Após dez anos de expansão, a indústria de automóveis vive uma nova realidade.
A indústria de automóveis, produto-símbolo da ascensão econômica nos últimos anos, reduziu a marcha em 2014. De janeiro a julho, as vendas de veículos caíram 8,6% em relação a 2013 e a produção declinou 17,4%. No segundo semestre, a situação deve melhorar, como costuma ocorrer todos os anos. As montadoras preveem uma queda de 10% na produção de 2014. O resultado negativo ocorre depois de nove anos ininterruptos de crescimento e um de estabilização.
“O boom de investimentos da nova classe C já aconteceu. Todo mundo está agora com carnê para pagar e não tem fôlego para novos gastos”, diz Ricardo Bacellar, diretor da KPMG, sobre a redução do consumo. O setor bancário contribuiu com a queda ao tornar-se mais rigoroso na concessão de crédito, depois de sofrer prejuízos com inadimplência. Há dois anos não se oferecem financiamentos de 60 meses sem entrada e os juros subiram. Como resultado das restrições, o saldo da carteira de crédito do setor deve diminuir 5% neste ano, apesar do crescimento da participação das financeiras ligadas às montadoras. Esse grupo de instituições respondeu por 56% do total de financiamentos em 2013, fatia ampliada para 65% em 2014. “Não há prejuízo nos novos negócios, a inadimplência caiu. As condições de financiamento dificilmente vão melhorar, porque há um processo de limpeza nas carteiras dos bancos”, explica Décio Carbonari, presidente da Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras.
O cenário negativo reflete-se no mercado de trabalho. Foram 6 mil postos fechados desde o começo do ano, além de 7 mil empregados atingidos por medidas como férias coletivas, suspensões temporárias e paradas técnicas, segundo levantamento da agência Autodata. As companhias estão preocupadas com o acúmulo de veículos nas fábricas. O estoque mensal nos pátios das montadoras, de 375 mil veículos em média, em 2013, suficientes para suprir as revendedoras por 36 dias, subiu para 387 mil unidades em março (48 dias) e caiu para 383 mil unidades em julho (39 dias), resultado da redução da produção diante do esfriamento do mercado. Para o Sindipeças, entidade representativa das indústrias de autopeças, o pé no freio continuará em 2015 e a produção só retomará o nível do ano passado em 2016.
Apesar da conjuntura pouco animadora, as montadoras programam um total de 75,8 bilhões de reais em investimentos até 2017 para ampliar a produção em 27%, para 5,7 milhões de veículos por ano, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores. “Os investimentos não podem cessar. A proposta é qualificar o produto nacional para exportar não só para a América do Sul, mas os Estados Unidos e a Europa”, diz Milad Kalume Neto, gerente da Jato Dynamics, consultoria do setor. O mercado nacional pode experimentar uma recuperação a partir de 2016 com o início de um novo ciclo de substituição de automóveis usados por novos no mercado interno e melhora das condições macroeconômicas, mas é importante apostar em outros mercados, avalia Kalume Neto.
A visão de longo prazo da indústria automotiva brasileira incorpora a tendência mundial de crescimento do setor. “Em 2020, economias emergentes como China, Brasil, Leste Europeu, Oriente Médio e América do Sul representarão mais de 50% do mercado global de veículos leves”, prevê Michael Robinet, diretor da IHS Automotive, uma das principais consultorias mundiais de setores industriais.
A Fiat Chrysler, líder de mercado no Brasil, mantém seu plano de investimento de 15 bilhões de reais entre 2013 e 2016. Segundo o presidente para a América Latina, Cledorvino Belini, o desempenho fraco do ano não muda a expectativa da companhia. “Mesmo que o mercado automobilístico esteja transitoriamente retraído, a empresa vê um potencial de expansão muito animador para os próximos anos. O Brasil se destaca com um mercado interno forte, com 200 milhões de habitantes e uma classe média em crescimento.” Na avaliação do executivo, a retração das vendas é resultado das pressões inflacionárias iniciadas no ano passado e seu impacto na confiança do consumidor, somadas à redução no ritmo da liberação de crédito. Na segunda-feira 11, a Fiat em Betim (MG) iniciou uma interrupção de dez dias na produção para reduzir em 10 mil veículos a produção do mês.
Quando a Toyota do Brasil anunciou, em 2009, o investimento em uma nova fábrica em Sorocaba, no interior de São Paulo, visava ampliar sua participação no mercado brasileiro no longo prazo, explica o gerente Ricardo Bastos. Hoje a empresa opera a plena capacidade nas quatro unidades instaladas no País e espera manter neste ano o patamar de produção de 2013, de 176 mil veículos. “No fim do ano passado, previmos uma desaceleração, em parte como consequência do próprio crescimento do setor nos últimos seis anos, período em que dobrou de tamanho e agora passa por uma fase de estabilização”, diz o executivo. A companhia acredita na abertura de novos negócios, voltados para a exportação. “É um trabalho em sincronia com o Inovar-Auto, o programa federal para incentivar a produção nacional, pois não se pode depender apenas do mercado interno.”
No curto prazo, a Anfavea acredita existir um conjunto de fatores capazes de impulsionar as vendas no segundo semestre. Entre as medidas mais importantes estão a definição das taxas de financiamento de caminhões, ônibus e máquinas agrícolas pelo Programa de Sustentação do Investimento, do BNDES, no começo do ano e a assinatura, em julho, do acordo automotivo com a Argentina, depois de um ano de comércio travado. Somam-se o conjunto de medidas recentes do Banco Central para aumentar a liquidez no mercado e a manutenção das alíquotas de IPI reduzidas. A dinamização do setor depende ainda da recuperação do crescimento da economia e do aumento da competitividade das montadoras a partir dos investimentos realizados em expansão e modernização.
Neste ano, as montadoras receberam mais recursos do exterior do que remeteram às suas matrizes. Segundo dados do Banco Central, os aportes estrangeiros no setor no primeiro semestre deste ano, de 1,3 bilhão de dólares, foram 52% superiores àqueles do mesmo período de 2013. As remessas de lucro foram 61% menores nos primeiros seis meses do ano (616 milhões de dólares) em comparação aos valores remetidos às matrizes de janeiro a junho de 2013. “Houve uma mudança de tendência. Hoje os lucros são investidos no Brasil e as empresas estão otimistas por se verem em condições de cumprir o seu papel”, comenta Bacellar.
As decisões acompanham o movimento da indústria automobilística mundial. “O momento atual caracteriza-se por um aumento drástico da intensidade da concorrência. O investimento no progresso técnico é uma arma decisiva das montadoras e ocorre a taxas sem precedentes. Em setores de menor lucratividade como a indústria automobilística, a competição é tão intensa que a as empresas ousam não cortar seus investimentos”, diz o economista Peter Nolan, da Universidade de Cambrige, em seu livro Chinese Firms, Global Firms: Industrial Policy in the Era of Globalization, de 2014. Mais do que otimismo, a aposta das fabricantes de veículos no Brasil reflete o alinhamento estratégico mundial do setor.
* Publicado originalmente na edição 813 de CartaCapital, com o título “Redução de marcha” e retirado do site Carta Capital.
(Carta Capital)
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