“Qual modelo de desenvolvimento e ocupação que nós queremos na Amazônia? A construção das hidrelétricas que estão sendo feitas corresponde ao modelo que se deseja?”, questiona André Villas-Bôas em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone. Na avaliação dele, é um equívoco “achar que as hidrelétricas não são uma força de atração de um conjunto de investimentos que acabam modelando a forma que estamos ocupando a Amazônia”.
Entre os empreendimentos questionados na Amazônia, Villas-Bôas destaca a construção da hidrelétrica de Belo Monte, que está com 50% das obras concluídas, e a hidrelétrica de Tapajós, que ainda está no projeto. Diante do processo de deliberação acerca desses empreendimentos, o indigenista chama a atenção para a necessidade de que a Convenção 169 da OIT seja vista como “uma oportunidade para se entender amiúde quais as preocupações dos povos indígenas em relação aos impactos desses empreendimentos sobre eles”, já que a consulta pública não tem o poder de interferir nas decisões políticas. “Mesmo que o governo tome uma decisão a despeito do posicionamento dos índios, com base na consulta, ele pode talvez melhorar as medidas mitigatórias e compensatórias a partir desse diálogo que se estabelece”, reitera.
André Villas-Bôas esclarece ainda que a construção de hidrelétricas traz uma série de outras implicações na Amazônia, desde a exploração ilegal madeireira até o avanço de especulação em torno da mineração, o que gera uma tensão entre as comunidades indígenas, agricultores, grileiros e extrativistas, porque eles disputam “terras públicas que ainda existem nessas regiões, tanto no Tapajós quanto na região do Xingu”.
Para ele, a solução da questão indígena passa pela postura do Estado brasileiro de “incorporar a existência desses povos como um patrimônio e não um ‘estorvo’, como parecem entender alguns segmentos da sociedade brasileira”. Dessa forma, enfatiza, as “políticas têm de ter condições de se adequarem às diferenças deles e, nesse sentido, deve haver um cuidado maior por parte do Estado brasileiro para adequar as políticas ao perfil deles. Isso dá trabalho, mas existem antropólogos, pessoas que entendem e que estudam essas populações, lideranças que conseguem falar português e línguas indígenas. Então, há condição de criar políticas através de um diálogo, sem preconceito, discriminação ou ignorando essas diferenças culturais e fazendo políticas homogêneas que desconhecem as diferenças desses povos”.
E acrescenta: “Esse é o desafio, e para aceitá-lo o Estado tem de olhar essa população indígena como patrimônio do passado e do futuro do Brasil. Enquanto estivermos divididos, com uma visão de que índio é coisa do passado, e que a presença deles é uma ameaça ao desenvolvimento brasileiro, como os ruralistas têm colocado, realmente será difícil superar esse embate e haverá mais preocupações em relação a conflitos futuros”.
André Villas-Bôas é coordenador do Instituto Socioambiental – ISA.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Quais são as hidrelétricas já construídas e os projetos de hidrelétricas que afetam comunidades indígenas no país atualmente? É possível estimar quantas etnias indígenas e territórios já foram afetados por conta da construção de hidrelétricas e quantos ainda serão afetados caso as hidrelétricas previstas sejam construídas?
André Villas-Bôas – Não tenho essa conta, mas sei que, em relação a hidrelétricas já construídas, a hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, afetou vários territórios não só no represamento, mas também, sobretudo, na linha de transmissão. A hidrelétrica de Itaipu também atingiu alguns territórios de Guarani.
Em relação aos planos de construção de novas hidrelétricas, eles são elaborados a longo prazo, então é complicado dizer algo para além daquelas hidrelétricas que já estão com planejamento em uma fase executiva. No momento, entre as hidrelétricas que estão sendo construídas, estão Belo Monte e Tapajós, que é a bola da vez como uma usina que o governo quer viabilizar e, diz o governo, de forma diferente da de Belo Monte. Então, nesse momento o governo está investindo em diálogos e processos para tentar fazer um processo diferente. Não sei se vai conseguir, não sei se vai fazer. A hidrelétrica de Tapajós afeta várias etnias que estão naquela região, entre elas os Munduruku e Apiaká, que serão afetados de forma mais direta por esse empreendimento.
Qual a questão que está colocada em relação a isso? A questão primeira diz respeito à consulta prévia, já que o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT, que obriga a fazer o processo de consulta prévia informada às populações afetadas, sobretudo, às populações indígenas. O governo não fez isso em Belo Monte, disse que fez mas não fez, e está dizendo que fará no caso de Tapajós. A aplicação dessa convenção não está regulamentada, então como fazer a construção das hidrelétricas de maneira que ela seja consistente, principalmente no que se refere aos povos indígenas, já que há parcelas dessa população que às vezes nem sequer falam a língua portuguesa? Será uma consulta restrita de lideranças da lei em detrimento das pessoas que estão dentro das comunidades, das mulheres que ficam mais distantes da política, ou será uma consulta nas comunidades, com informações claras sobre a natureza do empreendimento, com tradução da língua para que elas entendam plenamente e possam se manifestar, e que essas manifestações também possam ser produzidas e registradas nesse processo de forma adequada? Essa é a grande questão: qual será o modelo de consulta que o governo vai utilizar?
A consulta não é vinculante, ou seja, mesmo os índios se posicionando contra o empreendimento, o governo não está obrigado, pela convenção, a acatar o posicionamento dos índios, mas ele tem de responder a todas as indagações dos índios sobre o empreendimento. Nesse sentido, a convenção é uma oportunidade para se entender amiúde quais as preocupações dos povos indígenas em relação aos impactos desses empreendimentos sobre eles. Mesmo que o governo tome uma decisão a despeito do posicionamento dos índios, com base na consulta, ele pode talvez melhorar as medidas mitigatórias e compensatórias a partir desse diálogo que se estabelece.
Ocupação da Amazônia
Outro problema é achar que as hidrelétricas não são uma força de atração de um conjunto de investimentos que acabam modelando a forma que estamos ocupando a Amazônia. Mas esta discussão não vem para a mesa: qual modelo de desenvolvimento e ocupação que nós queremos na Amazônia? A construção das hidrelétricas que estão sendo feitas corresponde ao modelo que se deseja? Esse processo poderia estar sendo discutido com a sociedade brasileira, mas as coisas vão acontecendo de um modo perpétuo, como se tivessem de acontecer mesmo.
Nesse sentido, Belo Monte é um espelho: hoje tem 50 mil pessoas a mais em Altamira, o que gerou uma situação de caos de serviços de assistência na cidade. Além disso, as principais zonas de desmatamento dos anos passados são justamente zonas de empreendimento da Amazônia e, nesse sentido, não há como negar a exploração madeireira, sobretudo, dentro das áreas protegidas — e parte das áreas protegidas são as áreas indígenas.
Outro problema diz respeito às invasões por conta das disputas pelas terras públicas que ainda existem nessas regiões, tanto no Tapajós quanto na região do Xingu. Então há um aumento da tensão por conta da disputa fundiária entre grileiros, agricultura familiar, extrativistas e índios. Há uma tensão também, sobretudo, por causa da mineração. Tanto o Xingu quanto o Tapajós são regiões que têm um potencial de minério. Estudos preliminares que foram feitos indicam que existe uma potencialidade a ser verificada, aprofundada e talvez explorada nessas regiões. Nesse sentido, a disponibilidade de energia aumenta a viabilidade da exploração mineral na região, e novamente decorre disso o impacto a essas populações mais fragilizadas que não têm seus direitos plenamente reconhecidos ou respeitados.
IHU On-Line – Em que momento a Convenção 169 da OIT deveria ser aplicada?
André Villas-Bôas – Ela deveria se dar desde o planejamento das hidrelétricas e em vários níveis. Nesse sentido, deveria se dar no nível Legislativo quando qualquer legislação pudesse afetar essas populações. Assim, esse processo precisaria ocorrer no planejamento e não somente na execução; ou seja, a rigor deveria haver várias etapas. O governo está restringindo a Convenção 169 da OIT após a decisão tomada. Desse modo, Tapajós será construído, então dificilmente o posicionamento dessas populações será considerado, porque a decisão política já está tomada. Se o governo quisesse ouvir essas populações, na fase de planejamento, a convenção poderia orientar quais lugares têm menos ou mais impacto na construção de alguma hidrelétrica, mas não é o caso.
IHU On-Line – Como você avalia as ações civis públicas que acontecem com a participação do Ministério Público e a demora do Executivo em julgar os casos?
André Villas-Bôas – O Judiciário está com um posicionamento bastante complicado porque as ações do Ministério Público já deveriam ter sido votadas. É ridículo, tratando-se de uma obra que tem o investimento de bilhões de reais, como é o caso de Belo Monte, em que quase 50% da obra já foi concluída, ainda não se ter uma decisão em relação às ações civis públicas. Imagine se sai uma decisão daqui a pouco. É absolutamente uma loucura pensar isso, porque se uma ação for votada, como será possível aplicar a decisão? Não fará mais sentido, porque a obra vai estar quase pronta. O fato estará consumado e como ficará uma decisão judicial dentro de um fato que está consumado? Então, é muito estranho por parte do Executivo não ter votado essas ações, nem que fosse para dizer que a ação não procede.
IHU On-Line – Como e quais comunidades indígenas já foram impactadas desde o anúncio e início da construção de Belo Monte até hoje, considerando que metade da obra já foi construída? O que mudou na vida das comunidades indígenas?
André Villas-Bôas – Esse processo tem vários momentos. No primeiro deles havia uma contestação e uma pressão de segmentos da sociedade, mas, sobretudo, de povos indígenas da Bacia do Xingu, que estavam receosos com a construção de Belo Monte, que, no seu projeto inicial, tinha mais quatro represamentos a serem feitos. Havia uma preocupação muito forte de que Belo Monte fosse uma espécie de “Cavalo de Troia” e a primeira de uma série de outros empreendimentos. Essa preocupação persiste.
Em 1989 o movimento conseguiu suspender a construção da hidrelétrica; naquele momento, o governo brasileiro dependia de financiamento externo, e os bancos de cooperação foram sensíveis à manifestação dos índios e não emprestaram o dinheiro para o governo construir a obra que hoje é Belo Monte. Contudo, a construção que começou a partir de 2010-2011 está feita com recursos do BNDES, e o governo não precisou pedir dinheiro para ninguém.
No primeiro momento, antes do leilão por parte das empresas construtoras que idealizaram Belo Monte junto com a Eletronorte, houve um processo de cooptação das comunidades indígenas da região mais próxima de Belo Monte. Veja, a maior parte dessas comunidades vive bastante isolada, estão abandonadas do ponto de vista da política indigenista brasileira, e passaram a sofrer um processo de cooptação com dinheiro, inicialmente por parte dos grupos construtores, depois esse recurso acabou sendo incorporado na dinâmica logo após o leilão, e virou um recurso emergencial. Ou seja, chegavam nas comunidades indígenas dizendo que tinham 30 mil reais por mês para gastar com eles, e eles poderiam fazer a lista do que queriam comprar.
Essa era a política e a postura do Estado brasileiro e da sociedade brasileira com esses povos, isto é, algo deplorável, repetindo o modelo colonialista do tempo de Cabral, de Colombo, tentando estabelecer um relacionamento através de uma cooptação da pior natureza que se possa imaginar. Depois do leilão, essa dinâmica assumiu o formato do que se chama de planos emergenciais, que foram contestados pelo Ministério Público e posteriormente suspensos. Contudo, o que existe hoje são os Planos Básicos Ambientais – PBAs, que na verdade são as ações mitigatórias pensadas e estruturadas para essas comunidades.
Impactos ambientais
O segundo impacto é em relação ao rio. Belo Monte tem uma particularidade: todas as usinas geralmente alagam, mas Belo Monte alaga e seca. Então, o que está acima do rio vai alagar, e o que está abaixo, vai secar. O que está acima é a cidade de Altamira, e isso significa que milhares de famílias ficarão desalojadas com o alagamento — algumas já estão sendo reassentadas.
Os índios, por sua vez, estão em uma região que vai sofrer ressecamento, porque Belo Monte vai desviar o curso do rio Xingu de uma grande volta de quase 100 quilômetros, que se chama Volta Grande do Xingu. Antes dessa volta começar, terá um canal e esse canal vai disputar a água com a Volta Grande. Então, o rio não vai secar totalmente, mas haverá uma disputa entre a água no canal que gerará energia e a água que seguirá pela Volta Grande, que terá seu nível de água afetado. Agora, não se sabe o quanto será afetado, porque esse hidrograma não está totalmente definido — hidrograma é a quantidade de água que vai gerar energia e a quantidade de água que vai virar no rio.
Na Volta Grande há várias comunidades e alguns rios tributários do Xingu que desembocam na Volta Grande, os quais também serão afetados. Os impactos no rio são imediatos: o rio já está mudando com a obra, está mais lamacento, vários peixes desapareceram, a pesca artesanal de peixes exóticos está prejudicada, porque os peixes sumiram com as explosões das bombas e com a mudança da água do rio.
Outra questão é que o rio será barrado e a navegação também será afetada e passará a ser substituída por estradas. Isso significa mais carros transitando na região e mais uma série de coisas que chegam nessas comunidades e que eles têm de gerenciar.
A exploração madeireira ilegal é outro ponto de impacto em função da obra, que também precisa de madeira, a qual também é utilizada para novas construções — e a madeira boa hoje em dia está dentro das áreas protegidas. Além disso, com o acúmulo de pessoas na região, fica ainda mais difícil de o governo regularizar as terras indígenas, porque há mais disputa por terra. Enfim, tudo isso acelera o impacto dessas comunidades.
IHU On-Line – Como lidar com as etnias que vivem isoladas no país?
André Villas-Bôas – No Brasil há um gradiente de isolamento muito grande, desde os índios que estão realmente em regiões inacessíveis e isoladas, como aqueles que vivem no Acre na fronteira com o Peru, até índios que estão morando na cidade. Nessa região do Acre tem um gradiente imenso. Por exemplo, os Xipaia são índios que têm uma população ativa dentro da cidade, mas que têm também uma população isolada na área deles. Eles praticamente perderam a sua língua original, mas estão lá, vivem.
Então, tem desde essa situação até a de grupos Tupi que quase foram dizimados na década de 70, na época do contato com a abertura da Transamazônica e que agora estão fragmentados. O plano emergencial gerou a fragmentação de muitos povos, porque diziam que iriam dar 30 mil reais por aldeia, então se existiam “x” aldeias, esse número “x” dobrou, para que mais índios tivessem acesso ao dinheiro.
Há, portanto, um processo de fragmentação da cultura indígena. Povos como os Igarapé falam muito pouco a língua portuguesa, com exceção de algumas poucas pessoas da aldeia, mas a grande maioria mal fala ou nem fala o português. Então há extremos naquela região. Por outro lado, há suspeita de existência de uma etnia isolada em uma região próxima da área de abrangência de Belo Monte, mas a FUNAI interditou a área e até o momento não encontrou ninguém.
IHU On-Line – Quais são as razões de grupos indígenas estarem fugindo do Peru para o Brasil? Como eles estão vivendo no território brasileiro?
André Villas-Bôas – Brasil e Peru não significam nada para eles. Essa fronteira internacional se criou num lugar que sempre foi território deles e eles ficaram alheios a esse processo político. Então, esses grupos estão transitando naquela região que compreende o Peru e o Brasil, e eles não têm a menor noção desses limites internacionais estabelecidos. O que tem havido é que a exploração madeireira no Peru tem pressionado os índios de forma negativa, eles tentaram se afastar e acabaram entrando na fronteira brasileira, mas eles já transitavam entre as duas fronteiras e estão agora mais para o lado do Brasil, onde estão se sentindo mais seguros.
Esses grupos são seminômades, ou seja, não criam uma dependência sobre o mesmo local. Eles usam os recursos em volta de uma aldeia e quando os recursos começam a ficar escassos, mudam para outro lugar próximo, estabelecem um novo aldeamento, a zona antiga se recupera em termos de recursos naturais e eles podem voltar para lá anos depois. A maioria dos grupos amazônicos funciona nessa lógica, porque essa é uma região que tem fartura de alimentos, e os índios sabem buscar esses alimentos, lidam nesse ambiente com desenvoltura, com habitações leves que têm a mesma durabilidade do tempo de vida da aldeia.
IHU On-Line – A questão da terra é central para pensar os direitos indígenas? Como a questão indígena deve ser tratada, considerando que há indígenas que vivem em áreas centrais, mas também indígenas que vivem completamente isolados?
André Villas-Bôas – O Brasil tem que incorporar a existência desses povos como um patrimônio e não um “estorvo”, como parecem entender alguns segmentos da sociedade brasileira. São povos que não têm, na sua estrutura política, um Estado. Então essa coisa separatista é uma preocupação totalmente infundada em relação a esses povos. Eles têm um patrimônio cultural de conhecimento que nós conhecemos pouco, e têm um resiliência com a qual nós deveríamos aprender, porque o mundo deles acabou quando os brancos chegaram e eles lidaram com isso com muita resiliência.
Em relação às demarcações de terras, o Brasil avançou, sobretudo na Amazônia, mas ainda existem casos emblemáticos de injustiça da sociedade com relação a esses povos, como, por exemplo, o caso dos guaranis no Mato Grosso do Sul. O governo tem de encontrar uma forma menos conflituosa para resolver o conflito que envolve essas comunidades e os ruralistas ou agricultores.
Por outro lado, as políticas têm de ter condições de se adequarem às diferenças deles e, nesse sentido, deve haver um cuidado maior por parte do Estado brasileiro para adequar as políticas ao perfil deles. Isso dá trabalho, mas existem antropólogos, pessoas que entendem e que estudam essas populações, lideranças que conseguem falar português e línguas indígenas.
Então, há condição de criar políticas através de um diálogo, sem preconceito, discriminação ou ignorando essas diferenças culturais e fazendo políticas homogêneas que desconhecem as diferenças desses povos. Esse é o desafio, e para aceitá-lo o Estado tem de olhar essa população indígena como patrimônio do passado e do futuro do Brasil. Enquanto estivermos divididos, com uma visão de que índio é coisa do passado, e que a presença deles é uma ameaça ao desenvolvimento brasileiro, como os ruralistas têm colocado, realmente será difícil superar esse embate e haverá mais preocupações em relação a conflitos futuros.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
Nenhum comentário:
Postar um comentário