As torrenciais chuvas em curtos períodos, um fenômeno associado à mudança climática, deixam em alerta os populosos bairros metropolitanos de Caracas, tantas vezes castigados por trágicos deslizamentos.
Caracas, Venezuela, 24 de junho de 2013 (Terramérica).- “O rio reclama seu leito, chegou até aqui”, disse Ana Polanco enquanto se esforça para levar a mão bem acima de sua cabeça na pequena casa de folha de zinco onde mora com seus filhos em El Hueco, um dos bairros do leste da capital venezuelana assediados pelo sujo e enganosamente calmo rio Guaire. Com quase 72 quilômetros de extensão, o Guaire cruza Caracas de oeste a leste em linha quase reta, para depois serpentear em agressivas curvas quando sai da cidade, onde há um quarto de século castiga com suas cheias os bairros vizinhos, como La Jóvita, La Línea ou El Hueco, este último ao fundo de uma colina escondida por moradias instáveis.
Moradores e autoridades locais fazem preparativos diante das temidas “novas chuvas”, causadoras de deslizamentos que ajudam a causar obstruções do rio, que, por consequência, não aguenta sozinho as águas da chuva e de afluentes, junto com os esgotos e toneladas de lixo sólido de casas, indústrias e comércios desta cidade de quase cinco milhões de habitantes. As “novas chuvas” estão “associadas à mudança climática: durante a maior parte do século 20 chovia pouco, aumentavam lentamente e depois amainavam, mas agora são curtas e fortes”, disse ao Terramérica o gerente de Meio Ambiente da Prefeitura Metropolitana de Caracas, Nicola Veronico.
“O volume de água que antes caía em semanas, ou em um mês, agora pode cair em uma manhã. Bastam duas horas de chuva torrencial para que o Guaire transborde”, afirmou ao Terramérica o diretor de Proteção Civil do populoso município de Sucre, Gabriel D’Andrea. Uma das transformações físico-naturais associadas à mudança climática são “as precipitações, não apenas a média, com o passar dos anos, mas seu grau de variabilidade”, destacou, por sua vez, ao Terramérica, a venezuelana María Teresa Martelo, integrante do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre Mudança Climática (IPCC).
Martelo recordou que esta mudança “não é de futuro, pois data da década de 1970, e a tendência é que nas próximas décadas a temperatura será mais alta, a disponibilidade de água menor, os ciclos chuva-seca alterados e o grande desafio é definir estratégias e medidas de adaptação”. O leste da cidade foi muito castigado em 1979 por fortes chuvas e pelo transbordamento do rio Guaire, por falta de manutenção das drenagens, e em agosto de 1993 pela tempestade tropical Bret, que assolou o norte da Venezuela e Colômbia, o sul da Nicarágua e algumas ilhas do sul do Mar do Caribe.
A tempestade Bret deixou 150 mortos na Venezuela, 77 deles em Caracas, além de aproximadamente 500 feridos e cinco mil desabrigados, dezenas de milhões de dólares em prejuízos e muita preocupação, porque as tempestades tropicais que assolam o Caribe podem, em associação com as mudanças do clima, alterar suas rotas um pouco mais ao sul. “Não precisamos de outra Bret para nos preocuparmos e ficarmos atentos. Aqui as pessoas já sabem que, quando chove em Las Adjuntas e Los Teques (nascentes do rio), é preciso se organizar e ir para áreas altas”, disse ao Terramérica Henry Hernández, dirigente comunitário de La Jóvita.
Hernández, um dos mecânicos que trabalham na rua separada do Guaire por um muro que, mais do que conter as águas, informa sua cheia mediante listas numeradas em uma valeta de cimento ao lado do rio. Quando o rio cresce, “inverte o curso da água que recebe da rede de esgoto, e, misturadas, voltam para a rua e as casas, alagando e danificando tudo por onde passa. Salvamos as vidas, mas todos temos histórias de móveis e outros pertences perdidos”, acrescentou.
“Temos marcadores do nível do rio três quilômetros antes do início das curvas, e os monitoramos, identificamos os locais de risco e conscientizamos as comunidades. Contudo, apenas até onde podemos, pois no município há mais de 1.800 bairros”, explicou D’Andrea. A prefeitura metropolitana maneja uma estação pluviométrica, vigia centenas de escoadouros e 350 riachos, muitos dos quais descem da montanha El Ávila, que separa Caracas do Mar do Caribe, além de enviar diretrizes aos cinco municípios em que se divide esta capital.
Entretanto, “além desses frágeis guarda-chuvas, é preciso vontade política para ir à origem do problema, porque se tende a ver o ordenamento territorial e a ocupação do território associados à economia mas divorciados da ecologia”, afirmou Evelyn Pallotta, diretora de Meio Ambiente do Estado de Miranda, que inclui o leste de Caracas e a maioria de suas cidades-dormitório. O Ministério do Meio Ambiente lançou um plano de drenagem do Guarie – que com suas águas arrasta grande quantidade de sedimentos, além de toneladas de lixo, desde pequenos vasilhames de plástico até máquinas enferrujadas –, para reduzir a elevação do leito do rio, o que facilita seu transbordamento em caso de uma chuva rápida.
“Drenar ou desassorear o rio são paliativos temporários, muito pontuais. Além disso, 80% das drenagens em Caracas não funcionam e a proteção de cimento, que contém o rio, cede com os anos”, disse ao Terramérica a diretora Pallotta, também professora de urbanismo na Universidade Central da Venezuela. “Sabe-se que nas margens do Guaire não se pode construir, que é preciso uma faixa verde de segurança de até dezenas de metros, então não se pode permitir que ali existam casas, escritórios, indústrias ou comércios. A solução deve ser estrutural”, ressaltou Pallotta.
Sua opinião coincide com a de Polanco, no estreito corredor de cimento e terra junto à fileira de casas, entre as quais está a sua, quase sobre o talude do rio. “Sim, a solução seria um plano de moradias para todos nós longe daqui, mas até agora só fomos recenseados”, queixou-se. As chuvas representam também uma ameaça por causarem deslizamentos em uma cidade semeada de colinas e vales, com grande parte de seu solo de origem metamórfica, que suporta há décadas o castigo de uma inclemente construção vertical.
Para atender uma reclamação crucial, o governo nacional lançou, há dois anos, a Grande Missão Moradia Venezuela, que levantou centenas de prédios sobre terrenos de Caracas antes descampados, ou que eram áreas industriais ou estacionamento de veículos. Desde que foram feitas essas construções, é denunciada a saturação de espaços, ligações inadequadas para os serviços, disposição indevida do lixo, carência de áreas verdes e de estações para tratar esgoto e sobrecarga de vias para veículos e pedestres.
“Os riscos associados ao clima também aumentam com esta supersaturação urbana”, observou Veronico. Por sua vez, Pallotta afirma que “o direito humano à moradia não pode violentar outros igualmente fundamentais, como os de água, saúde e meio ambiente são, nem a necessidade de uma cidade com parâmetros de desenvolvimento sustentável”. Envolverde/Terramérica
* O autor é correspondente da IPS.
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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação apoiado pelo Banco Mundial Latin America and Caribbean, realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.
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