Ao pensar sobre as perspectivas para 2015 na área ambiental, foi difícil escapar das reflexões sobre o mundo que minha filha, Alice, que nascerá em março, encontrará, e em que mundo viverá. No momento, estou bastante cético, ainda mais após ler uma entrevista de 2007 do cientista britânico James Lovelock, criador da famosa Teoria de Gaia, que recentemente voltou à tona e difundiu-se pelas redes sociais: certamente não será um mundo das maravilhas. O cientista prevê, entre outras coisas, que por volta de 6 bilhões de pessoas irão morrer e que o aumento de temperatura será maior que o previsto. Exagero? Pode até ser, mas, pelo princípio da precaução, terei que prepará-la para entrar na toca do coelho e para um possível mundo bizarro que irá encontrar.
Previsões de longo prazo são complicadas, no entanto. Por outro lado, as previsões de curto prazo ficaram por demais óbvias na área ambiental, por serem repetitivas: queimadas na estação seca do Brasil tocando o terror, deslizamentos em algum ponto da Serra do Mar na estação chuvosa, desmatamento na Amazônia arrefecendo pouco, ruralistas cada vez mais agressivos contra o meio ambiente (contra si próprios, na verdade) e governo pressionando pela hidrelétrica da vez na Amazônia – agora é o Tapajós que está na berlinda. Assim, irei restringir-me a dois temas apenas, um local e outro global: a crise da água em São Paulo e os acordos climáticos.
O tema água, embora seja muito caro ao povo nordestino há séculos, entrou fortemente na pauta do noticiário este ano ao afetar a maior cidade da América do Sul e os estados do Sudeste de uma maneira geral. Em muitos locais, onde a situação é menos crítica, teremos um respiro de alívio após as chuvas de verão. Mas, quanto a São Paulo, não espero o melhor, embora torça muito e sinceramente para que esteja redondamente enganado.
Não estou sozinho nestas previsões; baseio-me no que tenho lido de especialistas. Apesar de o religioso governador do estado rezar insistentemente para isto (nisto ele se parece com o coelho de Alice, olhando o relógio e dizendo “as chuvas estão atrasadas, as chuvas estão atrasadas!”), as chuvas não serão suficientes para encher os reservatórios. E pode ser ainda pior. Parece que um El Niño fraco está em formação e, no momento, as previsões de médio prazo do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do INPE indicam igual probabilidade para os três cenários possíveis (chuvas na média, abaixo da média ou acima da média). Ou seja, considerando as atuais informações, temos apenas 1/3 de chance de chuvas acima da média. E mesmo que fossem acima da média, não irão resolver o problema. No máximo irão apenas empurrá-lo com a barriga um pouco mais para frente. Qualquer semelhança com a situação ambiental global e as tímidas medidas paliativas NÃO é mera coincidência.
A insanidade em relação a este problema ocorre em múltiplos níveis e com múltiplos personagens, parecendo o chá de loucos ao qual a Alice da história compareceu. Também como na história, parece que o tempo congelou-se para os personagens, imobilizados que estão perante os acontecimentos. Só que, diferentemente do livro, eles não parecem ter consciência disto. Por exemplo, o que pensaria o leitor ao ver a seguinte manchete: “Reserva do Cantareira evita racionamento por 60 dias”, com explicações sobre o volume morto que pode ser usado do sistema. Diria tratar-se de alguma notícia que foi veiculada lá pelo meio do ano, correto?
Mas o leitor estaria errado. Foi uma notícia do final do ano. Só que de 2003 … (veja aqui). Quem era o governador à época? Algum palpite? Esta você acertou. Isto mesmo, Geraldo Alckmin. E o que ele fez? Planejou de forma séria no longo prazo? Realizou alguma obra relevante para a segurança do sistema? Coordenou-se com as prefeituras da região, protegeu os mananciais, córregos e rios que alimentam o sistema? Infelizmente não. Além de praguejar contra a pior seca dos últimos 70 anos (agora, dez anos depois, o número subiu para 80 e, daqui a 20 anos, pode ser a pior dos últimos cem anos … adapta-se a frase de acordo com a situação), havia instituído previamente uma medida de racionalização do consumo, como pode se ver em seu decreto de outubro daquele ano. Geraldo deve ter rezado muito também, só que, neste caso, parece que não funcionou muito. Sim, medidas de racionalização são legais e importantes, sempre, e eu as apoio integralmente, mas não resolveram o problema.
Mas obviamente que o devoto governador não tem responsabilidade isolada no cartório. O desmatamento na Amazônia pode ter seu quinhão de responsabilidade também. Então, soma-se à fatura os anos e anos em que todos os governos federais oscilaram entre a complacência irresponsável e timidez ineficaz na repressão (afinal, quem quer brigar frontalmente com o agronegócio e os poderes locais nos estados da região?). No longo prazo, como alguns especialistas têm alertado, poderemos ter que nos acostumar com um menor volume de chuvas em São Paulo. Isto graças à nossa insanidade coletiva, capitaneada por nossos governantes, de todos os matizes políticos e esferas do poder, de permitir a destruição de uma das fontes principais de água para São Paulo e outras partes do Sul-Sudeste-Centro-Oeste: as correntes úmidas provenientes da Amazônia (leia-se das florestas) que chegam até aqui pela alta atmosfera, conhecidas como rios voadores.
Chega de água. Falando do clima global, tivemos no final do ano passado em Lima, no Peru, mais uma Conferência das Partes (COP), a vigésima, relativa à Convenção Quadro das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas. Qual o resultado? Surpresa, surpresa: nada de consistente, apenas um documento vago e genérico, como tantos outros produzidos pela Convenção. Com o perdão do trocadilho infame, no Peru tivemos mais um frango desta Convenção. E aqui, faço uma previsão que acho tenho chance muito grande de acertar. A COP 21, que ocorrerá em dezembro de 2015, em Paris, terá exatamente o mesmo resultado, assim como várias das COPs dos próximos anos. A Convenção aqui parece-se com a Rainha Vermelha da famosa história de Lewis Carroll: corre, corre, corre, mas não sai do lugar.
Nossos governantes e sociedades ainda não se deram conta da incompatibilidade das bases do atual modelo econômico global com a preservação ambiental real (não os arremedos sugeridos por um mal definido “desenvolvimento sustentável”). Também não se deram conta de sua insustentabilidade e do risco que representa para a preservação da espécie humana no longo prazo. Em alguns rincões do mundo, inclusive, as forças ligadas ao modelo têm contra-atacado de maneira mais violenta, reforçando e aprofundando o modelo. Vimos isto por aqui em todo o imbróglio por trás do novo Código Florestal.
Por outro lado, cresce, embora em ritmo lento, a consciência acerca dos problemas relacionados ao sistema econômico e ao nosso modo de vida. Esta consciência é turbinada cada vez que a Terra responde às agressões com algum desastre do ponto de vista humano (como a crise hídrica). Como e quando este dilema de forças se resolverá é assunto para especulações em outros artigos.
Como a Alice da história, temos uma opção entre dois caminhos, no nosso caso, entre um futuro possível ou um desastre anunciado, mas não sabemos bem onde queremos ir. Ou melhor, a maioria ainda não tem plena consciência dos resultados de nossas escolhas. Mas, ao contrário da história, a escolha não é indiferente, e estamos sendo levados pelo caminho errado. Só espero e sonho que o dilema se resolva e tomemos o caminho certo, de forma que a Alice real ainda possa encontrar o mundo de maravilhas ao qual eu ainda tive acesso.
* Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é docente da Universidade Federal de Alfenas-MG e, apesar do pessimismo, lá no fundo tem sempre uma esperança.
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.
(Correio da Cidadania)
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