“O meio urbano se tornou a expressão mais pura da Civilização do Lixo”, constata o geógrafo Maurício Waldman.
As evidências demonstram que a quantidade de lixo gerada tem crescido consideravelmente nos últimos anos, mas quando se trata de quantificar os dados, “as disparidades nos levantamentos estatísticos constituem controvérsia endêmica entre os especialistas em resíduos”, assinala Maurício Waldman, autor de Lixo: Cenários e Desafios (Cortez Editora, 2010), em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Numa “radiografia quantitativa” a partir de estudos franceses, é possível que os resíduos urbanos globais oscilem entre 2,5 e 4 bilhões de toneladas, com uma “margem de erro”, conforme destaca o pesquisador, “note-se bem: uma margem de erro de ‘apenas’ 1,9 bilhão de toneladas de sobras”. No Brasil, a conta gira em torno de “78,4 milhões de toneladas, uma massa de refugos considerável sob qualquer ponto de vida”, pontua. E informa: “A população brasileira aumentou 15,6% entre 1991 e 2000. Entretanto, neste mesmo período, o lixo domiciliar expandiu-se 49%, três vezes o índice demográfico”.
Doutor em Geografia e referência em pesquisas sobre a problemática do lixo no Brasil, Waldman está cursando o terceiro pós-doutorado, estudando especialmente a reciclagem dos resíduos sólidos, e alerta para a ampliação acelerada de novas toneladas de lixo produzidas no Brasil. “As cidades brasileiras ampliaram os descartes no biênio 2012-2013, de 201.058 toneladas de lixo por dia para 209.280 toneladas. Uma expansão assombrosa de 4,1% em apenas doze meses! Uma calamidade se pensarmos as formas de gestão de resíduos em curso no país, a começar pelas 20 mil toneladas diárias que sequer são coletadas, dos mais de 3.500 lixões ativos e a continuidade do descaso com o trabalho dos catadores”, menciona.
Waldman chama a atenção para as propagandas em torno do “lixo zero”, lembrando que “não existe erradicação total do lixo”, porque “toda atividade humana gera resíduo, sendo que deste montante devemos excluir os rejeitos, sobras não passíveis de reaproveitamento”.
Maurício Waldman é doutor em Geografia, mestre em Antropologia e graduado em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Cursou pós-doutorado em Geociências pela Universidade de Campinas – UNICAMP e em Relações Internacionais pela USP.
Waldman iniciou em janeiro de 2014 seu 3º pós- doutorado, pesquisa centrada na área do meio ambiente com foco na questão dos catadores, incineração e reciclagem dos resíduos sólidos. A investigação possui respaldo institucional da Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE, de Presidente Prudente, e financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Maurício Waldman foi Chefe da Coleta Seletiva de Lixo da Capital paulista e Coordenador do Meio Ambiente em São Bernardo do Campo. Realizou duas traduções de monta: El Ecologismo de los Pobres – Conflictos Ambientales y Lenguajes de Valoración (de Joan Martinez Alier) e Fifty Major Philosophers (de Diané Collinson). Mais informação no Portal Acadêmico do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Sabe-se que a geração de lixo no Planeta tem crescido incessantemente. Existem dados a este respeito?
Maurício Waldman - Sim e não. Retenha-se que as disparidades nos levantamentos estatísticos constituem controvérsia endêmica entre os especialistas em resíduos. Seguramente, tal assertiva poderia ser estendida à totalidade dos prontuários contábeis devotados ao tema. Citando um exemplo paradigmático, os resíduos urbanos globais oscilariam numa radiografia quantitativa da lavra de especialistas franceses, entre 2,5 e 4 bilhões de toneladas. Note-se bem: uma margem de erro de “apenas” 1,9 bilhão de toneladas de sobras. Assim sendo, é obrigatório ressalvar que qualquer número apresentado pode apresentar discrepâncias de índole diversa.
IHU On-Line – É possível estimar quantas toneladas de lixo são produzidas no Brasil anualmente?
Maurício Waldman - No caso brasileiro, para nos atermos aos últimos dados disponibilizados pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais – ABRELPE, os refugos urbanos descartados pelos domicílios brasileiros durante o ano de 2013 girariam em torno de 78,4 milhões de toneladas, uma massa de refugos considerável sob qualquer ponto de vida.
IHU On-Line – Qual é a principal tendência da geração de lixo no Brasil?
Maurício Waldman - O que salta aos olhos é a expansão vertiginosa do lixo brasileiro. Levando-se em conta dados da ABRELPE e do Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM, um recorte matricial é a ampliação exponencial da ejeção de lixos em todo o território nacional. Indo direto ao ponto, este fenômeno fica demonstrado quando observamos que a população brasileira aumentou 15,6% entre 1991 e 2000. Entretanto, neste mesmo período, o lixo domiciliar expandiu-se 49%, três vezes o índice demográfico.
Neste particular, relatório técnico elaborado pela ABRELPE constata para 2009 um crescimento de 6,6% na geração per capita de resíduos sólidos urbanos com relação a 2008. Mas, para o mesmo ano, o crescimento populacional foi de somente 1%. Nos últimos dez anos, a população do Brasil expandiu 9,65%. Contudo, no mesmo decênio a geração de lixo cresceu mais do que o dobro este percentual, batendo a casa dos 21%. As cidades brasileiras ampliaram os descartes no biênio 2012-2013, de 201.058 toneladas de lixo por dia para 209.280 toneladas. Uma expansão assombrosa de 4,1% em apenas doze meses! Uma calamidade se pensarmos as formas de gestão de resíduos em curso no país, a começar pelas 20 mil toneladas diárias que sequer são coletadas, dos mais de 3.500 lixões ativos e a continuidade do descaso com o trabalho dos catadores.
IHU On-Line – Qual proporção desta tonelagem recebe destino adequado?
Maurício Waldman - Depende do que se entende por “adequado”. Certo é que a Lei 12.305 (de 02-08-2010), instituindo o Plano Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, estabelece como destinações ambientalmente adequadas procedimentos como a reutilização, a reciclagem e a compostagem, um elenco de práticas que desfrutam de consenso entre os especialistas. Por outro lado, admite o chamado “aproveitamento energético do lixo” — processos de incineração Waste to Energy — e a disposição final dos resíduos em aterros sanitários como normas operacionais aceitáveis, inclusive do ponto de vista ambiental. Trata-se de uma posição no mínimo questionável.
IHU On-Line – Por que os incineradores e os aterros seriam questionáveis?
Maurício Waldman - Assinale-se que do ponto de vista legal, o Senado suprimiu na última hora em sessão noturna o dispositivo que enquadrava a queima do lixo como opção apenas na eventualidade de outras medidas não serem viáveis. Com base neste subterfúgio, os senadores encaminharam sem demora o texto para sanção da Presidência, então exercida por Lula. Isso ao arrepio das mobilizações mundiais contrárias à expansão dos incineradores, que em países como o Brasil tem como um dos pontos programáticos mais fortes o apoio aos catadores urbanos. Quanto aos aterros, bastaria recordar as pesquisas de William Rathje, famoso antropólogo estadunidense fundador da Garbology (Lixologia em português), que os classifica como mausoléus de lixos, uma representação emblemática da incúria ambiental da civilização moderna. Formando verdadeiras montanhas de detritos, os aterros sanitários configuram a etapa final da parte do leão de muitos restos urbanos, impostados da condição de parceiros de uma civilização que esgota sem piedade as reservas de insumos naturais, com isso catalisando os pré-requisitos de sua própria autoextinção.
Deste modo, como julgar “adequado” um equipamento cuja função é enterrar materiais que, podendo ser compostados e recuperados, geram, pelo contrário, uma coletânea de estorvos ambientais? Isso é solução?
IHU On-Line – E no Brasil, o que está acontecendo com os materiais descartados nas lixeiras?
Maurício Waldman - Para começo de conversa — para focarmos as questões relacionadas à massa dos itens descartados — é importante sublinhar que o Brasil corresponde a 2,8% da população mundial e praticamente 3% do PIB global. Mas, por outro lado, seria origem de um montante estipulado entre 5,5% do total mundial dos resíduos sólidos. Isso para lembrarmos que a responsabilidade brasileira na geração mundial de lixo é inquestionável.
Embora o fato escape à percepção da maioria da população, o Brasil figura entre os maiores geradores planetários de descartes. Um segundo apontamento diria respeito à modelagem das cifras pelas estatísticas, que em alguns contextos afetam uma exata compreensão do problema. Recorde-se que os relatórios da ABRELPE acusam a existência de “alguma iniciativa de coleta seletiva” em 62% dos 5.570 municípios brasileiros em 2013, concentradamente nas regiões Sul (34%) e Sudeste (52%).
IHU On-Line – No que esta definição seria problemática?
Maurício Waldman – Ora, suponha que eu convide alguém para almoçar na minha casa e o convidado indague sobre o que iremos comer. Imagine se eu responder que vamos nos fartar com “algum tipo de comida”. Bem, “algum tipo de alimento” pode ser qualquer coisa: o que sobrou do jantar de ontem, pão amanhecido, uma maçã devorada pela metade ou alguns pedaços de pizza. Na mesma lógica “alguma iniciativa de coleta seletiva” significa que uma cidade pode ter um ecoponto isolado na rodoviária ou uma “ilha recicladora” em algum parque e, apesar desta precariedade, ser brindada com o status de disponibilizar serviço de Coleta Seletiva de Lixo – CSL.
IHU On-Line – Mas a proporção dos materiais reciclados tem aumentado?
Maurício Waldman - De um modo geral, sim. Mas, como sempre, muitos passos aquém do necessário. Em princípio o Brasil tem marcado algumas boas posições no ranking mundial da reciclagem. A recuperação da lata de alumínio atinge índices verdadeiramente icônicos, da ordem de 97,9%, imbatível no mundo inteiro. Quatro outros materiais — latas de aço, papel, plástico e embalagens longa vida — também apresentam porcentagens expressivas de reciclagem: 47%, 45,7%, 58,9% e 27%. Contudo, entenda-se que ocorre uma procura pelas sobras que auferem maior valor nas bolsas de recicláveis. Dito de outro modo, são resgatados os resíduos mais bem posicionados junto aos polos mais capitalizados da economia. Sem contar a irrisória porcentagem da compostagem da fração orgânica do lixo — em torno de 2%, uma das mais baixas do mundo —, ainda assim existem falhas gritantes atingindo ciclos produtivos que deveriam dispor de uma logística mais azeitada.
IHU On-Line – Em qual sentido?
Maurício Waldman - Confira-se o caso da indústria têxtil. Por incrível que pareça, o Brasil está importando plástico PET do Paraguai para abastecer a linha de produção de camisetas. Também compra no exterior restos de roupa para fazer estopa. Isso porque a captação no território nacional é insuficiente para atender a demanda das recicladoras. Damo-nos ao luxo de perder em torno de 50% do plástico PET nas sarjetas e desperdiçamos 90% dos restos têxteis. Atentemos que o Brasil importou mais de 223 mil toneladas de resíduos nos anos 2008-2009. Isso num país em que o lixo transborda por todos os lados.
IHU On-Line – A importação de lixo evidencia problemas de gestão?
Maurício Waldman - Sem dúvida alguma. Uma ponderação se impõe: estamos dando solução ao lixo dos outros e permitindo que nossos rios regurgitem garrafas plásticas e os aterros fiquem entupidos com retalhos das confecções. Esses são claros exemplos das falhas estruturais nos esquemas de interceptação das sobras. Neste cenário é difícil ficar deslumbrado com apontamentos indicando crescimento de municípios com CSL, divulgados pelo Compromisso Empresarial para a Reciclagem – CEMPRE. Na realidade, mesmo que o número de municipalidades com programas de CSL tenha passado de 405 em 2008 para 766 no ano de 2012, a população brasileira atendida pela CSL passou de 26 para 27 milhões.
Em síntese: um desempenho manifestadamente medíocre. Para arrematar, a eficiência do serviço público é, no geral, muito baixa. A porcentagem de rejeitos na composição gravimétrica se mantém elevada, principalmente pela ausência de investimentos em educação ambiental. A falta de proficiência técnica gera perdas indevidas de materiais coletados. As metrópoles brasileiras enterram fração considerável dos recicláveis colocados pela população nos contêineres das prefeituras. Não fosse o trabalho digno e honrado dos catadores, tecnicamente não existiria reciclagem no Brasil.
IHU On-Line – Este panorama tem se alterado?
Maurício Waldman - Sim, mas do mesmo modo que a reciclagem como um todo. Qual seja: vários passos atrás do que de fato a sociedade precisaria. Rubrique-se que, embora o PNRS reconheça o resíduo sólido reutilizável e reciclável como bem econômico, dotado de valor social, gerador de trabalho, de renda e promotor de cidadania, a resistência em firmar parcerias com entidades dos catadores é manifesta. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, dentre os programas de CSL em curso nos municípios brasileiros em 2008, apenas 43% destes envolviam a participação de cooperativas de catadores. Mesmo assim, tais iniciativas oscilam enormemente quanto à vontade política das prefeituras em calçá-las com apoio efetivo. Certificando esta última postura, a nota oficial divulgada pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR, em 05-08-2010, é lapidar. O MNCR alertou que somente 142 municípios brasileiros (2,5% do total) mantêm parceria com associações e cooperativas de catadores.
IHU On-Line – Qual a origem desta ausência de diálogo como os catadores?
Maurício Waldman - Existe toda uma carga de estereótipos que impregnam negativamente a percepção dos catadores junto a um segmento ponderável da opinião pública, particularmente devido à própria natureza da atividade destes trabalhadores, que manipulam materiais classificados pelo código cultural dominante como lixo. Existem muitos relatos de incêndios criminosos de galpões utilizados pelos catadores para a triagem dos recicláveis, apreensões ilegais de carroças, diversos tipos de impedimentos à catação e atos de violência direta perpetrados com apoio de forças policiais. Mantém-se um relacionamento contraditório com os grupos de catadores: necessários por proverem poderosos grupos empresariais das cobiçadas sobras que sustentam suas linhas de produção; rejeitados por força de estigmas culturais, raciais e sociais que se abatem contra a população pobre do país, agravados, no caso da população catadora, por singularidades que os tornam incompatíveis com o padrão sociocultural hegemônico. Apenas a mobilização permanente da categoria, apoiada por organizações religiosas e/ou ambientalistas, tem garantido a manutenção das suas conquistas, a defesa dos seus direitos e o avanço das suas reivindicações.
IHU On-Line – Quais são as principais problemáticas do lixo domiciliar no país? Quais são os resultados da sua pesquisa sobre o tema, considerando o período de 2006-2010?
Maurício Waldman - Num prisma conceitual, a obra do geógrafo Milton Santos, pontuando a importância dos processos nas configurações materializadas no espaço geográfico, nos proporciona um excelente marco teórico. A célebre máxima pela qual o espaço resulta de uma acumulação desigual de tempos é matricial para analisar os refugos e suas variáveis junto à realidade concreta e nas flexões do imaginário social. Retenha-se que a expressão modernidade é das que mais incorrem em afetações ideológicas. Portanto, não pode ser utilizada aleatoriamente. Citando Milton Santos uma vez mais, o geógrafo advertia que a globalização se especifica diferentemente no espaço mundial. Daí ser falho pressupor uma sociedade moderna abstrata. Coerentemente, numa formação socioespacial como a brasileira, uma gestão atendendo a princípios quanto aos materiais descartados não pode copiar metodologias — modernas ou não, tanto faz — em vigor na França, México, Noruega ou Egito. Conforme consta na Pesquisa de Pós-Doutorado pela UNICAMP e em Lixo: Cenários e Desafios, o que se tem no país são resíduos sólidos brasileiros, aos quais cabem soluções brasileiras. Neste quesito, medidas de incentivo e apoio aos catadores, desobrigação tributária da reciclagem, programas de lixo-educação, valorização de materiais autóctones, revisão da matriz energética e, inevitavelmente, a reforma do Estado, são todas urgentes, indispensáveis. Este é o debate central e fundamental. Mas ignorado quando se trata de esclarecer a questão teórica do lixo.
IHU On-Line – Qual é o impacto do lixo nas cidades? Quais os principais entraves gerados por conta da destinação incorreta do lixo? E os impactos em cidades brasileiras?
Maurício Waldman - Esta questão pode ser colocada em mão dupla: os impactos do lixo nas cidades e os que ocorrem a partir das cidades. O meio urbano se tornou, desde o século XIX, o epicentro da civilização moderna, eixo de um estilo de vida cada vez mais identificado com o consumismo e a utilização perdulária dos insumos naturais. Para comprovar esta colocação basta situar o cálculo de que as 29 mais glamorosas metrópoles europeias, visando manter em funcionamento sua engenharia urbana, arrebanham recursos de territórios 1.130 vezes mais extensos do que a área que ocupam. Outra coletânea de dados sobre o apetite urbano por insumos é a informação de que as cidades ocupam 6% da superfície terrestre.
Porém, reclamam para si 60% das águas doces e 75% dos recursos naturais planetários. Na ótica do relacionamento com o ambiente, a titularidade do meio urbano é inquestionável: as metrópoles mantêm o conjunto da biosfera sob seu tacão, submetida na condição de refém das expectativas, desejos e vontades citadinas. Assim sendo, pressionadas por demandas crescentes e correndo o risco de serem asfixiadas sob o acúmulo de dejetos gerados por elas mesmas, as cidades promovem impactos que se estendem numa escala extremamente vasta do espaço-tempo. Em suma: o meio urbano se tornou a expressão mais pura da Civilização do Lixo.
IHU On-Line – No que isso implica?
Maurício Waldman - Significa que, a partir desta linha de abordagem, não vem muito ao caso a magnitude da cidade. Tampouco sua inserção numa lógica mais tecnificada ou menos tecnificada. O conjunto das cidades está impactado pelos descartes que produzem e pari passu estão impactando o ambiente numa escala sem precedentes. Não importam as distâncias nem as especificidades. É neste seguimento que, para exemplificar, na região do Oeste Paulista — onde atualmente desenvolvo minha terceira investigação de pós-doutorado —, informações coligidas pelo Núcleo de Estudos Ambientais e Geoprocessamento – NEAGEO, da Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE, radiografaram 22 aterros ativos. Existem pistas de que é um para cada município. O único aterro sanitário em operação — situado em Presidente Venceslau — é prova cabal da falácia em imaginar que esta modalidade seja solução para a destinação final dos resíduos. Apesar das boas notas da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental – CETESB, órgão do governo paulista, o aterro, ao menos até recentemente, era frequentado por população do lixo, não tratava o chorume e fazia vista grossa para a liberação de gás metano na atmosfera. Isso ocorre numa região onde os horizontes texturais admitem ampla capilaridade para infiltração, em especial pela configuração pedológica, caracterizada por rochas sedimentares com porções de areia e argila. Pelo fato de todo o Oeste Paulista apresentar solos arenosos e nesta senda, com maior capacidade de percolação do chorume em face do meio poroso, é possível concluir que os majestosos recursos hídricos da região estejam em franca destruição. Uma tragédia dentre muitas com foco nos refugos.
IHU On-Line – Neste eixo de análises, qual seria a relação entre lixo e economia?
Maurício Waldman - Este é um verdadeiro nó górdio da economia moderna, comentado mais recentemente pelo economista ecológico catalão Joan Martinez Alier. Porém, consiste num tema antecipado pelo genial filósofo francês Abraham Moles. Na avaliação desse pensador, o dinamismo do mercado implica a indução do descarte contínuo dos bens, ejetados por um carrossel do consumo. No seu entrosamento mais literal, sua argumentação sinaliza que vivemos numa civilização consumidora que produz para consumir e cria para produzir, um ciclo onde a noção fundamental é a de aceleração. Numa única palavra, vivemos numa Civilização do Lixo. Em termos do sistema de produção de mercadorias, é importante notar que a função deste modelo é impulsionar os ciclos de reprodução do capital. Quanto mais rápida as mercadorias forem substituídas, tanto mais encorpado será o giro do dinheiro. Quanto mais lixo, mais giro de capital.
IHU On-Line – Quais seriam os dilemas em torno da gestão do lixo, tendo em vista as posições defendidas pelos catadores, empresários, defensores do processo de reciclagem e do processo de incineração do lixo?
Maurício Waldman - Os dilemas resultam das contradições que grassam em meio à materialidade social, refletida nas propostas defendidas pelos diferentes atores que disputam os resíduos. É inegável a existência de um rol de problemáticas declinando em antagonismos e crispações no campo empresarial, colocando setores do empresariado uns contra os outros, embates que afetam diretamente o avanço de políticas públicas de apoio aos catadores e de conservação dos recursos naturais.
IHU On-Line – Como ocorrem estes atritos?
Maurício Waldman - Pontuando melhor a afirmação, para as recicladoras os resíduos constituem matéria-prima. Contudo, para muitas empresas do segmento fabril, a reciclagem funciona apenas como uma possibilidade de minimizar custos de produção. Simultaneamente, para os setores envolvidos no esquema Waste to Energy, os rejeitos configuram meramente um combustível, uma sucata energética e não algo reaproveitável. Ou seja: o lixo não constitui insumo para o processo produtivo em si e tampouco é percebido como fator para a minimização de custos. Por sua vez, para os grupos empenhados com o gerenciamento dos aterros e coleta dos rejeitos, o que interessa é a quantidade de refugos domésticos disponíveis para serem coletados. Ignoram, portanto, a reciclabilidade dos materiais e a recuperação da energia. Fechando o círculo, aspectos econômicos envolvidos na atividade não são vistos na mesma perspectiva pelos catadores “avulsos” ou pelas cooperativas. Existem também contraposições entre os que lidam com o comércio de sucatas, entre os que as adquirem e os que retiram estes materiais das ruas, isto é, os catadores.
IHU On-Line – Neste fogo cruzado, como fica a gestão pública?
Maurício Waldman - Percebem-se neste imbróglio discordâncias entre os gestores públicos e a plataforma defendida pelos catadores, discrepâncias dos prefeitos frente às propostas das empresas que atuam com o lixo e todo um leque de contraposições programáticas no seio das próprias administrações. Particularmente, é obrigatório destacar a perpetuação de modelos ultrapassados de gestão, solenemente ignorando a reciclagem enquanto política pública efetiva e, quando muito, voltados para despachar os restos para um aterro sanitário qualquer.
IHU On-Line – Por que, mesmo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, os municípios encontram dificuldades em acabar com os lixões, considerando que não conseguiram cumprir a meta de erradicar os lixões até agosto?
Maurício Waldman - Antes de qualquer pontuação, seria absolutamente fundamental recordar que a caprichosa forma como a política é gerida no país não garante que a aprovação de uma lei pressuponha força normativa. Não é à toa — confirmando a leniência observada no cumprimento das normas legais — que o linguajar popular brasileiro predica que as leis possam “pegar” ou “não pegar”. Nesta linha de arguição, teríamos igualmente “não-leis que pegam”. Este é o caso bastante conhecido da “legislação” autogerida pelos condomínios impondo o uso do elevador de serviço para pobres, pessoas malvestidas, negros, mestiços e outros “indesejáveis”. Este “código legal” apenas deixou de vigorar com a promulgação de lei oficial proibindo essa prática discriminatória e pela pressão social, particularmente a movida pelo movimento negro. E para além da condicionalidade, existem também embaraços quanto à consecução das legislações, sujeitas em ser erodidas pelo mandonismo local, pelos interesses das grandes corporações, pelo arbítrio dos poderes governamentais e por intrusões políticas de todo o tipo. Nessa perspectiva, a cobertura legal assentada nas legislações torna-se letra morta ou é acometida de achaques constantes, visando inviabilizá-las ou pavimentar seu desmanche.
IHU On-Line – Quais os impasses na aplicação da Lei 12.305?
Maurício Waldman - O que estamos observando condiz em tudo com o que acabei de colocar. Os fatos estão aí à vista de todos. Creio que não houve qualquer voluntarismo na forma como se esboçou a legislação. O simples fato de ter circulado duas décadas pelos corredores do poder comprova a força dos interesses que pretendem sufocar qualquer normatização relacionada aos resíduos no país. Mais ainda, a persistência dos segmentos de opinião que percebem a gravidade da problemática do lixo. Contudo, o modo que marcou a atuação dos atores institucionais favoráveis à Lei está diretamente relacionado com as obstruções que têm perpassado pela sua aplicação. Isto pela simples razão de que os impasses jamais poderiam ser imputados exclusivamente aos adversários da Lei. Cabe aqui um papel importante à crítica política, dirigida em especial aos que, transitando por espaços institucionais, imaginaram que o exercício do senso público possa ser sumarizado por discursos pirotécnicos. E pior, que lançar mão de rompantes – tipo Esta Lei já pegou – seja por si só suficiente, desmentidos, aliás, pelo frigir dos acontecimentos. Transparece, pois, numa direção contrária à arrogância destes círculos e de assessorias anexas, que a prática se mantém como critério central da verdade.
IHU On-Line – Como o senhor vê as propostas em torno da produção de biogás a partir do uso de resíduos sólidos?
Maurício Waldman - Esta proposta é bastante atraente, mas cabem correções e reparos. Acredito que antes de pautarmos políticas para aproveitar o metano dos aterros, precisamos retroagir nos processos e radiografarmos o problema na origem. Nesta averbação se impõe o imperativo em reciclar nos próprios lares os restos culinários. A saber: no geral a reciclagem da fração úmida ou orgânica do lixo domiciliar recebe pouquíssima atenção dos cidadãos, das autoridades e dos especialistas. Seria cômico se não fosse sério consignar que, mesmo na literatura técnica e nos planos de gestão do lixo em todos os níveis administrativos, sequer se destaca que os orgânicos podem ser reciclados. Nesta vertente, temos imensa potencialidade colocada pelos refugos orgânicos.
IHU On-Line – Como isso poderia ser feito?
Maurício Waldman - É perfeitamente possível compostá-los nas residências. É o que comprova a notável iniciativa de entidades como Morada na Floresta, atuante na capital paulista, que tem divulgado e estimulado o uso residencial de minhocários. Reciclar resíduos orgânicos em casa permanece como prática essencial para solucionar o problema do lixo urbano. Entenda-se que no país as sobras de cozinha constituem fração majoritária dos descartes residenciais. Normalmente 60% do total. Mesmo os resíduos municipais da cidade de São Paulo — a mais cosmopolita das metrópoles brasileiras — perfazem 51% de orgânicos da sua composição. Tais emolumentos estatísticos falam por si mesmos. Implantando-se a compostagem residencial, mais da metade do lixo simplesmente desaparece, se tornando um recompositor de solo da melhor qualidade. Deste modo, transformamos um problema em solução a beneficiar o conjunto da sociedade.
IHU On-Line – Existem experiências realizadas nesta direção?
Maurício Waldman – Sim, claro. São muitas as experiências significativas de países europeus, sempre a partir da segregação na fonte. Hoje em dia, menos de 3% dos resíduos orgânicos do lixo domiciliar da Áustria é encaminhado para os aterros. Na Alemanha e nos Países Baixos mais de 80% da população colabora com a coleta seletiva de orgânicos.
Aproximadamente 33% dos belgas composta o lixo culinário. Complementando, seria oportuno registrar a possibilidade de geração de metano nas residências, poupando o contribuinte dos caros e nem sempre eficientes equipamentos geridos pelo Estado. Para comprovar, existe o sucesso dos planos chineses de geração de metano no âmbito doméstico. Em 2004, 15 mihões de domicílios chineses utilizavam biogás alimentado pelo próprio núcleo residencial. Esse número cresceu para 27 milhões de lares em 2010. No decênio 2003-2013, foram construídos 41,7 milhões de biodigestores de pequena escala no meio rural da China. Gestores públicos dos EUA, Canadá e de muitos países europeus têm demonstrado simpatia pelo biogás residencial, basicamente por solucionar na raiz dois graves problemas: a destinação final do lixo e a produção de energia.
IHU On-Line – Neste contexto, qual seria a melhor maneira de erradicar o lixo produzido ou reaproveitá-lo de algum modo, considerando o contexto brasileiro?
Maurício Waldman - Certifique-se de que não existe erradicação total do lixo. O chamado Zero Waste pode até encantar os ouvidos. Contudo, deve ser avaliado com base em dados objetivos. Objetivamente Lixo Mínimo soaria mais correto. Assinale-se que toda atividade humana gera resíduo, sendo que deste montante devemos excluir os rejeitos, sobras não passíveis de reaproveitamento. Claro que existe um avanço contínuo do aparato tecnológico abrindo brechas para o ingresso de materiais dantes descartados nos circuitos da recuperação. A caixinha longa vida e o isopor comprovam este raciocínio. Não eram recicláveis, mas passaram a ser. Todavia, tal como registrado em Lixo: Cenários e Desafios, a questão mais profunda que o lixo nos coloca é a questão do estilo de vida, dos padrões de consumo, das perspectivas imaginárias que modelam o comportamento da maioria das pessoas. No Brasil como em qualquer parte do mundo, o que a Era do Lixo está expondo de modo radical é a impossibilidade de mantermos o modus vivendi e o modus operandi que lastreou o surgimento e a difusão da civilização ocidental. Ao menos da forma como se tornou conhecida. Hoje, nos deparamos com uma versão contemporânea do enigma filosoficamente colocado pela Esfinge pela mitologia da Grécia antiga. É como se o lixo estivesse nos dizendo: Decifra-me ou devoro-te.
IHU On-Line – Então na sua avaliação o mundo já chegou numa situação limite em relação à quantidade de lixo produzido e às possibilidades de dar um destino adequado a ele, ou o desenvolvimento de tecnologias dará conta de solucionar esse problema?
Maurício Waldman - Seria uma vez mais meritório advertir que os lixos já assumiram os contornos de uma calamidade civilizatória. Em termos mundiais, apenas a massa de lixo municipal coletado, estimada em 1,2 bilhão de toneladas, supera nos dias de hoje a produção global de aço, orçada em 1 bilhão de toneladas. Por sua vez, as cidades, estacas geográficas da Modernidade, ejetam 2 bilhões de toneladas de refugos, superando no mínimo em 20% a produção planetária de cereais. Os números falam por si mesmos. Hoje, o mundo está mais voltado para gerar refugo do que produzir carboidrato básico. Neste quadro marcado por uma profunda inversão de valores, não creio que mais tecnologia seja a solução. Por sinal, a crise do lixo que presenciamos resultou exatamente da imposição radical de gradientes técnicos no ambiente de vida.
IHU On-Line – Qual seria a solução?
Maurício Waldman - Caso o problema seja técnico, precisamos então rever o que entendemos por técnica. Entre os antigos gregos, a noção de tekhne — origem das palavras técnica e tecnologia — estava impregnada de noções estéticas, incluindo a beleza e o bem-estar das populações. É exatamente disto que precisamos: repensar padrões, rever prioridades, reconsiderar ações e procedimentos. Precisamos acima de tudo de mais Humanidade, mais respeito ao meio ambiente e às futuras gerações. Debate este em cujo seio o Lixo desponta como uma preocupação essencial.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
(IHU On-Line)
As evidências demonstram que a quantidade de lixo gerada tem crescido consideravelmente nos últimos anos, mas quando se trata de quantificar os dados, “as disparidades nos levantamentos estatísticos constituem controvérsia endêmica entre os especialistas em resíduos”, assinala Maurício Waldman, autor de Lixo: Cenários e Desafios (Cortez Editora, 2010), em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Numa “radiografia quantitativa” a partir de estudos franceses, é possível que os resíduos urbanos globais oscilem entre 2,5 e 4 bilhões de toneladas, com uma “margem de erro”, conforme destaca o pesquisador, “note-se bem: uma margem de erro de ‘apenas’ 1,9 bilhão de toneladas de sobras”. No Brasil, a conta gira em torno de “78,4 milhões de toneladas, uma massa de refugos considerável sob qualquer ponto de vida”, pontua. E informa: “A população brasileira aumentou 15,6% entre 1991 e 2000. Entretanto, neste mesmo período, o lixo domiciliar expandiu-se 49%, três vezes o índice demográfico”.
Doutor em Geografia e referência em pesquisas sobre a problemática do lixo no Brasil, Waldman está cursando o terceiro pós-doutorado, estudando especialmente a reciclagem dos resíduos sólidos, e alerta para a ampliação acelerada de novas toneladas de lixo produzidas no Brasil. “As cidades brasileiras ampliaram os descartes no biênio 2012-2013, de 201.058 toneladas de lixo por dia para 209.280 toneladas. Uma expansão assombrosa de 4,1% em apenas doze meses! Uma calamidade se pensarmos as formas de gestão de resíduos em curso no país, a começar pelas 20 mil toneladas diárias que sequer são coletadas, dos mais de 3.500 lixões ativos e a continuidade do descaso com o trabalho dos catadores”, menciona.
Waldman chama a atenção para as propagandas em torno do “lixo zero”, lembrando que “não existe erradicação total do lixo”, porque “toda atividade humana gera resíduo, sendo que deste montante devemos excluir os rejeitos, sobras não passíveis de reaproveitamento”.
Maurício Waldman é doutor em Geografia, mestre em Antropologia e graduado em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Cursou pós-doutorado em Geociências pela Universidade de Campinas – UNICAMP e em Relações Internacionais pela USP.
Waldman iniciou em janeiro de 2014 seu 3º pós- doutorado, pesquisa centrada na área do meio ambiente com foco na questão dos catadores, incineração e reciclagem dos resíduos sólidos. A investigação possui respaldo institucional da Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE, de Presidente Prudente, e financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Maurício Waldman foi Chefe da Coleta Seletiva de Lixo da Capital paulista e Coordenador do Meio Ambiente em São Bernardo do Campo. Realizou duas traduções de monta: El Ecologismo de los Pobres – Conflictos Ambientales y Lenguajes de Valoración (de Joan Martinez Alier) e Fifty Major Philosophers (de Diané Collinson). Mais informação no Portal Acadêmico do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Sabe-se que a geração de lixo no Planeta tem crescido incessantemente. Existem dados a este respeito?
Maurício Waldman - Sim e não. Retenha-se que as disparidades nos levantamentos estatísticos constituem controvérsia endêmica entre os especialistas em resíduos. Seguramente, tal assertiva poderia ser estendida à totalidade dos prontuários contábeis devotados ao tema. Citando um exemplo paradigmático, os resíduos urbanos globais oscilariam numa radiografia quantitativa da lavra de especialistas franceses, entre 2,5 e 4 bilhões de toneladas. Note-se bem: uma margem de erro de “apenas” 1,9 bilhão de toneladas de sobras. Assim sendo, é obrigatório ressalvar que qualquer número apresentado pode apresentar discrepâncias de índole diversa.
IHU On-Line – É possível estimar quantas toneladas de lixo são produzidas no Brasil anualmente?
Maurício Waldman - No caso brasileiro, para nos atermos aos últimos dados disponibilizados pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais – ABRELPE, os refugos urbanos descartados pelos domicílios brasileiros durante o ano de 2013 girariam em torno de 78,4 milhões de toneladas, uma massa de refugos considerável sob qualquer ponto de vida.
IHU On-Line – Qual é a principal tendência da geração de lixo no Brasil?
Maurício Waldman - O que salta aos olhos é a expansão vertiginosa do lixo brasileiro. Levando-se em conta dados da ABRELPE e do Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM, um recorte matricial é a ampliação exponencial da ejeção de lixos em todo o território nacional. Indo direto ao ponto, este fenômeno fica demonstrado quando observamos que a população brasileira aumentou 15,6% entre 1991 e 2000. Entretanto, neste mesmo período, o lixo domiciliar expandiu-se 49%, três vezes o índice demográfico.
Neste particular, relatório técnico elaborado pela ABRELPE constata para 2009 um crescimento de 6,6% na geração per capita de resíduos sólidos urbanos com relação a 2008. Mas, para o mesmo ano, o crescimento populacional foi de somente 1%. Nos últimos dez anos, a população do Brasil expandiu 9,65%. Contudo, no mesmo decênio a geração de lixo cresceu mais do que o dobro este percentual, batendo a casa dos 21%. As cidades brasileiras ampliaram os descartes no biênio 2012-2013, de 201.058 toneladas de lixo por dia para 209.280 toneladas. Uma expansão assombrosa de 4,1% em apenas doze meses! Uma calamidade se pensarmos as formas de gestão de resíduos em curso no país, a começar pelas 20 mil toneladas diárias que sequer são coletadas, dos mais de 3.500 lixões ativos e a continuidade do descaso com o trabalho dos catadores.
IHU On-Line – Qual proporção desta tonelagem recebe destino adequado?
Maurício Waldman - Depende do que se entende por “adequado”. Certo é que a Lei 12.305 (de 02-08-2010), instituindo o Plano Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, estabelece como destinações ambientalmente adequadas procedimentos como a reutilização, a reciclagem e a compostagem, um elenco de práticas que desfrutam de consenso entre os especialistas. Por outro lado, admite o chamado “aproveitamento energético do lixo” — processos de incineração Waste to Energy — e a disposição final dos resíduos em aterros sanitários como normas operacionais aceitáveis, inclusive do ponto de vista ambiental. Trata-se de uma posição no mínimo questionável.
IHU On-Line – Por que os incineradores e os aterros seriam questionáveis?
Maurício Waldman - Assinale-se que do ponto de vista legal, o Senado suprimiu na última hora em sessão noturna o dispositivo que enquadrava a queima do lixo como opção apenas na eventualidade de outras medidas não serem viáveis. Com base neste subterfúgio, os senadores encaminharam sem demora o texto para sanção da Presidência, então exercida por Lula. Isso ao arrepio das mobilizações mundiais contrárias à expansão dos incineradores, que em países como o Brasil tem como um dos pontos programáticos mais fortes o apoio aos catadores urbanos. Quanto aos aterros, bastaria recordar as pesquisas de William Rathje, famoso antropólogo estadunidense fundador da Garbology (Lixologia em português), que os classifica como mausoléus de lixos, uma representação emblemática da incúria ambiental da civilização moderna. Formando verdadeiras montanhas de detritos, os aterros sanitários configuram a etapa final da parte do leão de muitos restos urbanos, impostados da condição de parceiros de uma civilização que esgota sem piedade as reservas de insumos naturais, com isso catalisando os pré-requisitos de sua própria autoextinção.
Deste modo, como julgar “adequado” um equipamento cuja função é enterrar materiais que, podendo ser compostados e recuperados, geram, pelo contrário, uma coletânea de estorvos ambientais? Isso é solução?
IHU On-Line – E no Brasil, o que está acontecendo com os materiais descartados nas lixeiras?
Maurício Waldman - Para começo de conversa — para focarmos as questões relacionadas à massa dos itens descartados — é importante sublinhar que o Brasil corresponde a 2,8% da população mundial e praticamente 3% do PIB global. Mas, por outro lado, seria origem de um montante estipulado entre 5,5% do total mundial dos resíduos sólidos. Isso para lembrarmos que a responsabilidade brasileira na geração mundial de lixo é inquestionável.
Embora o fato escape à percepção da maioria da população, o Brasil figura entre os maiores geradores planetários de descartes. Um segundo apontamento diria respeito à modelagem das cifras pelas estatísticas, que em alguns contextos afetam uma exata compreensão do problema. Recorde-se que os relatórios da ABRELPE acusam a existência de “alguma iniciativa de coleta seletiva” em 62% dos 5.570 municípios brasileiros em 2013, concentradamente nas regiões Sul (34%) e Sudeste (52%).
IHU On-Line – No que esta definição seria problemática?
Maurício Waldman – Ora, suponha que eu convide alguém para almoçar na minha casa e o convidado indague sobre o que iremos comer. Imagine se eu responder que vamos nos fartar com “algum tipo de comida”. Bem, “algum tipo de alimento” pode ser qualquer coisa: o que sobrou do jantar de ontem, pão amanhecido, uma maçã devorada pela metade ou alguns pedaços de pizza. Na mesma lógica “alguma iniciativa de coleta seletiva” significa que uma cidade pode ter um ecoponto isolado na rodoviária ou uma “ilha recicladora” em algum parque e, apesar desta precariedade, ser brindada com o status de disponibilizar serviço de Coleta Seletiva de Lixo – CSL.
IHU On-Line – Mas a proporção dos materiais reciclados tem aumentado?
Maurício Waldman - De um modo geral, sim. Mas, como sempre, muitos passos aquém do necessário. Em princípio o Brasil tem marcado algumas boas posições no ranking mundial da reciclagem. A recuperação da lata de alumínio atinge índices verdadeiramente icônicos, da ordem de 97,9%, imbatível no mundo inteiro. Quatro outros materiais — latas de aço, papel, plástico e embalagens longa vida — também apresentam porcentagens expressivas de reciclagem: 47%, 45,7%, 58,9% e 27%. Contudo, entenda-se que ocorre uma procura pelas sobras que auferem maior valor nas bolsas de recicláveis. Dito de outro modo, são resgatados os resíduos mais bem posicionados junto aos polos mais capitalizados da economia. Sem contar a irrisória porcentagem da compostagem da fração orgânica do lixo — em torno de 2%, uma das mais baixas do mundo —, ainda assim existem falhas gritantes atingindo ciclos produtivos que deveriam dispor de uma logística mais azeitada.
IHU On-Line – Em qual sentido?
Maurício Waldman - Confira-se o caso da indústria têxtil. Por incrível que pareça, o Brasil está importando plástico PET do Paraguai para abastecer a linha de produção de camisetas. Também compra no exterior restos de roupa para fazer estopa. Isso porque a captação no território nacional é insuficiente para atender a demanda das recicladoras. Damo-nos ao luxo de perder em torno de 50% do plástico PET nas sarjetas e desperdiçamos 90% dos restos têxteis. Atentemos que o Brasil importou mais de 223 mil toneladas de resíduos nos anos 2008-2009. Isso num país em que o lixo transborda por todos os lados.
IHU On-Line – A importação de lixo evidencia problemas de gestão?
Maurício Waldman - Sem dúvida alguma. Uma ponderação se impõe: estamos dando solução ao lixo dos outros e permitindo que nossos rios regurgitem garrafas plásticas e os aterros fiquem entupidos com retalhos das confecções. Esses são claros exemplos das falhas estruturais nos esquemas de interceptação das sobras. Neste cenário é difícil ficar deslumbrado com apontamentos indicando crescimento de municípios com CSL, divulgados pelo Compromisso Empresarial para a Reciclagem – CEMPRE. Na realidade, mesmo que o número de municipalidades com programas de CSL tenha passado de 405 em 2008 para 766 no ano de 2012, a população brasileira atendida pela CSL passou de 26 para 27 milhões.
Em síntese: um desempenho manifestadamente medíocre. Para arrematar, a eficiência do serviço público é, no geral, muito baixa. A porcentagem de rejeitos na composição gravimétrica se mantém elevada, principalmente pela ausência de investimentos em educação ambiental. A falta de proficiência técnica gera perdas indevidas de materiais coletados. As metrópoles brasileiras enterram fração considerável dos recicláveis colocados pela população nos contêineres das prefeituras. Não fosse o trabalho digno e honrado dos catadores, tecnicamente não existiria reciclagem no Brasil.
IHU On-Line – Este panorama tem se alterado?
Maurício Waldman - Sim, mas do mesmo modo que a reciclagem como um todo. Qual seja: vários passos atrás do que de fato a sociedade precisaria. Rubrique-se que, embora o PNRS reconheça o resíduo sólido reutilizável e reciclável como bem econômico, dotado de valor social, gerador de trabalho, de renda e promotor de cidadania, a resistência em firmar parcerias com entidades dos catadores é manifesta. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, dentre os programas de CSL em curso nos municípios brasileiros em 2008, apenas 43% destes envolviam a participação de cooperativas de catadores. Mesmo assim, tais iniciativas oscilam enormemente quanto à vontade política das prefeituras em calçá-las com apoio efetivo. Certificando esta última postura, a nota oficial divulgada pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR, em 05-08-2010, é lapidar. O MNCR alertou que somente 142 municípios brasileiros (2,5% do total) mantêm parceria com associações e cooperativas de catadores.
IHU On-Line – Qual a origem desta ausência de diálogo como os catadores?
Maurício Waldman - Existe toda uma carga de estereótipos que impregnam negativamente a percepção dos catadores junto a um segmento ponderável da opinião pública, particularmente devido à própria natureza da atividade destes trabalhadores, que manipulam materiais classificados pelo código cultural dominante como lixo. Existem muitos relatos de incêndios criminosos de galpões utilizados pelos catadores para a triagem dos recicláveis, apreensões ilegais de carroças, diversos tipos de impedimentos à catação e atos de violência direta perpetrados com apoio de forças policiais. Mantém-se um relacionamento contraditório com os grupos de catadores: necessários por proverem poderosos grupos empresariais das cobiçadas sobras que sustentam suas linhas de produção; rejeitados por força de estigmas culturais, raciais e sociais que se abatem contra a população pobre do país, agravados, no caso da população catadora, por singularidades que os tornam incompatíveis com o padrão sociocultural hegemônico. Apenas a mobilização permanente da categoria, apoiada por organizações religiosas e/ou ambientalistas, tem garantido a manutenção das suas conquistas, a defesa dos seus direitos e o avanço das suas reivindicações.
IHU On-Line – Quais são as principais problemáticas do lixo domiciliar no país? Quais são os resultados da sua pesquisa sobre o tema, considerando o período de 2006-2010?
Maurício Waldman - Num prisma conceitual, a obra do geógrafo Milton Santos, pontuando a importância dos processos nas configurações materializadas no espaço geográfico, nos proporciona um excelente marco teórico. A célebre máxima pela qual o espaço resulta de uma acumulação desigual de tempos é matricial para analisar os refugos e suas variáveis junto à realidade concreta e nas flexões do imaginário social. Retenha-se que a expressão modernidade é das que mais incorrem em afetações ideológicas. Portanto, não pode ser utilizada aleatoriamente. Citando Milton Santos uma vez mais, o geógrafo advertia que a globalização se especifica diferentemente no espaço mundial. Daí ser falho pressupor uma sociedade moderna abstrata. Coerentemente, numa formação socioespacial como a brasileira, uma gestão atendendo a princípios quanto aos materiais descartados não pode copiar metodologias — modernas ou não, tanto faz — em vigor na França, México, Noruega ou Egito. Conforme consta na Pesquisa de Pós-Doutorado pela UNICAMP e em Lixo: Cenários e Desafios, o que se tem no país são resíduos sólidos brasileiros, aos quais cabem soluções brasileiras. Neste quesito, medidas de incentivo e apoio aos catadores, desobrigação tributária da reciclagem, programas de lixo-educação, valorização de materiais autóctones, revisão da matriz energética e, inevitavelmente, a reforma do Estado, são todas urgentes, indispensáveis. Este é o debate central e fundamental. Mas ignorado quando se trata de esclarecer a questão teórica do lixo.
IHU On-Line – Qual é o impacto do lixo nas cidades? Quais os principais entraves gerados por conta da destinação incorreta do lixo? E os impactos em cidades brasileiras?
Maurício Waldman - Esta questão pode ser colocada em mão dupla: os impactos do lixo nas cidades e os que ocorrem a partir das cidades. O meio urbano se tornou, desde o século XIX, o epicentro da civilização moderna, eixo de um estilo de vida cada vez mais identificado com o consumismo e a utilização perdulária dos insumos naturais. Para comprovar esta colocação basta situar o cálculo de que as 29 mais glamorosas metrópoles europeias, visando manter em funcionamento sua engenharia urbana, arrebanham recursos de territórios 1.130 vezes mais extensos do que a área que ocupam. Outra coletânea de dados sobre o apetite urbano por insumos é a informação de que as cidades ocupam 6% da superfície terrestre.
Porém, reclamam para si 60% das águas doces e 75% dos recursos naturais planetários. Na ótica do relacionamento com o ambiente, a titularidade do meio urbano é inquestionável: as metrópoles mantêm o conjunto da biosfera sob seu tacão, submetida na condição de refém das expectativas, desejos e vontades citadinas. Assim sendo, pressionadas por demandas crescentes e correndo o risco de serem asfixiadas sob o acúmulo de dejetos gerados por elas mesmas, as cidades promovem impactos que se estendem numa escala extremamente vasta do espaço-tempo. Em suma: o meio urbano se tornou a expressão mais pura da Civilização do Lixo.
IHU On-Line – No que isso implica?
Maurício Waldman - Significa que, a partir desta linha de abordagem, não vem muito ao caso a magnitude da cidade. Tampouco sua inserção numa lógica mais tecnificada ou menos tecnificada. O conjunto das cidades está impactado pelos descartes que produzem e pari passu estão impactando o ambiente numa escala sem precedentes. Não importam as distâncias nem as especificidades. É neste seguimento que, para exemplificar, na região do Oeste Paulista — onde atualmente desenvolvo minha terceira investigação de pós-doutorado —, informações coligidas pelo Núcleo de Estudos Ambientais e Geoprocessamento – NEAGEO, da Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE, radiografaram 22 aterros ativos. Existem pistas de que é um para cada município. O único aterro sanitário em operação — situado em Presidente Venceslau — é prova cabal da falácia em imaginar que esta modalidade seja solução para a destinação final dos resíduos. Apesar das boas notas da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental – CETESB, órgão do governo paulista, o aterro, ao menos até recentemente, era frequentado por população do lixo, não tratava o chorume e fazia vista grossa para a liberação de gás metano na atmosfera. Isso ocorre numa região onde os horizontes texturais admitem ampla capilaridade para infiltração, em especial pela configuração pedológica, caracterizada por rochas sedimentares com porções de areia e argila. Pelo fato de todo o Oeste Paulista apresentar solos arenosos e nesta senda, com maior capacidade de percolação do chorume em face do meio poroso, é possível concluir que os majestosos recursos hídricos da região estejam em franca destruição. Uma tragédia dentre muitas com foco nos refugos.
IHU On-Line – Neste eixo de análises, qual seria a relação entre lixo e economia?
Maurício Waldman - Este é um verdadeiro nó górdio da economia moderna, comentado mais recentemente pelo economista ecológico catalão Joan Martinez Alier. Porém, consiste num tema antecipado pelo genial filósofo francês Abraham Moles. Na avaliação desse pensador, o dinamismo do mercado implica a indução do descarte contínuo dos bens, ejetados por um carrossel do consumo. No seu entrosamento mais literal, sua argumentação sinaliza que vivemos numa civilização consumidora que produz para consumir e cria para produzir, um ciclo onde a noção fundamental é a de aceleração. Numa única palavra, vivemos numa Civilização do Lixo. Em termos do sistema de produção de mercadorias, é importante notar que a função deste modelo é impulsionar os ciclos de reprodução do capital. Quanto mais rápida as mercadorias forem substituídas, tanto mais encorpado será o giro do dinheiro. Quanto mais lixo, mais giro de capital.
IHU On-Line – Quais seriam os dilemas em torno da gestão do lixo, tendo em vista as posições defendidas pelos catadores, empresários, defensores do processo de reciclagem e do processo de incineração do lixo?
Maurício Waldman - Os dilemas resultam das contradições que grassam em meio à materialidade social, refletida nas propostas defendidas pelos diferentes atores que disputam os resíduos. É inegável a existência de um rol de problemáticas declinando em antagonismos e crispações no campo empresarial, colocando setores do empresariado uns contra os outros, embates que afetam diretamente o avanço de políticas públicas de apoio aos catadores e de conservação dos recursos naturais.
IHU On-Line – Como ocorrem estes atritos?
Maurício Waldman - Pontuando melhor a afirmação, para as recicladoras os resíduos constituem matéria-prima. Contudo, para muitas empresas do segmento fabril, a reciclagem funciona apenas como uma possibilidade de minimizar custos de produção. Simultaneamente, para os setores envolvidos no esquema Waste to Energy, os rejeitos configuram meramente um combustível, uma sucata energética e não algo reaproveitável. Ou seja: o lixo não constitui insumo para o processo produtivo em si e tampouco é percebido como fator para a minimização de custos. Por sua vez, para os grupos empenhados com o gerenciamento dos aterros e coleta dos rejeitos, o que interessa é a quantidade de refugos domésticos disponíveis para serem coletados. Ignoram, portanto, a reciclabilidade dos materiais e a recuperação da energia. Fechando o círculo, aspectos econômicos envolvidos na atividade não são vistos na mesma perspectiva pelos catadores “avulsos” ou pelas cooperativas. Existem também contraposições entre os que lidam com o comércio de sucatas, entre os que as adquirem e os que retiram estes materiais das ruas, isto é, os catadores.
IHU On-Line – Neste fogo cruzado, como fica a gestão pública?
Maurício Waldman - Percebem-se neste imbróglio discordâncias entre os gestores públicos e a plataforma defendida pelos catadores, discrepâncias dos prefeitos frente às propostas das empresas que atuam com o lixo e todo um leque de contraposições programáticas no seio das próprias administrações. Particularmente, é obrigatório destacar a perpetuação de modelos ultrapassados de gestão, solenemente ignorando a reciclagem enquanto política pública efetiva e, quando muito, voltados para despachar os restos para um aterro sanitário qualquer.
IHU On-Line – Por que, mesmo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, os municípios encontram dificuldades em acabar com os lixões, considerando que não conseguiram cumprir a meta de erradicar os lixões até agosto?
Maurício Waldman - Antes de qualquer pontuação, seria absolutamente fundamental recordar que a caprichosa forma como a política é gerida no país não garante que a aprovação de uma lei pressuponha força normativa. Não é à toa — confirmando a leniência observada no cumprimento das normas legais — que o linguajar popular brasileiro predica que as leis possam “pegar” ou “não pegar”. Nesta linha de arguição, teríamos igualmente “não-leis que pegam”. Este é o caso bastante conhecido da “legislação” autogerida pelos condomínios impondo o uso do elevador de serviço para pobres, pessoas malvestidas, negros, mestiços e outros “indesejáveis”. Este “código legal” apenas deixou de vigorar com a promulgação de lei oficial proibindo essa prática discriminatória e pela pressão social, particularmente a movida pelo movimento negro. E para além da condicionalidade, existem também embaraços quanto à consecução das legislações, sujeitas em ser erodidas pelo mandonismo local, pelos interesses das grandes corporações, pelo arbítrio dos poderes governamentais e por intrusões políticas de todo o tipo. Nessa perspectiva, a cobertura legal assentada nas legislações torna-se letra morta ou é acometida de achaques constantes, visando inviabilizá-las ou pavimentar seu desmanche.
IHU On-Line – Quais os impasses na aplicação da Lei 12.305?
Maurício Waldman - O que estamos observando condiz em tudo com o que acabei de colocar. Os fatos estão aí à vista de todos. Creio que não houve qualquer voluntarismo na forma como se esboçou a legislação. O simples fato de ter circulado duas décadas pelos corredores do poder comprova a força dos interesses que pretendem sufocar qualquer normatização relacionada aos resíduos no país. Mais ainda, a persistência dos segmentos de opinião que percebem a gravidade da problemática do lixo. Contudo, o modo que marcou a atuação dos atores institucionais favoráveis à Lei está diretamente relacionado com as obstruções que têm perpassado pela sua aplicação. Isto pela simples razão de que os impasses jamais poderiam ser imputados exclusivamente aos adversários da Lei. Cabe aqui um papel importante à crítica política, dirigida em especial aos que, transitando por espaços institucionais, imaginaram que o exercício do senso público possa ser sumarizado por discursos pirotécnicos. E pior, que lançar mão de rompantes – tipo Esta Lei já pegou – seja por si só suficiente, desmentidos, aliás, pelo frigir dos acontecimentos. Transparece, pois, numa direção contrária à arrogância destes círculos e de assessorias anexas, que a prática se mantém como critério central da verdade.
IHU On-Line – Como o senhor vê as propostas em torno da produção de biogás a partir do uso de resíduos sólidos?
Maurício Waldman - Esta proposta é bastante atraente, mas cabem correções e reparos. Acredito que antes de pautarmos políticas para aproveitar o metano dos aterros, precisamos retroagir nos processos e radiografarmos o problema na origem. Nesta averbação se impõe o imperativo em reciclar nos próprios lares os restos culinários. A saber: no geral a reciclagem da fração úmida ou orgânica do lixo domiciliar recebe pouquíssima atenção dos cidadãos, das autoridades e dos especialistas. Seria cômico se não fosse sério consignar que, mesmo na literatura técnica e nos planos de gestão do lixo em todos os níveis administrativos, sequer se destaca que os orgânicos podem ser reciclados. Nesta vertente, temos imensa potencialidade colocada pelos refugos orgânicos.
IHU On-Line – Como isso poderia ser feito?
Maurício Waldman - É perfeitamente possível compostá-los nas residências. É o que comprova a notável iniciativa de entidades como Morada na Floresta, atuante na capital paulista, que tem divulgado e estimulado o uso residencial de minhocários. Reciclar resíduos orgânicos em casa permanece como prática essencial para solucionar o problema do lixo urbano. Entenda-se que no país as sobras de cozinha constituem fração majoritária dos descartes residenciais. Normalmente 60% do total. Mesmo os resíduos municipais da cidade de São Paulo — a mais cosmopolita das metrópoles brasileiras — perfazem 51% de orgânicos da sua composição. Tais emolumentos estatísticos falam por si mesmos. Implantando-se a compostagem residencial, mais da metade do lixo simplesmente desaparece, se tornando um recompositor de solo da melhor qualidade. Deste modo, transformamos um problema em solução a beneficiar o conjunto da sociedade.
IHU On-Line – Existem experiências realizadas nesta direção?
Maurício Waldman – Sim, claro. São muitas as experiências significativas de países europeus, sempre a partir da segregação na fonte. Hoje em dia, menos de 3% dos resíduos orgânicos do lixo domiciliar da Áustria é encaminhado para os aterros. Na Alemanha e nos Países Baixos mais de 80% da população colabora com a coleta seletiva de orgânicos.
Aproximadamente 33% dos belgas composta o lixo culinário. Complementando, seria oportuno registrar a possibilidade de geração de metano nas residências, poupando o contribuinte dos caros e nem sempre eficientes equipamentos geridos pelo Estado. Para comprovar, existe o sucesso dos planos chineses de geração de metano no âmbito doméstico. Em 2004, 15 mihões de domicílios chineses utilizavam biogás alimentado pelo próprio núcleo residencial. Esse número cresceu para 27 milhões de lares em 2010. No decênio 2003-2013, foram construídos 41,7 milhões de biodigestores de pequena escala no meio rural da China. Gestores públicos dos EUA, Canadá e de muitos países europeus têm demonstrado simpatia pelo biogás residencial, basicamente por solucionar na raiz dois graves problemas: a destinação final do lixo e a produção de energia.
IHU On-Line – Neste contexto, qual seria a melhor maneira de erradicar o lixo produzido ou reaproveitá-lo de algum modo, considerando o contexto brasileiro?
Maurício Waldman - Certifique-se de que não existe erradicação total do lixo. O chamado Zero Waste pode até encantar os ouvidos. Contudo, deve ser avaliado com base em dados objetivos. Objetivamente Lixo Mínimo soaria mais correto. Assinale-se que toda atividade humana gera resíduo, sendo que deste montante devemos excluir os rejeitos, sobras não passíveis de reaproveitamento. Claro que existe um avanço contínuo do aparato tecnológico abrindo brechas para o ingresso de materiais dantes descartados nos circuitos da recuperação. A caixinha longa vida e o isopor comprovam este raciocínio. Não eram recicláveis, mas passaram a ser. Todavia, tal como registrado em Lixo: Cenários e Desafios, a questão mais profunda que o lixo nos coloca é a questão do estilo de vida, dos padrões de consumo, das perspectivas imaginárias que modelam o comportamento da maioria das pessoas. No Brasil como em qualquer parte do mundo, o que a Era do Lixo está expondo de modo radical é a impossibilidade de mantermos o modus vivendi e o modus operandi que lastreou o surgimento e a difusão da civilização ocidental. Ao menos da forma como se tornou conhecida. Hoje, nos deparamos com uma versão contemporânea do enigma filosoficamente colocado pela Esfinge pela mitologia da Grécia antiga. É como se o lixo estivesse nos dizendo: Decifra-me ou devoro-te.
IHU On-Line – Então na sua avaliação o mundo já chegou numa situação limite em relação à quantidade de lixo produzido e às possibilidades de dar um destino adequado a ele, ou o desenvolvimento de tecnologias dará conta de solucionar esse problema?
Maurício Waldman - Seria uma vez mais meritório advertir que os lixos já assumiram os contornos de uma calamidade civilizatória. Em termos mundiais, apenas a massa de lixo municipal coletado, estimada em 1,2 bilhão de toneladas, supera nos dias de hoje a produção global de aço, orçada em 1 bilhão de toneladas. Por sua vez, as cidades, estacas geográficas da Modernidade, ejetam 2 bilhões de toneladas de refugos, superando no mínimo em 20% a produção planetária de cereais. Os números falam por si mesmos. Hoje, o mundo está mais voltado para gerar refugo do que produzir carboidrato básico. Neste quadro marcado por uma profunda inversão de valores, não creio que mais tecnologia seja a solução. Por sinal, a crise do lixo que presenciamos resultou exatamente da imposição radical de gradientes técnicos no ambiente de vida.
IHU On-Line – Qual seria a solução?
Maurício Waldman - Caso o problema seja técnico, precisamos então rever o que entendemos por técnica. Entre os antigos gregos, a noção de tekhne — origem das palavras técnica e tecnologia — estava impregnada de noções estéticas, incluindo a beleza e o bem-estar das populações. É exatamente disto que precisamos: repensar padrões, rever prioridades, reconsiderar ações e procedimentos. Precisamos acima de tudo de mais Humanidade, mais respeito ao meio ambiente e às futuras gerações. Debate este em cujo seio o Lixo desponta como uma preocupação essencial.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
(IHU On-Line)
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