Caminhos para enfrentar o Frankenstein urbano
por Washington Novaes*
Muitos leitores deste jornal devem ter tomado um susto na quinta-feira da semana passada ao lerem a mais do que contundente entrevista do respeitado arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, dono de um currículo admirável, que inclui, entre muitas criações, a participação no projeto de construção de Brasília, a rede de hospitais Sarah e, com Darcy Ribeiro, a criação do conceito dos centros de educação integral, os Cieps, para manter o aluno na escola durante todo o dia, fornecer alimentação, assistência médica e psicológica, esporte e muito mais – além de um sistema de ensino exemplar.
Lelé foi conciso e contundente na entrevista. “Cidades como São Paulo são um grande Frankenstein”, disse ele, apontando o “descontrole geral”, a arquitetura “correndo atrás da imagem”, com os arquitetos “a reboque dessas pressões”.
“Todo mundo quer morar onde convém e o mercado se aproveita disso para fazer um adensamento descomprometido com a cidade.” Em sua opinião, “não há mais como planejar”, até porque “as cidades estão se desintegrando” e “não oferecem soluções”. A seu ver, “o arquiteto deveria ser o (médico) clínico da cidade; no entanto, não tem uma visão global e as obras vivem um Frankenstein. A cidade é o maior Frankenstein de todos”.
Assustador o diagnóstico. Mas pode piorar se se lembrar que só nos dois primeiros meses do ano mais de 500 mil veículos saíram das fábricas para as ruas (Estado, 7/3) e que o Brasil já é o quarto maior mercado mundial. Que os espaços públicos urbanos, já congestionados ao extremo, só tendem a piorar com o agravamento das inundações – mais frequentes, mais intensas, mais duradouras. Cada enchente causa prejuízo de até R$ 1 milhão e há 749 pontos de alagamento já catalogados, diz estudo do professor Eduardo A. Haddad, da Faculdade de Economia da USP (Agência Fapesp, 15/3). Chuvas com mais de 80 milímetros eram raras; mas só na primeira década deste século foram nove. A Prefeitura promete quatro novos piscinões e enterrar a fiação dos semáforos para que não se apaguem durante os temporais (10/3). Mas como vai fazer, se toda a fiação elétrica em São Paulo chega a 38 mil quilômetros (só há uns 3 mil km enterrados em Higienópolis e imediações) e o custo seria de R$ 100 bilhões? Nova York tem mais de 150 mil km sepultados; a Alemanha, em três anos, passou a parte enterrada de 4,3% para 75%; a Grã-Bretanha, de 1,4% para 81% (Folha de S.Paulo, 24/2).
Não são as únicas soluções urbanas. No pedágio urbano de Londres o motorista tem de pagar mais de R$ 30 por dia para trafegar na área sob controle, e com isso a circulação ali caiu 25% e aumentou a velocidade dos ônibus. A prefeitura vai instalar 1.300 pontos de recarga de veículos elétricos e reduzir em 40% a emissão, por eles, de carbono. Já há muitos pontos de carros compartilhados, onde o usuário paga por hora e divide o custo com quem quiser. Mas quem quer ouvir falar dessas coisas por aqui e se arriscar a perder os votos dos adversários da proposta – como foi o caso da necessária taxa do lixo, depois renegada pelos criadores e revogada pelos sucessores -, embora seja a fórmula que tem dado certo em toda a Europa?
Que diria, então, de soluções mais radicais, como a da cidade de Drachten, na Holanda, que, com seus 50 mil habitantes, instituiu o espaço urbano sem semáforos, placas de sinalização, quebra-molas, meio-fio, lombadas elétricas, etc., segundo Antenor Pinheiro, da ANTT (O Popular, 10/3). Um espaço compartilhado por pessoas, automóveis, ônibus e motos em baixa velocidade, bicicletas. Em absoluta paz e harmonia, sem acidentes desde 2003, quando foi implantado, apenas com discretos sinais que indicam a mão de direção. Uma ideia do engenheiro Hans Moderman, falecido em 2008, mas que pode ser replicada numa parte do espaço urbano, se for o caso, em qualquer cidade.
Na verdade, caminhos há. Basta consultar a legislação vigente para verificar o quanto o poder constituído deixa de cumprir – gerando e agravando dramas nas cidades. Um bom exemplo é o da legislação em vigor para novos empreendimentos, obrigatória para todos os Poderes e empreendedores, que, se executada, evitaria ou teria evitado a maior parte dos problemas. É o caso, por exemplo, das resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Qualquer administrador público, assim como os Tribunais de Contas da União, dos Estados ou dos municípios, deveria começar seu exame dos processos que lhe chegam à mão pela Resolução n.º 1, de 23/1/1986, que contém uma norma que impediria a execução da maioria das propostas. É o inciso I do artigo 5.º, que obriga o estudo do empreendimento a “contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto”. E isso vale para projetos urbanísticos com mais de cem hectares, aterros, rodovias, ferrovias, portos e terminais, oleodutos, gasodutos, emissários de esgotos, projetos agropecuários também com mais de cem hectares. Outras resoluções do Conama incluem o controle de ruídos de indústrias ou veículos e o controle da poluição do ar (que está no centro de uma polêmica paulistana).
Tão importante quanto é o artigo 6.ª dessa Resolução 1/86, que torna obrigatórias “as análises dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas (…), discriminando: os impactos positivos e negativos, diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais”. Esta última disposição, por exemplo, quantos benefícios poderia trazer a uma cidade, ajudando a evitar impactos cada vez mais danosos para seus habitantes?
O professor Filgueiras Lima tem razão em suas visões. Mas há como começar a enfrentar o Frankenstein se de fato quisermos.
* Washington Novaes é jornalista.
** Publicado originalmente no site O Estado de S. Paulo.
(O Estado de S. Paulo)
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