cacique 199x300 Especial Demarcação: entenda as dificuldades do processo de regularização de terras indígenas
Ainda em 2012, cacique Damião Paridzané recebeu do MPF cópia de decisão judicial que determinava a retirada de não índios da Terra Maraiwãtsédé. Foto: Arquivo/MPF
A segunda matéria da série expõe as dificuldades que o processo de demarcação enfrenta, como resistência de setores econômicos e batalhas judiciais.
Um dos principais problemas que tornam lenta a regularização das terras indígenas é o fato de a terra ser, historicamente, uma fonte de poder econômico, político e social. O modelo de desenvolvimento econômico do país, que tem na agricultura, na pecuária extensiva e na exportação de mercadorias algumas de suas principais características, faz com que a demarcação das terras indígenas seja contestada por determinados setores da sociedade como entrave ao “progresso”, e não como o reconhecimento de direitos originários. Em geral, quanto às dificuldades para regularização, ou as terras já ocupadas por índios são alvo do interesse de terceiros (latifundiários, extrativistas, mineradores, responsáveis por grandes empreendimentos – como a construção de hidrelétricas –, etc.), ou aquelas reivindicadas pelos índios já estão em posse de não índios.
Um caso emblemático é o da terra indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante, no nordeste do Mato Grosso. Embora tenha levado quase 20 anos, o processo de regularização teve final feliz em janeiro de 2013.
Maraiwãtsédé foi declarada de ocupação tradicional indígena em 1993, por meio de uma portaria do Ministério da Justiça. Em 1995, uma ação civil pública para retirada dos não índios da área foi proposta pelo MPF. O pedido liminar foi deferido, sob a condição de que a desocupação fosse realizada depois da demarcação. Vários recursos foram propostos pelos fazendeiros e ocupantes para protelar a saída da área. Em 1998, a terra indígena foi homologada, por decreto do presidente da República, com extensão de 165.241 hectares.
Dois anos depois, em 2000, a Justiça Federal de Mato Grosso decidiu pelo retorno da comunidade indígena Xavante ao local, mas sem determinar a retirada dos posseiros. Esta decisão foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2004. Em 2007, a Justiça Federal sentenciou a ação e determinou a retirada de todos os não índios. No entanto, apenas em janeiro deste ano, após uma série de novos recursos judiciais, a Fundação Nacional do Índio (Funai) noticiou a completa desintrusão de Marãiwatsédé. Segundo a procuradora da República Marcia Zollinger, encerrou-se “uma etapa de grave violação aos direitos humanos do povo Xavante”.
Em contrapartida, há muitos casos em que os entraves jurídicos seguem impedindo a demarcação. No Mato Grosso do Sul (MS), por exemplo, um levantamento realizado pelo MPF em 2009 identificou 87 processos envolvendo disputa de terras indígenas tramitando no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Embora os dados sejam de quatro anos atrás, servem para ilustrar uma realidade que perdura até hoje.
Em geral, eram mandados de segurança ou ações declaratórias e possessórias movidas por proprietários de terra. Tentavam impedir judicialmente procedimentos iniciados pela Funai para demarcação de territórios, alegando serem os donos legítimos da área ou pedindo declaração de que suas fazendas não eram tradicionalmente ocupadas pelos indígenas. Também havia ações propostas pela própria Funai ou pelo MPF, nas quais solicitavam a continuação de trabalhos de demarcação por algum motivo emperrados.
O levantamento apontava ainda que, para uma mesma terra indígena, havia mais de uma ação tramitando. Como essas terras englobam áreas em que estão situadas diferentes fazendas, é comum que cada proprietário inicie um ou mais processos judiciais.
É por isso que, em vez de em livros, boa parte da história do povo indígena kadiwéu está fartamente documentada nos arquivos da Justiça brasileira. Suas terras, localizadas em áreas do Pantanal e da Serra da Bodoquena, no oeste de MS, foram demarcadas, homologadas e registradas em cartório de imóveis com 538 mil hectares. O processo foi finalizado pelo governo federal em 1984, porém 30% da área (155 mil hectares) seguem ocupados por particulares.
Ainda em 1984, os proprietários que se encontravam dentro dos limites da terra indígena ajuizaram ação, que foi encaminhada ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 1987. Entre idas e vindas, tramitou no STF até o ano passado, quando foi remetida para a Justiça Federal de Corumbá, onde ainda aguarda decisão final (número do processo: 0000569-89.2012.4.03.6004).
Em Santa Catarina, o que muda apenas é o nome do povo. Os guarani de Araça’í lutam desde 1998 para retornar à terra ocupada tradicionalmente por seus antepassados, entre os municípios de Saudades e Cunha Porã, no oeste do estado. Os conflitos na região se arrastam, e o trabalho de demarcação vem sendo acompanhado pelo MPF desde então.
Em setembro de 2000, a Funai constituiu grupo de trabalho para elaborar estudo antropológico de identificação e delimitação. O relatório, que reconheceu a terra como indígena Araça’í, foi encaminhado para aprovação e publicação em agosto de 2001. Apesar de a legislação prever prazo de 15 dias para tal, o documento só foi publicado em 2005. Em 2006, procuradores da República lotados em Santa Catarina, em virtude do acirramento dos conflitos vividos na região, assinaram moção de apoio para a conclusão do procedimento. A portaria declaratória da terra Araça’í foi publicada em abril de 2007.
Desde então, corre na Justiça catarinense ação que pede a anulação da portaria, movida pelo Movimento de Defesa da Propriedade e Dignidade, organização que representa a maioria dos produtores rurais que ocupam a região. A última decisão, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), julgou improcedente o pedido e permitiu que o processo demarcatório prosseguisse.
No entanto, durante todos esse anos, os guarani de araça’í têm vivido em uma porção de terra cedida na aldeia Toldo Chimbangue, de etnia kaingang. “O primeiro problema é cultural. Eles ficam subjugados, porque o cacique kaingang manda na terra toda”, diz o procurador da República Renato de Rezende Gomes. Além disso, por diversas vezes, os kaingang se mostraram contrários à presença da comunidade guarani no local.
Também há sérias dificuldades de acesso a condições básicas de vida. Relatório produzido pelo MPF em 2012 apontou que as 31 famílias guarani (mais de 100 pessoas) compartilhavam apenas um banheiro, que sequer possuía água encanada. O atendimento de saúde, realizado no posto da Toldo Chimbangue, é limitado por dia e ficha, “de maneira que muitos dos indígenas não têm acesso” aos cuidados adequados e em tempo necessário. Conforme Gomes, a grande dificuldade é que os guarani “não podem ser beneficiados por programas federais de assistência, já que o governo exige que estejam em terras demarcadas”.
A partir da decisão do TRF4 permitindo o prosseguimento do processo, a Funai contratou a empresa que realizará a demarcação física da área. Na sequência, as famílias que atualmente vivem na terra Araça’í serão ressarcidas pelas benfeitorias realizadas. Depois, é necessário que a demarcação seja homologada pelo presidente da República e que a terra seja registrada em cartório em nome da União. O último passo antes de os guarani, enfim, retornarem ao seu local tradicional de ocupação, é a desintrução, ou seja, a retirada dos não índios do local. O problema é que, neste momento, segundo Gomes, a Justiça novamente deve ser instada entrar em cena: “conhecendo a realidade local e o clima de hostilidade que os atuais moradores mantém com os guarani, garanto que a saída não será amigável”.
Números
Estima-se que a população indígena brasileira variava entre 1,5 milhão e 5 milhões de habitantes antes da chegada dos europeus ao Brasil*. Ao contrário da percepção do senso comum de que o território que veio a se constituir no Brasil era um imenso vazio demográfico à época da chegada dos conquistadores, estudos etno-históricos e arqueológicos demonstram uma forte presença dos povos indígenas.
Atualmente, existem mais de 230 povos indígenas vivendo no Brasil, com uma população de quase 900 mil pessoas, segundo o último Censo Demográfico. Esses povos falam mais de 180 diferentes línguas e possuem características socioculturais muito diversas entre si, assim como histórias muito particulares.
* Publicado originalmente no site do Ministério Público Federal do Pará.
(Ministério Público Federal do Pará)