Como seguimento à Declaração do Milênio de 2000, as Nações Unidas, conduzidas pelo ganês Kofi Annan, estabeleceram os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) visando orientar os esforços da comunidade internacional para o desenvolvimento até o ano de 2015.
Longe de ser um acordo ideal ou vinculativo (que se torna lei nacional ao ser assinado), os ODM também foram considerados reducionistas diante do consagrado Ciclo de Conferências Sociais dos anos 90 e deixaram de fora questões centrais, silenciando, por exemplo, uma já evidente epidemia global de violência contra as mulheres. Apesar das críticas, porém, bastante dinheiro foi mobilizado sob o slogan “Oito Jeitos de Mudar o Mundo”, e esse esforço multilateral fez chegar investimentos em áreas essenciais. Mas, no geral, recursos e empenho das lideranças foram insuficientes para o alcance de todos os Objetivos acordados.
Após uma década de trabalho, já em 2011, a ONU reconheceu que empoderar mulheres, desenvolver industrialmente e em escala num modelo ambientalmente sustentável e proteger as pessoas mais vulneráveis das múltiplas crises (como volatilidade nos preços de alimentos e energia, por exemplo) e guerras não é uma tarefa simples, nem pequena. Em tempos de Piketty, é fácil provar as iniquidades que persistem e se ampliam. Apesar da “nova geopolítica”, dos avanços tecnológicos e da diminuição de pobreza extrema em países como Brasil e China, a desigualdade continua um insulto à condição humana: quase um bilhão de pessoas vivem com fome e em pobreza extrema, a despeito dos dados abundantes que denunciam os danosos impactos deste modelo, marcado pela concentração de riqueza e no qual a pobreza continua a ser causa e consequência de relações desiguais de poder, seja do ponto de vista de gênero, econômico ou racial.
Assim, apesar do prazo de validade até 2015, o debate sobre o futuro pós-2015 capturou a agenda desde a Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável – a Rio +20, realizada no Brasil em 2012. E, combinado o propósito de reduzir a pobreza no mundo, a questão seguinte foi acordar o “como” isso seria feito.
Para evitar que os novos objetivos ficassem nas mãos do secretariado da ONU (como ocorreu com os ODM), a Rio +20 logo estabeleceu dois processos intergovernamentais. O primeiro, o Grupo de Trabalho Aberto (GTA), para elaborar uma proposta de objetivos que, desta vez, fossem sustentáveis e equilibrados no tripé social, ambiental e econômico. O segundo grupo, a Comissão de Peritos sobre Financiamento do Desenvolvimento Sustentável (CPFDS), deveria recomendar como pagar a conta dos novos objetivos. Agora, ambos os relatórios estão concluídos e, juntos com o relato do Painel de Alto Nível responsável pelo monitoramento da implementação da agenda pós-2015, subsidiarão a 69ªAssembleia, que definirá a segunda fase da negociação.
E as negociações, na primeira fase foram bem tensas… A proposta do GTA, após 16 meses de duros embates, foi concluída em julho, prevalecendo o acordo maior que era o de chegar a um acordo. O documento, aprovado sob aplausos nervosos após uma última negociação que durou quase 30 horas ininterruptas, foi imediatamente criticado pelos países por questões temáticas ou processuais mas, claramente, para além dos 17 Objetivos e das mais de 100 metas, o maior produto foi garantir a base dessa agenda multilateral para erradicar a pobreza.
Todo consenso, porém, tem um preço e esse, pago à vista ou a prazo, não será pequeno depois de países, sociedade civil e agências da ONU divergirem tanto sobre tantos temas. Direitos sexuais e reprodutivos, igualdade de gênero, sociedades pacíficas/acesso à justiça, ocupação estrangeira, terrorismo e mudanças climáticas encabeçaram a lista das controvérsias, tendo como pano de fundo divergências sobre os meios de implementação e o debate sobre responsabilidades comuns, porém diferenciadas, entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
O movimento global de AIDS, por exemplo, reclama que todo o ODM 6 (sobre AIDS, tuberculose e malária) tenha sido reduzido a uma meta única do objetivo de saúde. Já para o Grupo de Mulheres da sociedade civil (Women’s Major Group), a proposta atual é pouco ambiciosa, não transformará os sistemas econômicos e financeiros, nem promoverá direitos humanos. “O GTA não apresentou meios claros de como implementar as metas (…). Os direitos das mulheres a decidir sobre paz e segurança e a controlar sua sexualidade; os direitos dos povos indígenas e os direitos sexuais estão gravemente ausentes dessa agenda (…)”. De fato, mesmo com o compromisso de Ban Ki-moon de que “ninguém será deixado para trás”, a aliança entre muçulmanos extremistas e Vaticano impede gays, travestis e transgêneros, trabalhadores/as sexuais e várias populações mais vulneráveis de entrar na agenda da ONU.
O problema é que esse resultado apenas reflete tendências mundiais. Aqui no Brasil, por exemplo, na evidente disputa com os fundamentalistas, a ala progressista está apanhando de 10 x 0. Basta lembrar do Plano Nacional de Educação, que ignora a discriminação por orientação sexual e o racismo nas escolas; das ideias do Estatuto do Nascituro e da Família; da repressão às manifestações populares; e da atual corrida presidencial, onde candidatos/as vendem a alma, ao mesmo tempo, tanto ao diabo quanto às Igrejas.
Próximos Capítulos – A 69ª Assembleia Geral irá responder as questões em aberto. O relato do GTA será a base do documento-zero da nova rodada de negociações, abrindo outra vez cada uma das frases acordadas para debate? A proposta dos ODS será aprovada como está e o novo foco será “como” implementá-los, definir mecanismos de governança e os indicadores?
De um jeito ou de outro, os problemas ainda são vários. O relatório dos peritos em financiamento, por exemplo, considerou o trabalho do GTA, mas não indica como financiar os objetivos, apenas aponta opções para que cada país escolha conforme prioridades e contextos. Já o Fórum Político de Alto Nível, cujo mandato tem instruções claras sobre a participação da sociedade civil, afirma em sua Declaração do Ministerial (de julho) que um processo transparente deve conter contribuições de todas as partes interessadas, mas não deu acesso à sociedade civil aos documentos durante os debates, chegando a excluir as ONGs da observação das negociações informais.
Isso é grave, pois um futuro verdadeiramente sustentável exige mecanismos de monitoramento das ações governamentais e um ambiente propício à atuação da sociedade civil. Os ODS em construção não valorizam a contribuição fundamental e o papel das comunidades para a democracia global. Tanto na ONU como no Brasil a disputa por um Estado radicalmente democrático se acirra, basta ver a atual guerra contra a Política Nacional de Participação Social.
Sim, há boas propostas que precisam permanecer na segunda fase das negociações – ter conseguido um Objetivo para Equidade de Gênero e Empoderamento das Mulheres, por exemplo. Mas há enormes lacunas nos pilares sociais e ambientais e falta apetite para quebrar o paradigma, comprovadamente desastroso, de “crescimento econômico a qualquer custo”. O ODM 8, que aborda questões chave para a justiça econômica, cujo fracasso todos reconhecem, pediu parcerias globais lideradas pelos governos, mas o que vimos foi o poder do setor privado predominar sobre o interesse público, algumas vezes até corroendo a infraestrutura de serviços públicos e contribuindo para a combinação de contínuas crises – alimentos, energia e mudanças climáticas e, claro, para as crises financeiras. E o risco de que o setor privado continue a definir prioridades públicas pós-2015 continua.
A Agenda pós-2015 deveria tratar da democratização da economia, e reconhecer que nenhum objetivo de erradicação da pobreza extrema será suficiente se não incorporar mecanismos para redução da riqueza extrema. Mas isso exigiria, claro, muito maior vontade política do que a disponível hoje, seja na ONU ou no Brasil onde, apesar de termos instrumentos de regulação do sistema financeiro, como taxas sobre transações financeiras, falta muito para aprovarmos uma tributação progressiva e justa. A reforma tributária hoje é tão necessária quanto a política.
A verdade é que o atual debate sobre desenvolvimento sustentável na ONU influenciará modelos urbanos, matrizes energéticas e várias políticas globais, materializando-se (ou não) em serviços de saúde, educação, segurança, mobilizando bilhões de dólares nos próximos 15 anos. Afetará pessoas que dificilmente saberão dessa discussão e cuja vida a maioria dos que leem agora esse texto talvez jamais suportasse ter.
Depois de andar por grandes favelas em todo mundo e trabalhar em 16 países promovendo ligações entre as políticas globais e as locais, pensar desenvolvimento, equidade e direitos humanos é também pensar nas pessoas que ainda hoje veem ratos subindo no colchão sujo de suas crianças, sem ter nada a fazer. É muito fácil explicar a relação entre o colchão sujo, os ratos e a ONU. Quem acompanhar as negociações dos próximos doze meses, entenderá.
* Alessandra Nilo é jornalista, coordenadora da ONG Gestos e diretora estadual da Abong em Pernambuco. Ela é membro da Força Tarefa de Alto Nível para Cairo+20 (www.icpdtaskforce.org) e representa a sociedade civil da América Latina e Caribe no Conselho Diretor da UNAIDS. Vera Masagão Ribeiro é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998), representante da Associação Brasileira de ONGs (ABONG) e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).
** Publicado originalmente pelo Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais e retirado do site Carta Capital.
(Carta Capital)
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