prevê quatro categorias em seu interior, divididas de acordo com a importância dos terrenos para a conservação e possibilidade de restauração do habitat de espécies da fauna e flora: Zona de Vida Silvestre (ZVS), Zona de Ocupação Controlada (ZOC), Zona de Influência Ecológica (ZIE) e Zona de Conservação de Vida Silvestre (ZCVS).
É justamente esta última área que, segundo a determinação de Cabral, pode receber os tratores e materiais de construção. O seu artigo 3º, por exemplo, indica que serão permitidas as construções de residências unifamiliares e empreendimentos turísticos em locais que tenham sido comprovadamente degradados entre 1994 e 2005. Cada um deles, no entanto, não pode passar de 10% do espaço total compreendido pelo terreno. “Os 90% restantes serão objeto de conservação e recuperação, utilizando-se somente espécies nativas típicas do ambiente litorâneo da região, devendo isto constar como restrição da respectiva licença ambiental”, finaliza o trecho.
De acordo com Alexandre Oliveira, presidente do Comitê de Defesa da Ilha Grande (Codig), o decreto não deixa claro se a porcentagem que pode ser edificada se refere ao terreno total da ZCVS, ou da propriedade do pleiteante. E, pior, não indica quais critérios serão utilizados para definir uma área degradada. “Estas ZCVS’s (há diversas delas no interior da unidade) não são caracterizadas pela absoluta natureza, mas têm grande potencial de regeneração e, por isso, o decreto original declarou se tratar de uma zona não edificante. Apenas as propriedades já ali existentes poderiam aumentar em até 50% a sua área construída. Ou seja, quem tinha uma casa dentro delas não foi prejudicado com a criação da APA dos Tamoios”, afirma.
Por enquanto, o cenário mudou. Apesar da necessidade de proteção comprovada, o governador Sérgio Cabral não hesitou em deslizar a caneta no documento desconhecido pelos servidores que atuam diretamente na unidade de conservação atingida. Monica Nemer, chefe da APA Tamoios, explica que o conselho consultivo estava em pleno processo de discussão sobre os alicerces do Plano de Manejo que substituiria o Plano Diretor de 94 quando foram pegos de surpresa com a notícia do decreto 41.921.
Para Inea, problema estava resolvido
“Estávamos na rua com o projeto para entrar em editais e conseguir recursos. A ideia de fazer o zoneamento, em princípio pela Ilha Grande, começou no ano passado. Houve várias visitas técnicas. Mas, agora, tivemos de paralisar nossas ações para lutar e inviabilizar o decreto. As ZCVS’s, juntas, são maiores do que a Ilha da Jipóia”, diz. Para Daniel Toffoli, gerente das unidades de conservação de uso sustentável do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), a disposição em fazer um Plano de Manejo é legítima e continuará a ser apoiada pelo órgão. “Já se passaram quinze anos desde 1994 e a orientação é que este documento seja revisto a cada cinco anos”, assegura.
De acordo com André Ilha, diretor de Biodiversidade do Inea, o órgão assumiu o erro por ter divulgado a norma sem consulta prévia. Por isso, logo em seguida, houve longa reunião com uma parcela representativa da APA Tamoios, da qual participaram, além do próprio Ilha, a secretária de Estado do Ambiente, Marilene Ramos, e o presidente do Inea, Luis Firmino. “Combinamos a suspensão de todo e qualquer licenciamento com base no decreto e sugerimos discutir sua melhora. Concordo que há equívocos na redação do texto, e pedimos por ajuda”, diz.
André explica que, embora o projeto de revisão do Plano de Manejo de Tamoios tenha sido aprovado na Câmara de Compensação Ambiental do Rio de Janeiro, houve atraso na sua confecção (assim como na de outras atividades) em virtude dos recursos do Fundo da Mata Atlântica, que demoraram a sair. Por isso, era preciso dar vazão em processos de licenciamento na região, alguns, inclusive, sob suspeita de ilegalidade descobertos da Operação Cartas Marcadas. “Mas enviamos técnicos dos mais competentes para ajudar o conselho consultivo da APA a propor mudanças. Achei que o assunto estava equacionado. Infelizmente, no entanto, eles partiram para uma linha do tudo ou nada, de revogação. Isto será um prejuízo para todos”, continua.
Até agora, realmente, nenhuma permissão para construções foi liberada, mas o conselho da APA pediu a suspensão definitiva de qualquer processo relativo. Alguns dispositivos legais já foram acionados para reverter o quadro. Os procuradores da República lotados em Angra dos Reis, Fernando Amorim Lavieri e Daniela Masset Vaz, enviaram, no dia 3 de setembro, uma petição de quinze páginas ao Procurador Geral da República propondo Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra o artigo 3º da instrução assinada por Cabral. O argumento utilizado parece forte o suficiente: em seu capítulo sobre meio ambiente, a Constituição Brasileira estipulou regras para a criação, supressão ou alteração de terrenos preservados.
Origem incerta
É o inciso III, do 1º parágrafo referente ao artigo 225, que rege os limites. “Definir, em todas as unidades da federação, espaços territoriais especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa os atributos que justifiquem sua proteção”. Procurado pela reportagem, Lavieri não pôde atender, mas sua assessoria de comunicação afirmou que ainda não foi preciso entrar com recurso contra permissões de uso das ZCVS, já que nenhuma licença foi autorizada.
O deputado estadual Alessandro Molon (PT-RJ) também encaminhou um projeto de decreto à Câmara para derrubar o 41.921. “Ao modificar a proteção da APA e reduzi-la, o governador usurpou a atribuição da Assembléia Legislativa. Só ela pode tomar esta decisão, segundo a Constituição, e não um decreto do chefe do Poder Executivo. Vejo muitos problemas, mas este é o principal”, afirmou a’O Eco. Em trâmite na casa, a matéria, encaminhada no início de outubro, aguarda votação.
Enquanto isso, a população local e os centros de pesquisa fazem o que podem para conter o avanço da especulação imobiliária na APA dos Tamoios. Em carta assinada por Codig, Sape (Sociedade Angrense de Proteção Ecológica) e Isabi (Instituto Socioambiental da Baía de Ilha Grande), as entidades sem fins lucrativos locais mostram seu “profundo descontentamento” pela decisão do governador de não consultar o conselho consultivo da unidade.
Em outro manifesto de repúdio, agora em parceria com o Fórum Brasileiro de ONG’s e Movimentos Sociais (FBOMS) e Assembléia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente (APEDEMA), as organizações lembram que a regulamentação em análise é um “prêmio àqueles que têm dinheiro e reforça a tese do ‘fato consumado’, onde o degradador age na certeza da impunidade e de que mais cedo ou mais tarde as coisas (…) se ajeitam”. No manifesto, dizem ainda que usar 2005 como o ano limite para a anistia estimula novos desmatamentos, já que será complicado provar a sua data. “Dessa forma, o governador Sérgio Cabral, numa demonstração de completo desrespeito com a legislação e a preservação ambiental, livra dezenas de infratores que foram denunciados na “operação cartas marcadas””, finaliza o documento.
Ainda não se sabe de onde surgiu a ideia (ou pressão) para que o decreto fosse redigido e editado tão rapidamente pelo governador do Rio de Janeiro. André Ilha diz, porém, que as suas bases técnicas são baseadas nos exemplos de outras APAs, como as de Maricá e Massambaba. No mar de possibilidades, a única certeza é a de que, por enquanto, a área de Proteção Ambiental dos Tamoios não está mais tão preservada assim.
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FONTE: O Eco
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