O retorno aos rios
por Rodrigo Martins*
O governo de São Paulo pretende iniciar, em junho, a construção da eclusa da Penha, no Rio Tietê. Ao custo estimado de 100 milhões de reais, a obra tornará navegável um trecho de 14 quilômetros do rio até São Miguel Paulista, na zona leste da capital. Hoje, o Tietê tem 41 quilômetros navegáveis, entre a Penha e o município de Santana de Parnaíba. A obra é considerada o passo inicial de um projeto muito maior e mais ambicioso: a criação de um hidroanel de 170 quilômetros ao redor da capital paulista. Além de transportar sedimentos de dragagem do próprio rio, a ideia é, no futuro, usar as águas para transportar as 18 mil toneladas de lixo produzidas diariamente na cidade.
A eclusa é uma obra de engenharia hidráulica que possibilita navegar em locais onde há desnível no leito do rio. Funciona como um “elevador aquático”: faz o barco subir ou descer, conforme o caso. “Temos a licença-prévia ambiental e só falta concluir o processo de licitação. As propostas já foram abertas”, afirma Casemiro Tércio Carvalho, diretor do Departamento Hidroviário do Estado de São Paulo. “Somente o que vamos economizar com o transporte de sedimentos dragados do próprio rio paga a eclusa em pouco tempo. Mas a ideia é ampliar o transporte de cargas públicas. Quando vencerem os contratos da prefeitura paulistana com os aterros sanitários, alguns deles com vigência de 20 anos, poderemos propor a criação de duas ou três estações que transformam lixo em energia próximas dos rios e reduzir a circulação de caminhões de lixo, melhorar o trânsito.”
Em 2011, o grupo Metrópole Fluvial, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, elaborou um estudo de viabilidade do hidroanel para o governo paulista. Para garantir a navegação no circuito entre os rios Tietê e Pinheiros e as represas Billings (zona sul e ABC) e Taiaçupeba (Suzano), serão necessárias 20 eclusas. Um canal artificial de 16 quilômetros precisará ser feito para ligar as duas represas, ideia inspirada na solução do Canal do Panamá, entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Um complexo desafio com custo total estimado em mais de 4 bilhões de reais, e que só deve ser concluído por volta de 2040.
“Não temos uma cultura de hidrovias urbanas no Brasil. O Rio Amazonas é naturalmente navegável de Quito, no Equador, a Belém do Pará. Em São Paulo, o cenário é outro. Os leitos maiores dos rios Tietê e Pinheiros foram aterrados, loteados e vendidos. Sobraram dois canais de esgoto a céu aberto, confinados por rodovias urbanas”, afirma o professor Alexandre Delijaicov, coordenador do estudo de viabilidade da FAU-USP. “As barreiras existentes aqui não são naturais, cataratas ou depressões. E sim obstáculos criados pelo homem, pela incompetência técnica de quem projetou esse desastre urbano. Agora, é impossível navegar por esses canais, estreitos e rasos, sem eclusas.”
Ao garantir a navegação dos rios metropolitanos, o arquiteto acredita que os benefícios serão muito maiores do que a redução de custos no transporte de cargas públicas e seu eventual impacto no trânsito. “Trabalhamos com o conceito de uso múltiplo das águas. A ideia é assegurar o abastecimento de água da população, garantir a irrigação do cinturão hortifrúti, que pretendemos resgatar, produzir energia e navegar. Só que tudo começa pela navegação. A primeira carga transportada serão os sedimentos de dragagem do próprio rio, materiais retirados no processo de desassoreamento e despoluição do Tietê.”
São Paulo já teve 4 mil quilômetros de rios e córregos. Hoje, menos de 400 quilômetros permanecem a céu aberto. Há menos de cem anos, riachos e corredeiras existiam no lugar de algumas das principais vias da capital. A Avenida 9 de Julho, por exemplo, era o Córrego do Saracura. Delijaicov lembra que boa parte dos rios paulistanos era navegável até a década de 1920, quando a prefeitura fazia o licenciamento de mais de 2 mil embarcações por ano. À época, o engenheiro Saturnino de Brito projetou a retificação do Tietê sem a construção das vias marginais. Os planos incluíam um parque com 25 quilômetros de extensão por 1 quilômetro de largura ao longo do rio.
“Seria o maior parque fluvial do mundo, seis vezes maior que o Central Park em Nova York. Um ambiente excelente para navegar, se divertir, morar perto”, afirma o professor da FAU-USP. “Só que acabou prevalecendo o projeto do engenheiro Prestes Maia, com seu Plano de Avenidas lançado em 1930. Ele estava encantado com os carros, a grande novidade tecnológica naquele momento, e destruiu o potencial hidroviário da cidade.”
Delijaicov defende a volta do espírito do projeto de Saturnino. Não será possível criar o gigantesco parque fluvial de 25 quilômetros, mas o professor prevê “a consolidação de um território com qualidade ambiental urbana nas orlas fluviais, que comporte infraestrutura, equipamentos públicos e habitação social”. Daí a ideia de estimular, também, o transporte de passageiros, criando um circuito turístico entre vários ecoportos, destinados à coleta de material reciclável, mas que também possam abrigar em seu cais feiras de trocas, bares e restaurantes. “A ideia é reviver o conceito dos boulevards, com grandes calçadas, espaço arborizado, um ponto de encontro, onde as pessoas se sintam bem.”
E como sentir-se bem às margens de um canal de esgoto a céu aberto, como o próprio especialista se refere ao Tietê? “Vai demorar tempo para recuperar o rio, é verdade. Mas tome o exemplo do lago do Parque do Ibirapuera. Ele se formou com o represamento de um córrego poluído. Suas águas ainda estão contaminadas e cheiram mal. Ninguém pode tomar banho ali, mas os casais de namorados adoraram admirá-lo do gramado. A vista é linda, não é mesmo? O canal de Saint-Martin, em Paris, foi feito pelo homem e é um dos principais cartões-postais da cidade.”
Um pouco mais cauteloso, o diretor do Departamento Hidroviário prefere concentrar o foco na navegação, sobretudo no “Y” formado pelo entroncamento dos rios Tietê e Pinheiros. “É esse trecho que concentra 70% das cargas que pretendemos transportar”, explica Carvalho. Nem por isso o governo pretende abrir mão do hidroanel. “É muito importante garantir a integração com as represas Billings e Taiaçupeba. Com um sistema eficiente de bombas, será possível levar água dos rios para as represas e melhorar o sistema de controle de enchentes. A eclusa da Penha é apenas o primeiro passo.”
* Rodrigo Martins é repórter da revista CartaCapital. Trabalhou como editor assistente do portal UOL e já escreveu para as revistas Foco Economia e Negócios, Sustenta!, Ensino Superior e Revista da Cultura, entre outras publicações. Em 2008 foi um dos vencedores do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.
A eclusa é uma obra de engenharia hidráulica que possibilita navegar em locais onde há desnível no leito do rio. Funciona como um “elevador aquático”: faz o barco subir ou descer, conforme o caso. “Temos a licença-prévia ambiental e só falta concluir o processo de licitação. As propostas já foram abertas”, afirma Casemiro Tércio Carvalho, diretor do Departamento Hidroviário do Estado de São Paulo. “Somente o que vamos economizar com o transporte de sedimentos dragados do próprio rio paga a eclusa em pouco tempo. Mas a ideia é ampliar o transporte de cargas públicas. Quando vencerem os contratos da prefeitura paulistana com os aterros sanitários, alguns deles com vigência de 20 anos, poderemos propor a criação de duas ou três estações que transformam lixo em energia próximas dos rios e reduzir a circulação de caminhões de lixo, melhorar o trânsito.”
Em 2011, o grupo Metrópole Fluvial, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, elaborou um estudo de viabilidade do hidroanel para o governo paulista. Para garantir a navegação no circuito entre os rios Tietê e Pinheiros e as represas Billings (zona sul e ABC) e Taiaçupeba (Suzano), serão necessárias 20 eclusas. Um canal artificial de 16 quilômetros precisará ser feito para ligar as duas represas, ideia inspirada na solução do Canal do Panamá, entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Um complexo desafio com custo total estimado em mais de 4 bilhões de reais, e que só deve ser concluído por volta de 2040.
“Não temos uma cultura de hidrovias urbanas no Brasil. O Rio Amazonas é naturalmente navegável de Quito, no Equador, a Belém do Pará. Em São Paulo, o cenário é outro. Os leitos maiores dos rios Tietê e Pinheiros foram aterrados, loteados e vendidos. Sobraram dois canais de esgoto a céu aberto, confinados por rodovias urbanas”, afirma o professor Alexandre Delijaicov, coordenador do estudo de viabilidade da FAU-USP. “As barreiras existentes aqui não são naturais, cataratas ou depressões. E sim obstáculos criados pelo homem, pela incompetência técnica de quem projetou esse desastre urbano. Agora, é impossível navegar por esses canais, estreitos e rasos, sem eclusas.”
Ao garantir a navegação dos rios metropolitanos, o arquiteto acredita que os benefícios serão muito maiores do que a redução de custos no transporte de cargas públicas e seu eventual impacto no trânsito. “Trabalhamos com o conceito de uso múltiplo das águas. A ideia é assegurar o abastecimento de água da população, garantir a irrigação do cinturão hortifrúti, que pretendemos resgatar, produzir energia e navegar. Só que tudo começa pela navegação. A primeira carga transportada serão os sedimentos de dragagem do próprio rio, materiais retirados no processo de desassoreamento e despoluição do Tietê.”
São Paulo já teve 4 mil quilômetros de rios e córregos. Hoje, menos de 400 quilômetros permanecem a céu aberto. Há menos de cem anos, riachos e corredeiras existiam no lugar de algumas das principais vias da capital. A Avenida 9 de Julho, por exemplo, era o Córrego do Saracura. Delijaicov lembra que boa parte dos rios paulistanos era navegável até a década de 1920, quando a prefeitura fazia o licenciamento de mais de 2 mil embarcações por ano. À época, o engenheiro Saturnino de Brito projetou a retificação do Tietê sem a construção das vias marginais. Os planos incluíam um parque com 25 quilômetros de extensão por 1 quilômetro de largura ao longo do rio.
“Seria o maior parque fluvial do mundo, seis vezes maior que o Central Park em Nova York. Um ambiente excelente para navegar, se divertir, morar perto”, afirma o professor da FAU-USP. “Só que acabou prevalecendo o projeto do engenheiro Prestes Maia, com seu Plano de Avenidas lançado em 1930. Ele estava encantado com os carros, a grande novidade tecnológica naquele momento, e destruiu o potencial hidroviário da cidade.”
Delijaicov defende a volta do espírito do projeto de Saturnino. Não será possível criar o gigantesco parque fluvial de 25 quilômetros, mas o professor prevê “a consolidação de um território com qualidade ambiental urbana nas orlas fluviais, que comporte infraestrutura, equipamentos públicos e habitação social”. Daí a ideia de estimular, também, o transporte de passageiros, criando um circuito turístico entre vários ecoportos, destinados à coleta de material reciclável, mas que também possam abrigar em seu cais feiras de trocas, bares e restaurantes. “A ideia é reviver o conceito dos boulevards, com grandes calçadas, espaço arborizado, um ponto de encontro, onde as pessoas se sintam bem.”
E como sentir-se bem às margens de um canal de esgoto a céu aberto, como o próprio especialista se refere ao Tietê? “Vai demorar tempo para recuperar o rio, é verdade. Mas tome o exemplo do lago do Parque do Ibirapuera. Ele se formou com o represamento de um córrego poluído. Suas águas ainda estão contaminadas e cheiram mal. Ninguém pode tomar banho ali, mas os casais de namorados adoraram admirá-lo do gramado. A vista é linda, não é mesmo? O canal de Saint-Martin, em Paris, foi feito pelo homem e é um dos principais cartões-postais da cidade.”
Um pouco mais cauteloso, o diretor do Departamento Hidroviário prefere concentrar o foco na navegação, sobretudo no “Y” formado pelo entroncamento dos rios Tietê e Pinheiros. “É esse trecho que concentra 70% das cargas que pretendemos transportar”, explica Carvalho. Nem por isso o governo pretende abrir mão do hidroanel. “É muito importante garantir a integração com as represas Billings e Taiaçupeba. Com um sistema eficiente de bombas, será possível levar água dos rios para as represas e melhorar o sistema de controle de enchentes. A eclusa da Penha é apenas o primeiro passo.”
* Rodrigo Martins é repórter da revista CartaCapital. Trabalhou como editor assistente do portal UOL e já escreveu para as revistas Foco Economia e Negócios, Sustenta!, Ensino Superior e Revista da Cultura, entre outras publicações. Em 2008 foi um dos vencedores do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.
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