Resumo – Este ensaio narra a trajetória do artista brasileiro Frans Krajcberg, que completa 94 anos em 2015. Aborda três questões essenciais, do ponto de vista do autor: 1. A doação do Sítio Natura e de seus bens, como seu mais importante Manifesto; 2. A experiência do último conjunto de expedições à Amazônia, de 1984 a 1988, que o autor denomina deCiclo Juruena, e seu impacto na vida e obra do artista; e, 3. O desafio de Como criar a Expressão Brasileira, em que o autor sugere quatro medidas: 1. Elaborar o catálogo raisonée do artista; 2. Ampliar o debate sobre a vida e obra do artista; 3. Criar a escola de arte para jovens, tal qual proposto por José Zanine Caldas e Frans Krajcberg na década de 1970; e, 4. Divulgar a vida e obra do artista para a população da Amazônia, onde é bastante desconhecido, apesar de defende-la veementemente, e por ser a região de onde se origina sua matéria prima e inspiração.
Palavras chave: Amazônia. Arte. Florestas tropicais. Frans Krajcberg. Manifesto artístico. Queimada.
Abstract – This essay presents the Brazilian artist Frans Krajcberg. He completes 94 years in 2015. The author recommends three actions: 1. To consider the artist’s donation of his land Sítio Natura, and his belongings as his most important Manifesto; 2. Increase the debate about the artist’s work and life; 3. As proposed by Zanine Caldas e Frans Krajcberg in the 1970s, create an art school for the youth; 4. Disseminate the artist’s work and life to the population of the Amazon region where he is still unknown and from where most of his inspiration and raw material comes from.
Key words: Amazon. Art. Art Manifest. Frans Krajcberg. Forest Burn. Tropical Forests.
1. Introdução
Não pertenço a movimentos. Os únicos movimentos são os dos astros, marés e ventos. A Natureza é a minha arte! – Como posso fugir desta realidade? [KRAJCBERG, Depoimento ao autor,1985].
Este ensaio é uma versão ampliada do capítulo sobre Frans Krajcberg, que aqui trato como Frans, no livro Grandes Expedições à Amazônia Brasileira – Século XX, pela Editora Metalivros, de São Paulo, publicado em 2011 [MEIRELLES, 2011]. A maior parte das referências é de transcrição de gravações, entrevistas e notas em meus diários, coletadas entre 1984 e 1988, para que compusessem uma biografia sobre o autor. Mais de vinte anos depois, retomo o trabalho, e prossigo no processo de registro (de 2011 ao presente). A principal preocupação é apresentar o pensamento do artista como um manifesto permanente, relacionando-o a sua vida e obra, neste ensaio com atenção especial à causa ambiental.
2. A arte de doar
Doar seus bens ao patrimônio público – o Sítio Natura, em Nova Viçosa, Bahia, suas esculturas, obras de arte, livros e objetos – é o mais duradouro manifesto de Frans Krajcberg, que completa 94 anos em abril de 2015. Quiçá, o único manifesto que realiza sozinho, como veremos adiante.
No Brasil, raríssimos são os artistas e intelectuais que, num gesto de desprendimento, legam ao bem público, o resultado material arduamente amealhado ao longo de uma vida, incluindo parte substantiva de sua obra e bens.
Frans inspira-se em Roberto Burle Marx (1909-1994), que delega seu sítio em Guaratiba, no Rio de Janeiro, atual Sítio Roberto Burle Marx, ao patrimônio público. Diferentemente do colega paisagista e seu irmão que, em 1985, selam seu destino ao governo federal, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), Frans prefere o Governo do Estado da Bahia, para o Instituto do Patrimônio Cultural e Artístico da Bahia (IPAC)[i], seja pela morosidade na análise do processo pelo IPHAN, como pela rara acolhida dos governantes da Bahia e de sua Assembleia Estadual a seu projeto de vida. Atualmente, este governo garante, ainda, a sua segurança e a do Sitio Natura, tão importantes diante dos oito roubos sofridos na última década.
Frans já tentara ceder suas esculturas para exposições de longa permanência, como sucede com cerca de 110 obras para museu em Curitiba, mas frustra-se com a falta de cuidado da gestão municipal e retoma sua guarda[ii]. Houve, também outras iniciativas discutidas entre seus amigos e colaboradores de diversas partes do Brasil, para que se estabelecesse uma associação privada para conservar a obra do artista, intento que não prosseguiu. Somente a associação dos amigos de Frans na França é criada, como veremos adiante.
O ato de Burle Marx inspira-se, por sua vez, na doação um ano antes, em 1984, do naturalista Augusto Ruschi (1915-1986), de seus sítios ao IPHAN, conforme comenta seu colaborador, o paisagista José Tabacow [TABACOW, depoimento ao autor, 2010]. Trata-se do Museu de Biologia Professor Mello Leitão, no município de Santa Tereza, região serrana do Espírito Santo. Ruschi, inclusive, dos três é o único com descendentes diretos.
É preciso acompanhar a trajetória de Frans, para compreender o Sítio Natura como o seu mais profundo Manifesto. Frans é de uma tradição artística que o manifesto é relevado ao nível de obra de arte. O primeiro manifesto, de 1978, redige-o Pierre Restany (1930-2003), crítico de arte francês, na Língua Francesa – Manifeste Du Naturalisme Integrále(Manifesto do Naturalismo Integral). Frans o ratifica e, em verdade, será seu maior difusor.
Se, a todo tempo, a sua arte se nutre da pesquisa em campo – in situ; o arcabouço teórico de Restany contribui para que Frans respalde as opções artísticas ex situ, como comenta Restany –
foi então que eu redigi o Manifesto do Naturalismo Integral, e Frans percebeu antes de mais nada essa mensagem da natureza como uma disciplina do pensamento, uma reordenação do espírito e dos sentidos em relação ao espaço-tempo mecânico da civilização urbana. Se Mondrian passou da árvore ao quadrado, ele não fez nada além de utilizar uma das ínfimas possibilidades da árvore; então façamos explodir o quadrado para reencontrar a árvore! [KRAJCBERG, 1987, p. 13].
Ao que Frans confirma: a natureza integral é um virtual reservatório de novas formas [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985, p. 21].
O segundo manifesto é de 2011, três décadas depois, quando completa noventa anos. No Palacete de Artes Rodin Bahia, em Salvador, realiza a exposição Grito! Poucos se apercebem que Frans a dedica ao Ano Mundial das Florestas, comemorado pela ONU. Frans solicita ao poeta amazonense Thiago de Mello (1926- ) e a mim que redija um manifesto para que haja um Ano Internacional dedicado à floresta amazônica. O Manifesto é redigido como uma campanha – Grito de Esperança pela Amazônia, uma Carta aberta à ONU pela criação do Ano Internacional da Amazônia [MELLO, KRAJCBERG, MEIRELLES, 2011][ANEXO 2, ao fim deste ensaio].
O processo de criação envolve visitas e troca de e-mails e telefonemas. Ele me solicita que o leia por diversas vezes e acena; aqui e ali pede uma palavra mais dura, breves alterações, movimentos com a cabeça e os olhos a aprovar. Tem que ser forte, direto [KRAJCBERG, Depoimento ao autor, 2011].
Em 2013, Claude Mollard (1941- ), seu amigo, artista e curador francês, redige o Nouveau manifeste du naturalisme integral (Novo Manifesto do Naturalismo Integral) [ANEXO 4, ao fim deste ensaio]. Tal qual o manifesto de Restany, é por Frans validado. Este recebe pouca divulgação e sua discussão ainda é restrita.
O primeiro e o último manifestos são de caráter artístico, visando posicionar-se na história internacional das artes, e aquele com Thiago e comigo, de caráter ambiental e ativista. Ainda que a floresta tropical seja um tema universal, pois está presente em 90 países dos cerca de 200 países do planeta, o manifesto parte de problemáticas brasileiras.
Quanto ao seu manifesto vivo, o Sítio Natura, trata-se de seu manifesto solo, que mais tempo e esforço exigem. É mais de meio século em prol de uma nova arte e da Mata Atlântica do Sul da Bahia, a partir da convocação de José Zanine Caldas (1919-2001) no fim da década de 1960. É Zanine quem convence Frans a se instalar em Nova Viçosa. O sonho partilhado por Zanine e Frans é constituir um centro de pensar e produzir arte em prol da natureza – uma escola de arte capaz de aliar pintura, escultura, mobiliário, manifesto ambientalista, valorização das técnicas locais e outras questões relevantes. Não há propriamente um documento que detalhe esta proposta; mesmo assim, é possível inferir que esta proposta ainda está por se implementar, questão que será retomada ao final deste ensaio.
3. Frans nos obriga a adotar uma posição
O que Frans nos lega, a baianos, brasileiros e cidadãos planetários, não é apenas uma pequena área rural, que protege um fragmento simbólico de Mata Atlântica (Floresta de Restinga) no encontro com a Região Costeira; com algumas edificações de Zanine e de seu risco, e obras de arte; e, sim, um Manifesto – um novo olhar sobre a floresta e a sua ausência – a Queimada.
Seu sítio reúne, ainda, pedaços aparentemente inúteis de madeira – raízes, troncos, cinzas – trazidos a Nova Viçosa, Bahia, em um caminhão baú (seria um carro funerário?), por mais de três mil quilômetros de Juruena, Mato Grosso. Parte deste material é transfeito em obras de arte. A outra parte, reside, em um barracão, à espera de eventual utilidade – Falarão estes galhos despreparados, cascas de árvore e troncos calcinados, mais de Brasil que a maioria dos vetustos tratados acadêmicos?
E este conjunto material vem carregado de enormes indagações. Frans atazana a todos sobre a maneira como o brasileiro trata sua terra. Incomoda-se com o Brasil-de-arame-farpado, em que o proprietário (ou ocupante) sente-se o dono das árvores, das águas, dos bichos... Enfurece-se ao se perceber inteiramente cercado – não há terra sem dono[Krajcberg, depoimento ao autor, 1985]. Em uma estrada, Frans se sente numa prisão, sempre cercado: o Brasil, por todos os seus milhares de quilômetros de estradas é um campo de concentração.
Frans não compreende porque o brasileiro primeiro precisa desmatar para dizer que é dono. Frans prefere o caminho da denúncia, do grito, do pedido de socorro. Cada escultura, cada fotografia, cada discurso é um manifesto, um protesto, um soco no estômago, como gosta de comentar – é a revolta e o inconformismo.
É difícil não reagir a suas obras – manter-se impassível diante de um cemitérios de árvores com carvão no chão; ou, em frente a um monstruoso painel fotográfico que registra o homem iniciando a queimada. É como se as chamas alcançassem o paraíso que nos prometeram há tanto tempo e, agora, o consomem, diante de nossos olhos, a troco de algumas mercadorias comuns e toscas.
Frans rarefaz a fronteira entre a natureza e a cultura; obriga-nos a novos posicionamentos, a que criemos nossos próprios manifestos, como templos internos. Para Frans, a arte deve se posicionar, engajar-se, jamais ausentar-se da luta pelo reconhecimento da Natureza.
Após passear pelas imensas raízes da Flor do Mangue, escultura de grande porte que Frans nos presenteia, ninguém percorrerá o manguezal impunemente, sem provocar uma experiência, ao mesmo estética e conservacionista. Frans extrai de sua convivência com estas formações florestais do litoral baiano o tanino para que a arte valorize a Natureza, e com a dignidade que merece.
Em verdade, a proposta de constituir seu manifesto permanente –Natura – verbo, substantivo, adjetivo – está presente em toda sua trajetória. Exposições, livros, o sítio e manifestos assim se chamam e, insistentemente, se repetem como mantra, em permanente oração. Frans abraça seu espaço há décadas, debela o fogo, afugenta o ladrão de madeira, o desmatador, cinge a floresta, enxota o falsário de obra de arte e quem o quer fora de combate.
Ele quer a floresta pública, a água pública, as árvores públicas, os bichos públicos – o bem público. É uma área pequenina se comparada à mataria brasileira, um micro jardim botânico, combinação de árvores a partir das sementes de suas viagens pelo Brasil – um jardim de aclimatação como se usava chamar –, sala de entrada para o remanescente da Mata Atlântica de Restinga. E trata o sítio, com muito carinho, porque minha família está aqui: minhas plantas, meus cachorros… Aonde quer que eu vá fico pensando neles [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Diante da avassaladora ocupação da região, seu gesto parece inútil, mas de enormes consequências. Porque as pastagens devoram tudo, engolem até as margens dos rios e os próprios rios. E, agora, o reflorestamento de eucalipto, os loteamentos de casas de veraneio e outros empreendimentos avançam velozmente. Seu sítio Natura é o manifesto – o oásis, que grita, alerta para a necessidade de rever padrões na relação Homem e Natureza, exigindo novas posturas, novas reflexões, um novo pacto com a Natureza, para um novo momento do Antropoceno.
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No fim dos anos 1960, Frans considera mudar-se para São Luís, Maranhão, mas prefere a proposta de Zanine, que sonha instalar em Nova Viçosa, a poucos quilômetros da sede deste município, como comentado, um centro artístico diferenciado, dedicado à natureza[iii]. Zanine, nascido ali perto, em Belmonte, torna-se referência, como o mestre das madeiras, e procura, com sua arte, demonstrar o inconformismo com o desmatamento e o brutal desperdício da madeira. Quer resgatar as técnicas tradicionais ainda utilizadas pelos pequenos estaleiros de Viçosa para a construção de móveis e casas. Além da escola de artes, vislumbra um condomínio de artistas, uma integração entre o artista e o artesão e o aprendiz, a valorização dos saberes e fazeres locais.
Nova Viçosa é um destes portos que, nas primeiras décadas do século XX, assim como o vale do Rio Doce, exporta toras e grandes pranchões de madeiras tropicais duras, cada vez mais disputadas, como jacarandá-da-bahia (Dalbergia nigra), peroba (Aspidosperma polyneuron), jequitibá (Cariniana estrellensis), louro (Cordia trichotoma (Vell.)) e vinhático (Plathymenia foliolosa), enviados ao Rio de Janeiro ou diretamente à Europa. Vencida a mata, o golpe de misericórdia vem com o ciclo de pecuária, que nada respeita.
O condomínio de artistas não vinga. Gente como Carlos Vergara (1941- ), Jorge Amado (1912-2001), Carlos Scliar (1920-2001) e Chico Buarque (1944 – ) se interessa mas não leva o projeto adiante e as seguidas gestões municipais apoiam o loteamento da região por diversas vezes. Apenas Zanine e o persistente Frans ali se fixam. Carlos Vergara doa o sítio a Frans. Zanine permanecerá por cerca de uma década em Viçosa, depois viverá no exterior e no Rio de Janeiro; e, seus últimos anos serão em Vitória, no Espírito Santo, onde falece em 2001, com 82 anos.
Nestes quarenta anos, seu Sítio Natura se torna um museu a céu aberto. A primeira edificação é a casa projetada por Zanine, em 1971, denominada Ateliê Frans Krajcberg, em formato piramidal.
Quem planejou minha casa foi o Zanine, mas quem realizou e mudou fui eu (…). Foi muito difícil porque eu morei em uma tenda por vários meses. Eu vibrava com o mangue e com a natureza, lutava para preservar, denunciava, mas quantas cartas eu não recebi dizendo para eu parar senão iam me liquidar? Muitas! Mas não tenho medo disso[KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em 1984, quando conheço Frans, ele mora e trabalha neste ateliê há mais de dez anos. Somente em 1985, Frans se muda para a Casa da Árvore. Esta deveria ser a partir de um projeto de Zanine, mas Frans, depois de diferentes opções, decide seguir seu próprio projeto. A casa está a cerca de sete metros do chão, sobre o tronco de um enorme pequizeiro (Caryocar brasiliense), que Frans encontra calcinado e agonizante num pasto da região. A construção foi um processo difícil e moroso. Somente avançou quando um conjunto de sapatas de concreto foi lançado, de forma radial, para manter a estabilidade da casa. Nos últimos anos foi preciso reforçar a base de concreto e instalar vigas de suporte nas laterais da casa.
No interior desta casa-escultura há bancos, mesas e diversos móveis projetados por Zanine e Frans, a partir de troncos de árvore encontrados nas queimadas, usualmente, troncos ocos, brocados, rachados ou de baixo interesse para a serraria. Outras estruturas se seguem nas próximas décadas, de caráter mais utilitário – como oficina de trabalho, para abrigar e expor parte de suas obras, servir de escritório, garagem e atender outras necessidades.
Diferentemente do Sítio Burle Marx – que estimula uma série de viveiros de planta comerciais em seu entorno, além de contribuir para que Guaratiba se torne pólo de turismo –; o Sítio Natura, de Frans, até o momento, não sensibiliza suficientemente a sociedade civil local, o poder público municipal de Mucuri e Nova Viçosa, ou mesmo, o Governo da Bahia, como um epicentro de transformação cultural e ambiental, num esforço de valorização patrimonial natural e cultural.
Do ponto de vista cultural, observa-se a rápida perda dos saberes e fazeres que tanto angustiam Zanine. O que se afigura como urgente é a necessidade de registro, tombamento e salvaguarda deste patrimônio.
No que se refere ao aspecto ambiental, o Sul da Bahia é uma das regiões de florestas tropicais mais ameaçadas do planeta (hot spot), pelo seu grau de devastação e pela insuficiência de unidades de conservação públicas para proteger a biodiversidade e como representativas da paisagem original. A Mata Atlântica do Sul da Bahia apresenta um dos recordes mundiais de diversidade de árvores (plantas lenhosas) do planeta, com 458 espécies por hectare[iv]. Para se ter uma ideia, uma floresta temperada apresenta 20 a 30 espécies por hectare [MEIRELLES, 2007]. Não deveríamos usar nem o termo floresta para se referir aos dois ambientes tal a diferença que apresentam. Preocupa, ainda, que no Extremo Sul da Bahia, a maior parte das áreas remanescentes de Mata Atlântica esteja em mãos particulares, o que fragiliza a sua conservação.
4. O que Frans evidencia como notas biográficas
Uma leitura crítica das diferentes biografias ou linhas do tempo em publicações e web-sites que apresentam o artista, demonstra a imprecisão de diversas informações. Há, de um lado, o conhecido e usual desinteresse do artista em tratar de sua vida, sempre priorizando a obra, e confundindo seu interlocutores. Porém, é preciso pontuar os momentos mais significativos de sua biografia pois, trata-se de figura pública que desperta grande interesse.
Neste sentido estas notas procuram se ater ao que o próprio Frans comunica-me oralmente, em diferentes ocasiões. Inicialmente, em 1984 e 1985, solicita-me que registre em gravador e por escrito a sua vida. Duas décadas depois, a partir de suas próprias falas e com a sua autorização, algumas informações são complementadas. Não se visa reconstituir sua vida e sim, aproximar o homem e sua obra. Trata-se, somente, de registros breves, que merecem ser completados oportunamente em um trabalho de maior envergadura.
Nascido em 12 de abril de 1921, Frans viverá até os dezoito anos na comunidade judaica de Varsóvia, na Polônia. No início da II Guerra Mundial, os alemães assassinam-lhe a família e enforcam sua mãe, uma das chefes do Partido Comunista. A invasão de seu país o leva ao exército soviético e ao exercito polonês na frente russa, onde aprende o ofício da carpintaria e engenharia, e colabora na construção de pontes e obras de arte.
Uma bomba o soterra e será salvo por um amigo. Perde parcialmente a memória de passagens da vida, como o rosto da mãe, a data do aniversário… Herói de guerra, recebe das mãos de Iósif Stalin uma medalha. Esta lhe é arrancada em Nova Viçosa, Bahia, no quinto roubo, dos oito que sofre em seu sítio, pouco antes de completar noventa anos. Esta perda o abala profundamente.
É deste período a leitura de Alexander Puschkin (1779-1837), Vladimir Mayakovsky (1893-1930) e autores russos. Eu li muito Marx, no começo, na Rússia [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985]. No entanto, é com o cineasta Akira Kurosawa e seu filme Dersu Uzala, de 1975 que se identifica –– Aquilo que é história! [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985]. Seu roteiro, aliás, baseia-se em obra de um autor russo, Vladimir Arsenayev (1872-1930)[v], o explorador da taiga, a grande floresta de coníferas da Rússia e região.
Depois da II Guerra, estuda arte em Stuttgart, Alemanha, com Willi Baumeister (1889-1955), que o premia e o indica a prosseguir os estudos em Paris, França. Vive brevemente na capital francesa, em contato com o mundo das artes, amigo de Marc Chagall (1887-1985), cuja família conhecera na Rússia, mas, inquieto, prefere migrar.
Quando lhe pergunto sobre os artistas que mais admira, responde alegre, com os olhos brilhando mostrando no ar as grandes colagens (gouaches découpés) de Henri Matisse (1869-1954) em seu fim de vida:
– Eu estudei em um meio bem abstracionista, com grande influência concretista e novas formas da Bauhaus e tudo isso… E depois a arte bruta de Dubuffet, algumas coisas do Braque, Miró, Léger[vi]… E principalmente Matisse, porque a grande exposição de Matisse me deu uma lição enorme! [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em 1949, as circunstâncias o levam ao Brasil. O contexto no qual se insere Frans é o de migrante europeu do pós-guerra, sem família ou contatos pessoais ou comerciais, sem recursos financeiros ou materiais, desconhecimento da língua e dos costumes. Para Pierre Restany, que conhece na década de 1960:
O imigrante polonês que desembarcou no Brasil tem uma necessidade urgente de renovação afetiva. É a natureza do Brasil que lhe trará a salvação e o gosto de viver. (…) Krajcberg tornou-se um autêntico brasileiro por osmose naturalista. Esta osmose naturalista é ao mesmo tempo a projeção de um estado de consciência [RESTANY inKRAJCBERG, 1987, p. 14].
Inicialmente, sobrevive ao pintar cerâmica, paredes e, principalmente, galos-de-briga, animais e outras temáticas em azulejos para a Osirarte, de Rossi Osir (1890-1959), onde já colaboram artistas, como os do Grupo Santa Helena, Mário Zanini (1907-1971) e Alfredo Volpi (1896-1988), de quem Frans se aproxima.
Vive em Praia Grande, São Paulo, em casa de Mário Zanini, e divide ateliê com Volpi, que muito o considera. Em 1952, Lasar Segall (1891-1957), compra-lhe uma gravura para financiar sua ida para Monte Alegre do Sul, Paraná – Segall me mandou, porque eu vivia uma miséria muito grande em São Paulo [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Ali está a família Klabin, também da comunidade judaica, que prospera com a colheita do pinheiro-do-paraná (Araucaria angustifolia), o plantio de pinus e a nascente indústria de celulose e papel.
Eu trabalhava como engenheiro e desenhista técnico, desenhando casas e pontes, tinha uma casa muito conhecida no mato, com a maior coleção de orquídeas do Brasil. Depois parei com esses trabalhos e vivia só de cerâmica[KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Pouco tempo permanece nos ofícios relacionados ao reflorestamento, preferirá a reclusão da cabana na floresta, onde pesquisa sobre a cerâmica e pintura. Depois de um incêndio em que perde tudo, inclusive sua grande coleção de orquídeas, decide sair do Paraná para se aventurar em novas formas de arte além da cerâmica.
Segundo seu depoimento, trabalha arduamente para se fazer respeitar e reconhecer. Em 1951, participa na montagem da Bienal Internacional de Arte de São Paulo (Ia Bienal de São Paulo)
– Ciccillo Matarazzo foi como um pai para mim, eu montei toda a Bienal, e tinha cinco quadros meus que ninguém sabia que eram meus, eu trabalhava no Museu de Arte Moderna. Yara Fernandes, que era secretária de Cicillo, me ajudava muito [KRAJCBERG, depoimento ao autor, julho, 2011].
É desta época, nos encontros vespertinos de artistas promovidos por Ciccillo Matarazzo Sobrinho (1898-1977), no Museu de Arte Moderna de São Paulo, que Frans amplia seus contatos com o mundo artístico paulista e brasileiro.
Em 1956, muda-se para uma casa abandonada, cedida pelo pai de Sérgio Camargo (1930-1990) em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Nesta época os artistas se reuniam e se ajudavam uns aos outros… [KRAJCBERG, depoimento ao autor, julho, 2011]. Seu grande amigo Franz Weissmann (1911-2005), logo mais dividirá com Frans a casa-ateliê em Laranjeiras.
Em 1957, na IVa Bienal de São Paulo, o prêmio de melhor pintor nacional será para Frans Krajcberg; e, o de melhor escultura, para Frans Weismann. Aos 36 anos de idade, o prêmio abre-lhe o caminho para a venda do primeiro quadro ao mercado.
E quando ganhei o prêmio eu não esperava, só queria que entrasse um pouco de dinheiro para não passar fome. Nesse período era um concretismo danado, e eu sofri muito disso, então quando eu ganhei o prêmio foi uma surpresa para todo mundo [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em Paris, a partir de 1958 e na década de 1960, viverá um período efervescente. Convive com grandes artistas, como Pablo Picasso (1881-1973), Georges Braque (1882-1963), Marc Chagall e Joan Miró (1893-1983). Estes circulam no perímetro da arte, como a Galerie du XXe Siècle, que, inclusive, publica uma revista. Braque vê uma exposição de Frans e quer trabalhar com ele. Juntos realizam duas litografias – Frans molda o papel e Braque pinta. Uma gravura de Braque também desaparece num dos roubos de Nova Viçosa.
Em 1964, recebe o Prêmio Cidade de Veneza, na XXXII Bienal de Veneza, na Itália, a primeira premiação fora do Brasil. Estes prêmios e a atenção a sua obra permitem-lhe longas estadias na Europa. A fotografia entra em sua vida em 1967, em Ibiza, nas Ilhas Baleares, Espanha, como esforço de registrar sua obra a partir do desenho da natureza na praia. Sua obra consiste em fixar relevos da areia, terra e pedra em moldes de gesso, que depois são passados para outros suportes. Os quadros de pedra abandonei logo, porque eu vi que tudo que eu fazia era mais pobre que a natureza[KRAJCBERG, Depoimento ao autor 1985].
Frans reputa essa fase como muito produtiva e de grande reconhecimento, com a maioria das obras compradas por colecionadores da Europa. No entanto, um chamamento interno o leva a deixar a França. Busca algo novo. Frans vê Paris como centro de repercussão e não de produção. Frans está convicto sobre seu próprio norte: Não pertenço a movimentos. Os únicos movimentos que me levam são dos astros, marés e ventos. A Natureza é a minha arte! – Como posso fugir dessa realidade? [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985].
A partir deste momento, alterna estadias em Paris e no Brasil. Terá, ainda, um pequeno apartamento no Rio de Janeiro, próximo a sua grande amiga, a artista Anna Letycia Quadros (1929- ), intercalando viagens ao interior ou Nova Viçosa, a temporadas urbanas. Na última década, seus amigos criam uma associação independente, a Associationt des Amis de Frans Krajcberg, que expõem as obras que Frans doa para o Espace Krajcberg. A Prefeitura Municipal (Mairie de Paris) e a Fundation Yves Rocher apoiam a iniciativa.
Naturalizado brasileiro desde a década de 1950, é um dos mais brasileiros entre os artistas e, certamente, um dos que melhor o representa. Nada irrita mais Frans quando se o apresenta como um artista polonês. Em verdade, raros os artistas brasileiros que lutam, incondicionalmente, pela natureza do Brasil. Daí, poucos compreenderem o seu caráter irascível, a determinação absoluta e os princípios inegociáveis, decidido a fazer exclusivamente o que acredita.
5. O viajante naturartista – 1970 – 1984
Todo mundo fala Brasil!, mas ninguém conhece este país! [KRAJCBERG, Depoimento ao autor, maio 2011]. Desde o início da década de 1970, Frans acompanha, irrequieto, a aniquilação total da Mata Atlântica. Em 1985, registro em meu diário:
Frans se mostra mais triste – ele me confessa que gostaria de realizar seus grandes sonhos de viajar sem cessar pelo Brasil, numa Kombi-casa ou num barco pela Amazônia, e se isolar. (…) mas não conseguiu ajuda, ninguém ajuda…[KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985, p. 15].
Na década de 1960 e 1970, viaja longamente pelo país. Encanta-se com o antigo casario de São Luís, no Maranhão, mas é aos manguezais de Vicçosa, às formações rochosas espetaculares do Parque Nacional de Sete Cidades, no Piauí, e às terras ferruginosas e coloridas de Itabirito, Minas Gerais, que dedica maior atenção. Em relação a Minas Gerais comenta – Eu esperava horas a terra arrebentar, eu me sentia parte da Natureza! [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985].
Em outro momento, assevera,
Eu trabalhei vários anos em Minas Gerais, uns 3 a 4 meses por ano. Eu acampava nas montanhas e, sem dúvida, adorei as paisagens e o clima de lá. (…) Comecei com as flores secas, e isso foi descoberto tão rápido, que eles vendiam nas praças das cidades, ou seja, os caboclos captavam a minha arte. [KRAJCBERG, depoimento ao autor, fita 5b, 1985].
O Parque Nacional de Sete Cidades, no município de Piracuruca e vizinhos, no Piauí é indicação de Zanine Caldas, que trabalha neste parque criado em 1961. Em Minas Gerais reside isolado, buscando conhecer os diferentes pigmentos resultantes do solo ferruginoso.
No final da década de 1970, com mais de 50 anos, descobre a Amazônia; e, daí em diante, esta será o centro primário de suas atenções. É para a Amazônia que realiza suas expedições de coleta e pesquisa nas próximas duas décadas. É para a Amazônia que seu manifesto se dirige, o manifesto da Amazônia em seu contexto planetário.
Com o amigo Sepp Baendereck (1920-1988), realiza longas viagens pela região e pelo Pantanal Matogrossense. Estas ocorrem entre 1976 e até a morte de Sepp, em 1988. Brigam o tempo todo e um reclama do outro sobre qualquer tema, mas seguem viajando juntos, disputando as melhores fotografias, o melhor lugar no barco etc. Se Frans adquire uma máquina fotográfica de última geração, Sepp obtém uma ainda melhor… Frans é mais ousado e irrequieto, não tem limites; Sepp raramente se arrisca a sair da trilha, da estrada ou do barco.
A cineasta paulista, Regina Jeha, companheira de Sepp, acompanha-os em algumas viagens ao Pantanal e Amazônia. É Sepp quem financia as viagens. Ele, um bem-sucedido publicitário, compra um antigo contratorpedeiro da II Guerra Mundial (similar ao Calypso, de Cousteau), o Juruena, e o transforma em iate de lazer. Nas primeiras expedições, de barco regional ou no Juruena, sobem o Rio Amazonas, o baixo Rio Negro, o médio Solimões e o alto Purus.
Em 1978 é a vez da dupla levar um amigo a uma viagem ao Rio Negro. Trata-se de Pierre Restany, um dos maiores críticos de arte e, naquele momento, na revista de Franco Maria Ricci.
O Restany já tinha feito um prefácio para meu catálogo em uma exposição, e essa foi a primeira vez que ele percebeu a riqueza de nossa conversa, então na viagem para a Amazônia ele já me conhecia um pouco. Por exemplo, a fotografia, que eu já fazia muito, ele percebeu a importância dela e começou a fazer também. Mas esse acontecimento foi ao acaso. Porque ele me via vibrar (com a fotografia) e começou a entender e vibrar também. No fim, discutindo sobre a crise da arte e tudo isso, de repente ele falou que ia fazer um manifesto [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em agosto de 1978, Restany escreve:
Nós subimos toda a bacia do alto Rio Negro, a Noroeste do Amazonas, Frans Krajcberg e eu mesmo, em companhia de Sepp Baendereck. Foi então que eu redigi o Manifesto do Naturalismo Integral, e Frans percebeu antes de mais nada essa mensagem da natureza como uma disciplina do pensamento, uma reordenação do espírito e dos sentidos em relação ao espaço-tempo mecânico da civilização urbana [KRAJCBERG, 1987, p. 13].
O Manifesto do Naturalismo Integral também é conhecido como Manifesto do Rio Negro. O texto em Língua Portuguesa, na íntegra, encontra-se ao final deste ensaio [ANEXO 2]. O original é escrito em francês, língua materna de Restany – Manifeste du Rio Negro du Naturalisme Integral.
No início da década de 1980, Frans retorna, sozinho, a Belém para realizar trabalhos com cipó, especialmente em cipó-titica (Heteropsis sp.). Em 1984, procuro Sepp para saber por que seu barco se chama Juruena. Imediatamente, este me apresenta Frans. Sucede um intenso período de aprendizado, viagens, discussões sobre arte e natureza, que mudam a minha vida. Acompanho Frans em viagens a Nova Viçosa, ao Lagamar (com Rodrigo Mesquita) e, principalmente, a Juruena, no norte de Mato Grosso.
Em 1984, quando o conheço, depois de Frans viver mais de três décadas no país, ele ainda se incomoda por ser pouco reconhecido nesta terra. Acredita que somente na Europa o valorizam por sua arte. Em 10 de julho de 1985, comenta:
Agora que eu tenho sessenta e quatro anos, eu ainda não consegui realizar o sonho de me isolar e ser dono do meu nariz. Eu ainda preciso fazer obras pra vender e me sustentar, e o pior é que não sou um artista bem cotado no mercado. Anoto: ele ficou muito triste [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985].
6. O Ciclo Juruena – 1984 – 1988
Quiçá, a face menos conhecida da vida de Frans Krajcberg seja a de suas expedições a Juruena, no noroeste de Mato Grosso e a associação a suas artes plásticas e manifestos. Afinal, depois deste período, Frans não mais viaja para pesquisar e coletar materiais, a não ser para realizar exposições e propalar o seu manifesto – o grito em prol da natureza – em conferências e eventos a que é convidado no mundo todo.
O registro sobre este período em Juruena é precário e escasso. A maior parte dos livros, artigos ou informes são imprecisos, incompletos e, por diversas vezes, incorretos, sobre este conjunto de expedições e uma residência de alguns meses em Juruena. Em verdade, o Frans que reconhecemos é o Frans do Ciclo Juruena. A minha compreensão é que, aos 63 anos, encontra em Juruena a força para seu momento de maior criação e reflexão mais profunda.
A viagem à fronteira pioneira, ao Brasil Queimado, provoca-o (incendeia-o e o chamusca) de tal maneira, que sua obra se consolida e alcança o apelo internacional que almeja. Até então, a Amazônia que conhecera era a Amazônia Fluvial, em certa maneira, idílica e bucólica, com apenas feridas, aqui e ali, na floresta. No norte de Mato Grosso, e nos percursos até Juruena, verá a destruição em grande escala, o corpo da Amazônia queimado; e, mais, conviverá com este processo, diferentemente do papel de espectador-contemplador nas viagens fluviais na década de 1970. Em Juruena ele age, entra na mata, na queimada, busca objetos, fotografas, participa do processo criativo com a Natureza.
É o Ciclo Juruena que lhe permite discutir, na escala planetária, a relação Homem e Natureza, apresentar o seu manifesto, sem peias ou redomas. Frans impinge ao brasileiro A Queimada como a marca que forja o Brasil – a ferida que nos expõe. A marca que explica a história da ocupação do país, tal qual o ferro a fogo marca o couro do gado – este tem dono!
Em tempo, uma das primeiras obras de arte, quatrocentos anos antes, nos moldes europeus, de outro Frans, o holandês Frans Post (1612-1680)[vii] retrata em Gezicht op Itamaracá (Vista de Itamaracá) uma encosta litorânea em Pernambuco, desmatada e ferida com uma imensa erosão (voçoroca) [MEIRELLES, 2014, p.220].
Frans nos exige enxergar como banalizamos e ignoramos A Queimada. Quão é importante para nós, brasileiros, subjugar a floresta, controlar a natureza, a queimada como meio, caminho. E, como, neste processo, relevamos a presença dos povos originais e das populações tradicionais, como desperdiçamos a madeira e os recursos naturais. Depois de conhecer a obra de Frans, ninguém sentirá A Queimada da mesma maneira.
***
Importa compreender o contexto do extremo noroeste de Mato Grosso no início da década de 1980 para situar sua intervenção. Desde o início da ditadura civil-militar, esta região está destinada a ser uma das fronteiras pioneiras de ocupação da Amazônia, por meio de empreendimentos de colonização de grande porte, a partir de Cuiabá, envolvendo milhares de famílias. Os projetos públicos recebem beneficiários da reforma agrária; e, os privados, além deste público, atendem, principalmente, migrantes do Sul do Brasil, colonos, que vendem seu pequeno lote de terra para adquirir uma área bem maior [MEIRELLES, 2007].
Entre os projetos de colonização privados, estão os de Juruena e de Cotriguaçu-Juruena, iniciados no fim da década de 1970 e início dos anos 1980, respectivamente. Estão a cargo da empresa Juruena Empreendimentos de Colonização Ltda., dirigida por meu pai, João Carlos de Souza Meirelles.
Como se trata de região de floresta tropical, com grande estoque madeireiro, a indústria de processamento de madeira também instala suas serrarias e laminadoras nos núcleos pioneiros, e sua venda contribui para financiar o desmatamento dos lotes rurais e dinamizar a economia desde o inicio de sua interligação com o Sudeste do Brasil, seu principal mercado.
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Em setembro de 1984, Sepp Baendereck e Frans Krajcberg e eu organizamos uma primeira viagem a Juruena. De Cuiabá, são cerca de duas horas em monomotor, sobrevoando uma região ainda coberta de florestas, com raras estradas e campos de pouso. Além de percorrer as estradas e os núcleos pioneiros da colonização, as nascentes cidades de Juruena e Cotriguaçú, ainda visitamos Aripuanã. Ali está, no Rio Aripuanã, o Salto de Dardanelos (ou das Andorinhas), com cerca de 100 metros de altura, hoje destruído por uma usina hidrelétrica.
A partir desta visita, deslumbrado pela beleza da floresta e, ao mesmo tempo, chocado com as queimadas e o desprezo pela madeira, Frans decide instalar uma base de trabalho em Juruena. Realizará expedições anuais de pesquisa e coleta entre 1984 e 1988, com uma residência maior em 1988.
Contribuo apoiando sua iniciativa, porém, o mérito deste préstimo ao seu trabalho, é de meu pai, com a cessão de moradia, galpão para atelier, guarda de material, veículo de apoio e transporte, segurança entre outros. Sem esta guarida, sua estadia seria impossível, na medida que, localmente, é visto como um gringo lunático e mal humorado, que impede as pessoas de queimar e decidir o que fazer com sua madeira.
Em 1985, Frans retorna a Juruena, agora por via terrestre. Acompanho-o nesta expedição, assim como um jovem assistente de Nova Viçosa. Em uma velha camionete Ford, ano 1979, percorremos 3.216 quilômetros do Rio de Janeiro a Juruena. No caminho, passamos por Lavras e Formiga, em Minas Gerais; Goiás e, no Mato Grosso, Rondonópolis, Cuiabá, e seguimos pela BR-365, alcançando Vilhena, em Rondônia e, deste ponto, retornando ao Mato Grosso.
Registro em meu diário:
2 de agosto: De Vilhena a Juruena são 400 quilômetros e só se passa por uma cidade, Juína, e um vilarejo, Castanhal. O tráfego que no asfalto era ocupado por caminhões com mudanças, bebidas, transportes gerais para o norte, e madeira serrada e em tora e, eventualmente, algodão e banana para o sul, agora era substituído por caminhões e caminhões só com toras, e subindo mudanças, serrarias, motosserras, tudo em função da destruição [KRAJCBERG inMEIRELLES, diário, p. 42].
Em 1986, o cineasta Walter Moreira Salles Júnior (Waltinho)(1958- ) acompanha nova expedição de Frans a Juruena para realizar o documentário Krajcberg – o Poeta dos Vestígios. Em 1987 este é exibido em horário nobre, com 45 minutos, na extinta TV Manchete, produtora do vídeo[viii]. Frans ainda trabalhará em Juruena até 1988. Neste mesmo ano, morre seu grande amigo, Sepp Baendereck.
Do ponto de vista pessoal, é um período de grande sacrifício, especialmente naqueles momentos em que está praticamente só com o ajudante, e permanece semanas, senão meses, em processo de visitas diárias a campo. O calor amazônico e das queimadas ainda fumegantes; os insetos, em especial o minúsculo pium (Simulium pertinax), equivalente ao borrachudo, em ataque incessante durante todo o dia; as longas distâncias e a precariedade das estradas, o desconforto dos meios de transporte; a alimentação inadequada, de baixa qualidade e irregular; as dificuldades de moradia e local de trabalho em uma vila pioneira; enfim, um conjunto de fatores torna este período um desafio a qualquer indivíduo. Nada se compara, entretanto, à apatia e, na maioria das vezes, animosidade dos novos migrantes desta nova fronteira, os colonos, diante do projeto artístico e os propósitos ambientalistas de Frans.
Depois deste Ciclo Juruena, Frans não realizará mais viagens de coleta, a não ser localmente, em Nova Viçosa ou, rápidas visitas a Minas Gerais. Quatro anos depois, em 1994, retorna brevemente à Amazônia, ao Acre. Viagem tumultuada e que o encoleriza e entristece, tal o descaso da pecuária e colonização que ali encontra, certamente, muito similar à que vira no norte de Mato Grosso.
BAENDERECK, Sepp. Retrato de Frans Krajcberg. Nanquim sobre papel, s/dim. Coleção Regina Jeha, São Paulo, SP. 1980.
7. A arte de andar no mato
Em 1985, registro nosso trabalho em campo:
Quatro de agosto: Acordamos às seis horas e preparados os equipamentos aceleramos o carro rumo à cidade. O objetivo seria reconhecer as matas da Purunga[ix]. Logo ao lado da pista deixamos o carro e nos embrenhamos na mata da esquerda. Frans vibrou com as árvores. E começamos logo a trabalhar a serra, o machado e o facão. Cortamos palmeiras de tucum que para ele servirão de paus para escultura. Eu cheguei a chorar de alegria, de me ver, ali, suando, junto à floresta, retirando-lhe o que meus olhos e coração acreditavam ser de mais belos e expressivos. Frans, agitadíssimo, andava para lá e para cá, olhava muito, pensava, gastou filmes com alguns pequenos detalhes e se satisfez imenso. O Zé trabalhava sem parar, derrubando pequenas palmeiras que Frans escolhia. Eu também trabalhava na derrubada e corte das palmeiras. Encontramos cipós, não os excepcionais como quer Frans, mas belos exemplares. (…) com o suor o mosquito pium trabalhou incessante. Hoje introduzíramos as luvas no nosso vestuário. Mas o rosto foi severamente castigado.(…) Fiquei com o rosto deformado de tantas picadas. (…) Saímos do mato às cinco horas e fomos ao porto. Belo anoitecer! Jantar e gravações. Frans, entusiasmado, falou por meia hora sobre a viagem. A principal mensagem: o Brasil está em decadência, tudo está sendo destruído, cercado, queimado! [KRAJCBERG inMEIRELLES, diário 1985]
Frans, carrega as pesadas máquinas analógicas, puxa um cipó para ver sua resistência, sorri ao encontrar uma flor quase imperceptível no tronco caído; o calor e o atazanar orquestral dos insetos – piuns, carapanãs, mutucas e vespas pouco o incomodam.
Na queimada a prova é ainda maior. Vasculha o espólio de troncos que ainda respiram, exalando forte odor e um chiado ácido; são árvores peladas pelo fogo… Pisa no chão recém-queimado, a sola de borracha gruda no carvão, enquanto protesta e vibra com os encontros de formas inusitadas. está em seu meio, e é capaz de resistir, usando o machado, carregando troncos e observando as cascas retorcidas pelo calor ingente. Noutro trecho, aponto:
Quinta, 7 de agosto, (…) adentramos o pasto queimado para tirar uma grande destas palmeiras barrigudas. (…) Fotografamos queimada e detalhes de plantas. No caminho reparamos em cipós que começamos a tirar. Eles estavam pendurados lá em cima. O Zé subiu dez metros e triscou a serra. Alguns pedaços de cipó eram tão pesados que necessitavam de três pessoas para carregar. Andamos na mata, sem querer, deparei-me com um belo cipó-verdadeiro. Frans abriu o sorriso e disse: Que descoberta! Que maravilha de cipó! E só deste nós tiramos bem uns dez pedaços para trabalhar. Mas o que Frans está interessado é nas baxiúbas[x] e nas sete-pernas.(…) E quanto aos sete-pernas ele quer pintar: Quero cores, cores vivas, fortes, muitas, cores brutas, quero ocupar com vinte, trinta delas. É hoje que a gente encontrou coisa bonita, mas o mosquito era demais, chegou uma hora que não aguentei mais foi preciso voltar[KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985].
***
Acompanhar Frans na mata, em sua caçada pela forma natural é, ao mesmo tempo, aula de meditação, estética e prova de vigor físico. Em verdade, o principal resultado é a profunda e permanente transformação de nossa percepção. Nos oito anos anteriores a esta viagem, ainda que houvesse percorrido dezenas de vezes as florestas de terra firme do Rio Juruena (principalmente as florestas ombrófilas abertas), Frans revela-me uma paisagem incrivelmente nova, jovem e vibrante, que jamais concebera. Aprendo a observar a luz incidindo sobre a folha, as riscas do inseto nas folhas apodrecendo, a maneira que o galho está cortado, as ondas que o cipó faz no ar… Cada detalhe merece atenção e, principalmente, respeito.
É preciso paciência e atenção; há mensagens impressas em toda parte – em troncos, nas raízes… Esperar que o raio solar volte a se projetar sobre o chão, coberto de flores; aguardar para que estejamos familiarizados com o lugar, e possamos ver as árvores tocando uma sinfonia, num arranjo orquestral com centenas de cordas, sopros, percussão e vozes. A partir deste momento, compreendo que é preciso de novas palavras para representar a nossa experiência na floresta, uma nova maneira de libertá-las de uma visão apenas horizontal. Como vim a aprender posteriormente –diante das pedras, as árvores são bailarinas.
Neste processo, a nova percepção não se resume ao detalhe, ao que a fotografia denomina, curiosamente, de macro. A paisagem passa a ser outra. Se eu fora treinado por uma linha utilitarista e empresarial; e, num segundo momento, para um olhar conservacionista, o que Frans oferece é uma dimensão amorosa, onde o olhar artístico é a trilha para a compreensão de nosso papel no planeta. Passo a pedir licença para adentrar na floresta, a grande catedral viva, a encará-la com serenidade e respeito, capaz de imensas trocas e aprendizados.
E, aqui, preciso recorrer às belíssimas reflexões de meus amigos, Zysman Neiman e Rita Mendonça:
Quando entramos em uma área natural quase sempre nos sentimos bem, percebemos que alguma coisa muda. Quanto mais nos aprofundamos nessa relação, nessa intimidade com os elementos naturais, percebemos que ali há uma grande escola que nos proporciona uma das raras oportunidades que temos para realmente evoluir [ZYSMAN & MENDONÇA, 2000, p.99].
A partir desta vivência, compreendo o Manifesto Natura como a busca por superar a argumentação sectária, ora ecológica, ora social ou puramente utilitarista. A proposta de Frans é a experiência estética libertadora de primeiro grau; e, se possível no mais fulgurante dos ambientes naturais – a floresta tropical –; que esta experiência se converta em manifesto em prol do repensar a relação com a natureza, que seja capaz de sensibilizar a humanidade para o concerto-conserto de conservação-conversação planetária.
Novamente recorro a Rita Mendonça e Zysman Neiman, que perguntam sobre as florestas:
Que seria de nós se não a tivéssemos perto ou longe, para nos dar a esperança de um dia nos tornarmos dignos de nossa rica experiência humana? A floresta simboliza o próprio processo de aprendizado da vida. Ela dá sentido às atividades humanas. Ou melhor, ela nos faz questionar o sentido do que fazemos [ZYSMAN & MENDONÇA, 2002, p.2].
8. A arte bruta natural, é nisso que eu quero chegar
Frans labuta incessantemente. No galpão, seleciona o material, corta as partes da madeira que não o atraem ou não suportarão o manuseio; expõe o tronco ao fogo, amarra galhos para que retorçam e verguem, estica-os ao limite e os deixa ao sol. Não há desenhos, planos, ele simplesmente compõe a sua escultura com o que dispõe, segundo a resistência do material que descobre na queimada ou na floresta.
Ele só está preocupado com a natureza, não quer ver boi, pasto, plantação; quer pegar plantas novas, fotografar, encontrar material para trabalhar e ficar em lugares quietos, isolados, onde possa desenvolver sua criação. Ele mal se lembra dos roteiros de suas viagens, do nome das cidades, das coisas, lembra-se, porém, de cada fotografia, da condição em que as tirou [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985, p. 11].
Depois de meses enfurnado no mato, volta ao estúdio em Nova Viçosa, na Bahia, levando um grande carregamento de pedaços desprezados da floresta queimada. Ali expõe os cipós no chão, buscando compor a nova obra, estuda-lhe o suporte ideal – se painel para a parede, se escultura que recebe uma base, ou outra forma. É um exercício permanente de combinar cascas, cipós, troncos, formas, cores, espaços. Prefere as cores fortes e contrastantes – o negro e o vermelho, o vermelho e o branco, o branco e o negro. Em 1984 planeja:
Agora eu gostaria de entrar em uma forma mais bruta, eu acho que tou entrando um pouquinho no bonito no meu trabalho… Começar a agradar, e eu não gosto disso. Gostaria mais de ser EU como eu sou, o impacto da arte bruta. A arte bruta natural, é nisso que eu quero chegar agora. [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em fases posteriores, como a que hoje se encontra, outras cores e combinações são experimentadas e o próprio verde também aparece. Se os primeiros pigmentos são apenas os naturais, o que se busca agora, é impregnar de cores fortes e marcantes. Se a projeção da sombra já é parte da escultura, é com o Ciclo Juruena que a sombra alcança sua maioridade.
Em 1986, como parte do Ciclo Juruena executa o que, provavelmente, seja sua obra mais marcante. Esta passa desapercebida pela maioria das dezenas de milhares de pessoas que circulam todo os dias pela Avenida Paulista, em São Paulo. Ali, no foyer externo do prédio de um banco, o Citibank, no número 1.111, está uma de suas obras de maiores dimensões (com cerca de 14 m de altura). Trata-se de um imenso cipó, pintado de branco, projetando uma sombra, também branca. O branco vela o negrume das árvores queimadas. A sombra artificial, mostra-nos a projeção que permanecerá, para sempre, naquela parede, como a indicar que o tempo parou no momento da queimada, tal qual o relógio que não despertou de Hiroshima.
Talvez, seja esta a obra de arte brasileira que melhor trate o triunfo do homem sobre a floresta, o que se coaduna perfeitamente ao cenário que se instala – a Avenida Paulista –, símbolo do poderio financeiro no Brasil, na cumeeira da maior cidade do Hemisfério Sul, outrora um manto de Mata Atlântica.
***
Frans passará as próximas três décadas e, até o presente, combinando formas, cores, madeiras, troncos, raízes, cascas, a partir da coleta em Juruena e Nova Viçosa.
Em sua vida, terá poucos colaboradores. Zé do Mato (José Alves) ocupará, como assistente por décadas, desde Minas Gerais, onde Frans o conhece moço, até a década de 2010. Frans contará, ainda, com a grande atenção de Márcia Barrozo do Amaral, da Márcia Barrozo do Amaral Galeria de Arte, do Rio de Janeiro, que representa sua obra e que publica quatro livros sobre Frans[xi] e acompanha sua saúde; de sua vizinha em Nova Viçosa, Lú Araújo e sua família, da Pousada Cheiro de Mar, sempre atenciosos e preocupados; de Ernani Grifo Ribeiro, seu advogado; e, de amigos que o auxiliam nos momentos que está debilitado, como a empreendedora cultural e empresária, Maria de Lourdes Egydio Villela (Milu Villela), entre outros.
Na medida que sua obra se torna valiosa, Frans é imitado, obras são falsificadas, e marchands desqualificados como seus representantes. Em poucos anos, sofre oito roubos em seu sítio e, em um deles é agredido. Em 2008, será envenenado, o que leva a sérias complicações de saúde e a longa internação. Nada disto o esmorece em sua luta para que se reconheça a sua mensagem, o seu manifesto.
A partir da década de 1990, no Brasil e em diversos países, empregará a palavra em eventos sobre meio ambiente, projetará a sua fotografia em diapositivos, em exposições, apresentando-as em grande formato, sempre como manifesto. Como ambientalista ferrenho, arregimenta legiões de fãs, pela inconcessão sobre o ato de destruir e abandonar, algo bem-Brasil. Mesmo com dificuldade de se expressar, é o seu tom de voz e a sua linguagem corporal são suficiente para passar a sua mensagem de indignação.
Como enfant terrible, está sempre medindo o impacto de suas ações. Se está sendo entrevistado, depois me olha para saber se foi suficientemente duro e direto. Da mesma maneira, quer saber quando sua escultura começa a agradar,porque desconfia do bonitinho, seu desejo é:
Eu quero art brut[xii], nova… lá na sua terra, Juruena…, é capaz de a gente conseguir material de queimada. Você imagina um conjunto desta paxiúba, umas vinte, que beleza, e estas outras raízes, estas cascas de árvore! [KRAJCBERGin MEIRELLES, diário 1985, p. 13].
Receberá os mais importantes prêmios, condecorações e será cidadão honorário de diversas partes, no Brasil e no exterior. Frans constrói uma obra monumental que, provavelmente, ainda seja mais conhecida e valorizada no exterior que no Brasil. Entretanto, a sua posição permanece inalterável – um homem simples, de hábitos monásticos e cujas decisões são radicais e, raramente revistas. Em recente encontro me confessa:
Eu estou apaixonado em descobrir a natureza, meu grande desejo foi sempre fugir do homem; e eu, descobrindo a natureza, vi que a natureza está muito ligada comigo, ela me transmite a maior tranquilidade. Eu estou vendo esta bolinha tão frágil[xiii], está girando muito rápido (...) [KRAJCBERG, depoimento ao autor, julho, 2011].
9. Eu não sou fotógrafo
Eu não sou fotógrafo. (…) Tento fotografar aquilo que o homem não vê [KRAJCBERG, 2011, s/n]. Esta é a epígrafe do livro Natureza. De fato, sua fotografia não serve de recamo ou ornato. É parte integrante desta caça pela forma – uma lente que lhe permite ampliar o olhar. É ferramenta. Frans não vende fotografias, como faz com as esculturas e os painéis.
Seu primeiro livro com fotografias é de 1981, sobre São Luís. O texto deveria ser do poeta maranhense Ferreira Gullar (1930- ), mas a Rhodia, a empresa patrocinadora, não o aceita. Considera Gullar comunista. O livro sai com o texto de Luiz Antônio Seraphico de Assis Carvalho (1936-2012), que trabalha no marketing desta empresa.
Do Ciclo Juruena em diante, sua fotografia passa a ser exposta com as esculturas, ocupando, cada vez, maior espaço.Com a fotografia começo a captar outra natureza, que os olhos não percebiam [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1986].
A partir deste momento, a fotografia se torna ativista. Por meio da fotografia Frans revela ao brasileiro (e ao mundo) a queimada. É por meio da fotografia que descobrimos o fogo e a queimada na arte brasileira.
O primeiro livro exclusivamente dedicado a sua fotografia é Natura, de 1987. É iniciativa da Editora Índex, de José Paulo Monteiro Soares e Cristina Ferrão, com o apoio do Chase Manhattan SA. As fotografias de Frans cobrem a região de Nova Viçosa; as terras de Itabirito, em Minas Gerais; o Parque Nacional de Sete Cidades, Piauí; o Pantanal, em Mato Grosso; o Rio Negro, no Amazonas; e, as expedições mais recentes, como as de Juruena, no Mato Grosso.
Os textos são de Antonio Houaiss, Pierre Restany e colaboro com uma breve biografia. Uma ação pioneira da empresa destina dois mil livros à Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), com o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara (1924-2014) prefaciando a obra. Seguem-se outros livros de fotografia, mas, certamente este foi impecável na seleção e edição de imagens.
No livro de 2011, Natureza, publicado pelo Governo da Bahia, Thiago de Mello apresenta poema inédito sobre Frans:
Este Livro é uma estrada, um farol.
É uma advertência corajosa.
Um chamado.
O crítico baiano J. Antônio Saja comenta que se trata de 156 fotoesculturas [SAJA in KRAJCBERG, 2011]
A fotografia ocupa um crescendo em sua vida, ajuntando uma coleção que este crê ser de dez mil imagens (especialmente em função da fotografia digital, este número é, certamente, muitas vezes esta cifra). Frans depõe: Eu não fotografo o objeto, eu fotografo a luz no objeto [KRAJCBERG, Depoimento ao autor, maio, 2011]. Em outro momento, Houaiss comenta uma exibição de slides de Krajcberg:
Compreendi naquela oportunidade, mais do que em qualquer outra de minha vida, a diferença entre ver e ver. E vi – com (suponho) lucidez – que este bicho que somos, tão pequeno, tem sabido fazer de sua animalidade, pouco a pouco, uma outra coisa, fazendo dos olhos órgãos que vêem mais do que o mero ver animal (…) [HOUAISS, A., in KRAJCBERG, 1987, p. 16-7].
Visão esta que Pierre Restany comenta: para Frans Krajcberg, a fotografia sempre foi um suplemento da alma do olhar, a prova e a justificativa do potencial infinito da visão [RESTANY, P., in KRAJCBERG, 1987, p. 13-5].
Por fim, num transe de genialidade e humildade, Antonio Houaiss revela:
Não sei como ler melhor a obra de Krajcberg. Mas sei que agradecer-lhe o que tem feito por todos nós é dever de quem sabe, ademais, amar os artistas, as suas obras e os seres viventes [HOUAISS, A. in KRAJCBERG, 1987, p. 19-20].
Se próximo dos noventa anos as esculturas deixam de ser a arte de um só homem, pois agora orienta sua equipe de assistentes como cortar, pintar e montar; a fotografia, entretanto, passa a ocupar boa parte de seu dia, seja percorrendo o seu sítio à busca de flores, troncos e expressões que hoje se apresentam distintas de ontem, seja sentado, por horas, diante do computador, assistido por Marlene Figueiredo, ao viajar por suas coleções de fotografias, selecionando um novo livro ou material para uma exposição.
10. O desafio – como criar A Expressão Brasileira?
Frans está em permanente questionamento sobre o papel da arte e do artista. Interpõe mais perguntas que respostas:
O artista que fica na cidade, só defronte da prancheta, é capaz de criar algo decente? Como se poderia criar A Expressão Brasileira? A Arte Brasileira de hoje? (como fazer isto) num país que só se destrói? Que os artistas estão omissos? Que não percebem esta destruição? [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985].
A partir do exemplo de grandes mestres, mostra que:
É preciso muito sacrifício para fazer arte. Brancusi foi a pé da Romênia a Paris, por falta de recursos; o outro comprava galinha para pintar e depois as comia, quase podre.(…) [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985].
E prossegue na sua proposta da nova arte bruta – estou cansado de blá-blá-blá; eu, cada vez mais, acredito no discurso duro, verdadeiro, incisivo; é preciso, assim, atingir o belo, a perfeição [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985]. E se pergunta:
Qual o jovem que acredita, realmente, na natureza deste país? Todo mundo prefere ficar no eixo Rio – São Paulo, copiando o que se faz no exterior, e como mal copiadores, pois tudo lhes chega apenas fragmentado (…). João, é preciso que você seja mais picante, procure mais a realidade, dura, cruel, como ela é, não seja tão generalista[KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985, p. 14].
Ao unir arte e defesa da natureza integral, seu dístico (que ouvirei centenas de vezes) é: vocês não sabem o que está acontecendo com a Amazônia! O Brasileiro não tem nem o direito de falar da Amazônia, nem conhece o Brasil![KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985]. Neste sentido, percebe-se, que o seu tempo é dedicado integralmente em prol da arte; inexiste desperdício de gestos, palavras, elogios… A ironia e a sutileza estão a serviço de algo maior – o encontro do homem e a natureza. Cada frase é um petardo contra o imobilismo:
A natureza é a minha cultura. É ela que me dá o desejo de viver. Muitas vezes o diálogo é mais rico com a natureza que com os homens. Um pedaço de pau no meio do mato chega a me dizer mais que algumas pessoas [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985].
Quer uma arte que faça pensar, um soco na cara! Uma arma contra a hipocrisia: O grito, a barbárie, a ferocidade, a indignação, tem que usar a palavra pesada, para sacudir a paciência [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 2011].
Em maio de 2011, em comemoração aos seus 90 anos, Thiago de Mello escreve a Frans um poema – Amor, assombro e fúria – e nos conclama a reconhecer a beleza de sua atitude-vida:
Frans atendeu o chamado
e entendeu o seu destino
que perseverante cumpre
com amor e indignação
[KRAJCBERG, 2011, p. 113].
Nesta ocasião, de improviso, Thiago declama:
Tem o poeta da Imagem e da Palavra
Poesia da Palavra tem que pensar.
A Poesia da Imagem fala diretamente à tua inteligência. Frans é poeta da Palavra e da Imagem
[MELLO, depoimento ao autor, 2011].
***
Mesmo diante desta trajetória única na arte brasileira, é preciso arregaçar as mangas, pois há muito a fazer para assegurar sua mensagem. Em primeiro lugar, é urgente o preparo de um catálogo completo de suas obras – umCatálogo Raisonée – , para que não paire dúvidas do que é fruto de seu labor e o que é cópia e falsificação. E que, o mais breve possível, este catálogo esteja disponível publicamente em meio eletrônico.
Em segundo lugar, a decisão do Governo da Bahia, de criar a Fundação Museu Frans Krajcberg, que terá espaços noSítio Natura, em Nova Viçosa e no Alto de Ondina, Salvador, por sua magnitude, merece amplo louvor, apoio, reconhecimento e divulgação. Que se aproveite para ampliar o debate da sociedade baiana e brasileira sobre a vida e obra de Frans, para que sua mensagem seja amplificada.
Há iniciativas inspiradoras no mundo, entre as quais, está a do Museu Andy Warhol, cuja preocupação de circulação da obra é primordial. Certamente, o amplo acesso público a sua vida e obra, especialmente de suas fotografias e vídeos, torna Warhol um artista cada vez mais conhecido, e permite um debate sobre questões de grande relevância contemporânea levantadas pelo artista.
Em terceiro lugar, é importante resgatar as propostas que levaram Zanine Caldas e Frans Krajcberg ao Sul da Bahia, entre as quais: a de criar uma escola de arte para os jovens; valorizar os saberes e fazeres tradicionais locais; e, questionar o processo violento de ocupação e destruição da Mata Atlântica. Será a Fundação Museu Frans Krajcberg a organização a promover este debate acerca destas três e outras questões que se afirmam, e formular políticas públicas para que se avance em realizações concretas?
E, por fim, em quarto lugar, é importante que a população da Amazônia conheça o artista que tanta atenção lhe concede. Afinal, nos últimos quarenta anos seu tema principal e sua área de maior de coleta de matéria prima foi a região. Entre as distintas maneiras de realizar esta divulgação está a realização de debates, projeções de filmes, exposições de fotografias e obras de arte.
Apesar de realizar centenas de exposições em diversas partes do Brasil e do mundo, Frans nunca expôs na Amazônia. Outrossim, não há uma única obra de Frans nos acervos de museus e instituições públicas da região, como existe em São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília.
Por que não aproveitar as comemorações de 400 anos da cidade de Belém e os 150 anos do mais antigo museu da Amazônia, o Museu Paraense Emílio Goeldi, em 2016? Não seria este o momento, quando Frans Krajcberg completa 94 anos, para que sua vida, obra e manifesto sejam melhor conhecidos pela população da Amazônia, que Frans tanto defende e respeita?
Fim.
Anexo 1 – Referências bibliográficas
KRAJCBERG, Frans; SERAPHICO, Luiz. A Cidade de São Luís do Maranhão. Livro desenhado por Emanoel Araújo. São Paulo, SP: Rhodia, 141p. ill. 1981.
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_____; HOUAISS, Antonio, PONTUAL, Roberto, RESTANY, Pierre, SALLES Jr., Walter Frans Krajcberg Natura. Design gráfico: Ruth Freihof. Rio de Janeiro, RJ: GB Arte & MRS Logística. 211p. ill. 2004.
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_____Frans Krajcberg – Natura e Revolta. Rio de Janeiro, RJ: GB Arte. 2 vols. 2000. ISBN 8587688030
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_____ ; MELLO,Thiago, SAJA, José Antonio. Natureza (inclui poema inédito Amor, assombro e fúria de Thiago de Mello). Salvador, BA: Governo da Bahia, Secretaria de Cultura, Palacete das Artes Rodin, 211p.:il. 2011.
MEIRELLES FILHO, João Carlos de Souza (MEIRELLES FILHO, João). Frans Krajcberg: Sempre fomos ligados a natureza. Nós somos a Natureza. São Paulo, SP: Jornal da Tarde. 20.6.1985.
_____. Bienal: As Críticas e as propostas de Franz Krajcberg. São Paulo, SP: Jornal da Tarde. 16.10.1985.
_____. Krajcberg: Luta contra a incredulidade dos homem. São Paulo, SP: Jornal
da Tarde. 18.9.1986.
_____. Livro de Ouro da Amazônia. Rio de Janeiro, RJ: Ediouro. 2007. 5a Ed.
_____. Grandes Expedições à Amazônia Brasileira, século XX. São Paulo, sp: Editora Metalivros. 2011.
_____. É possível superar a herança da ditadura brasileira (1964-1985) e controlar o desmatamento na Amazônia? Não, enquanto a pecuária bovina prosseguir como principal vetor de desmatamento. Belém, PA: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. V.9,n.1,p.219-241,jan.-abr.2014
MELLO, Thiago; KRAJCBERG, Frans; MEIRELLES FILHO, João C. S. Manifesto da Campanha – Grito de Esperança pela Amazônia, uma Carta aberta à ONU pela criação do Ano Internacional da Amazônia. 2011
MOLLARD, Claude; LISMONDE, Pascale. Frans Krajcberg, La Traversée du feu : Biographie. Paris, França: 2005.
NEIMAN, Zysman; MENDONÇA, Rita. Ecoturismo: discurso, desejo e realidade. São Paulo, SP: Turismo em Análise. 11 (2): 98-110 novo. 2000.
_____. À sombra das árvores. Campinas, SP: Editora Chronos, 2002.
RESTANY, Pierre, KRAJCBERG, Frans, BAENDERECK (1978) Sepp Manifesto do Rio Negro. 3 de agosto de 1978.
SALLES JR., Walter. Krajcberg: o poeta dos vestígios. Rio de Janeiro: Videofilmes Documentário em Vídeo 45 min (35 mm). 1987.
SCOVINO, FELIPE. Frans Krajcberg. São Paulo, SP: Editora Arauco. ISBN: 8560983112. 2011. 274 p. 2011.
Anexo 2 – Manifesto da Campanha – Grito de Esperança pela Amazônia
Ref.: Carta aberta à ONU pela criação do Ano Internacional da Amazônia.
A nossa campanha se inaugura com esta carta em que solicitamos à Organização das Nações Unidas que declare o Ano Internacional da Amazônia. Trata-se de um gesto de amor.
A nossa iniciativa atende à necessidade do urgentíssimo respeito que a Amazônia clama, diante das ameaças cada dia mais graves a seus povos, suas florestas e suas águas. A Amazônia é a casa de mais de 30 milhões de pessoas, em seus verdes nove países da América do Sul – Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, França (Guiana Francesa), Guiana, Peru, Suriname e Venezuela –, abrigando mais de 400 povos originais, cada qual com a sua cultura e conhecimentos associados à biodiversidade.
Nos últimos 50 anos, aumentou substancialmente a pressão sobre os povos tradicionais e perdemos 1 milhão de km2 dos 7 milhões de km2 de floresta amazônica (a área desmatada equivale a toda Região Sudeste do Brasil). Quatro quintos do desmatamento e das queimadas resultam do forte crescimento do consumo de carne bovina, o que significou, apenas na Amazônia Brasileira, aumentar o rebanho de 2 milhões a 80 milhões de cabeças. A Ciência afirma faz tempo que a Amazônia desempenha importante papel no equilíbrio climático global e, contudo, poderá entrar em colapso se persistir o processo de exploração desenfreada de seus recursos.
Em menos de 5% da área terrestre, esta nossa última grande floresta tropical do planeta, protege mais de ¼ das águas doces superficiais e 25% da biodiversidade. São mais de um trilhão de árvores que pedem proteção e inumeráveis plantas e animais, muitas ainda desconhecidas, porventura de virtudes preciosas.
Se a Amazônia é reconhecida pela sua relevância ambiental e o potencial econômico de seus recursos naturais, poucos consideram sua diversidade cultural, populações tradicionais e as enormes e crescentes desigualdades sociais. Estas desigualdades resultam em conflitos culturais, conflitos fundiários, marginalização econômica, desigualdade no acesso a serviços e, principalmente, o que dificulta populações tradicionais amazônicas de tomar decisões sobre suas próprias vidas.
Se a concentração do poder e da riqueza nos nove países amazônicos está entre as maiores do mundo, na Amazônia esta relação é ainda mais injusta e evidente. O isolamento e a falta de segurança territorial da maioria dos mais de 6 milhões de índios, quilombolas e caboclos, e da população rural pobre, aumenta este desequilíbrio.
Não precisamos justificar a proteção da Amazônia: Só a sua valiosa existência já exige extremo cuidado com a sua vida, importante para as presentes e futuras gerações! (Falamos em nome das crianças que ainda vão nascer.) A sua beleza e a sua cultura, resultante de cem séculos de convívio do Homem com a Floresta, são valores que exigem cuidado e a sua conservação.
Este manifesto tem raiz antiga: a dolorosa experiência e a indignação moral pela destruição de milhões de indígenas e a maior parte dos biomas brasileiros, entre os quais destaca-se a eliminação de mais de 93% da Mata Atlântica (que já recobriu 1,5 milhão de km2 do Brasil). Não podemos aceitar que a floresta amazônica e seus povos tenham o mesmo destino. É preciso dar fim, em nome da vida e da própria grandeza da condição humana, ao perverso desmatamento, às queimadas e à poluição indiscriminada das águas.
Como cidadãos do planeta, sentimo-nos extremamente perplexos com o fato de que a declaração da ONU de 2011 como o Ano Internacional das Florestas, haja mobilizado tão poucos brasileiros. Por isso que nos reunimos como signatários desta Campanha, que é também um brado pela conscientização, e para que a ONU estabeleça o Ano Internacional da Amazônia.
É preciso que cada ser humano, reflita sobre o impacto de nossas ações, fruto da ambição e da cobiça, sobre a Amazônia. Indivíduos, organizações e países, consideremos a relevância da responsabilidade nossa, de legarmos às futuras gerações uma Amazônia melhor, mais justa, mais bela e mais querida do que aquela que recebemos.
O Grito de Esperança pela Amazônia é um chamado mundial. Vamos dar a nossa voz e gritar pela Esperança. Participe desta campanha e assine a lista abaixo.
5 de novembro de 2011, por ocasião da 3a Edição do Grito de Frans Krajcberg, pelo Ano Internacional das Florestas, em Nova Viçosa, BA.
Frans Krajcberg, artista plástico, Nova Viçosa, BA
Thiago de Mello, poeta e escritor, filho da floresta, Barreirinha, AM
João Meirelles, escritor e diretor do Instituto Peabiru, Belém, PA
A carta também foi assinada por diversas pessoas, entre as quais, o jornalista André Trigueiro, os artistas Christiane Torloni e Vitor Fasano, a cineasta Regina Jeha, o ambientalista Mario Mantovani, entre outros.
Anexo 3 – Manifesto do Rio Negro
Que tipo de arte, qual sistema de linguagem pode suscitar uma tal ambiência – excepcional sob todos os pontos de vista, exorbitante em relação ao senso comum? Um naturalismo do tipo essencialista e fundamental, que se opõe ao realismo e à própria continuidade da tradição realista, do espírito realista, além da sucessão de seus estilos e de suas formas. O espírito do realismo em toda a historia da arte não é o espírito da pura constatação, o testemunho da disponibilidade afetiva. O espírito do realismo é a metáfora; o realismo é, na verdade, a metáfora do poder: poder religioso, poder do dinheiro na época da Renascença, em seguida poder político, realismo burguês, realismo socialista, poder da sociedade de consumo com a pop-art.
O naturalismo não é metafórico. Não traduz nenhuma vontade de poder, mas sim um outro estado de sensibilidade, uma maior abertura de consciência. A tendência à objetividade do constatado traduz uma disciplina da percepção, uma plena disponibilidade para a mensagem direta e espontânea dos dados imediatos da consciência. Como no jornalismo, mas sendo este transferido ao domínio da sensibilidade pura, o naturalismo é a informação sensível sobre a natureza. Praticar esta disponibilidade ante o natural concedido é admitir a modéstia da percepção humana e suas próprias limitações, em relação a um todo que é um fim em si. Essa disciplina na conscientização de seus próprios limites é a qualidade primeira do bom repórter : é assim que ele pode transmitir aquilo que vê – desnaturando o menos possível os fatos.
O naturalismo assim concebido implica não somente maior disciplina da percepção, mas também maior na abertura humana. No final das contas a natureza é, e ela nos ultrapassa dentro da percepção de sua própria duração. Porém, no espaço-tempo da vida de um homem, a natureza é a medida de sua consciência e de sua sensibilidade.
O naturalismo integral é alérgico a todo tipo de poder ou de metáfora de poder. O único poder que ele reconhece é o, poder purificador e catártico da imaginação a serviço da sensibilidade, e jamais o poder abusivo da sociedade.
Este naturalismo é de ordem individual. A opção naturalista oposta à opção realista é fruto de uma escolha que engaja a totalidade da consciência individual. Essa opção não é somente critica, ela não se limite a exprimir o medo do homem frente ao perigo que corre a natureza pelo excesso de civilização industrial e a consciência planetária. Ela traduz o advento de um estado global da percepção, a passagem individual para a consciência planetária. Nos vivemos uma época de balanço dobrado. Ao final do século se junta o final do milênio, com todas as transferências de tabus e da paranóia coletiva que esta concorrência temporal implica – a começar pela transferência do medo do ano 1000 sobre o medo do ano 2000, o átomo no lugar da peste.
Vivemos, assim, uma época de balanço. Balanço do nosso passado aberto sobre nosso futuro. Nosso Primeiro Milênio deve anunciar o Segundo. Nossa civilização judaico-cristã deve preparar sua Segunda Renascença. A volta do idealismo em pleno século XX supermaterialista, a volta de interesse pela historia das religiões e a tradição do ocultismo, a procura cada vez maior por novas iconografias simbolistas: todos esses sintomas são consequência de um processo de desmaterialização do objeto, iniciado em 1966, e que é o fenômeno maior da historia da arte contemporânea no Ocidente.
Apôs séculos de tirania do objeto e seu clímax na apoteose da aventura do objeto como linguagem sintética da sociedade de consumo – a arte duvida de sua justificação material, ela se desmaterializa, se conceitua. Os andamentos conceituais da arte contemporânea só têm sentido se examinados através dessa ótica autocrítica. A arte é ela mesma colocada numa posição critica. Ela se questiona sobre sua imanência, sua necessidade, sua função.
O naturalismo integral é uma resposta. E justamente por sua virtude de integracionista, de generalização e extremismo da estrutura da percepção, ou seja, da planetarização da consciência, hoje ela se apresenta como uma opção aberta – um fio diretor dentro do caos da arte atual. Autocrítica, desmaterialização, tentação idealista, percursos subterrâneos simbolistas e ocultistas: essa aparente confusão se organizará talvez um dia, a partir da noção do naturalismo – expressão da consciência planetária.
Esta reestruturação perceptiva refere-se á uma real mudança e a desmaterialização do objeto de arte, sua interpretação idealista, a volta ao sentido oculto das coisas e sua simbologia constituem um conjunto de fenômenos que se inscrevem como um preâmbulo operacional à nossa Segunda Renascença – etapa necessária para uma mutação antropológica final.
Hoje, vivemos dois sentidos da natureza: aquele ancestral, do concedido planetário, e aquele moderno, do “adquirido” industrial e urbano. Pode-se optar por um ou outro, negar um em proveito do outro; o importante é que esses dois sentidos da natureza sejam vividos e assumidos na integridade de sua estrutura antológica, dentro da perspectiva de uma universalização da consciência perceptiva – o Eu abraçando o mundo, fazendo dele um uno, dentro de um acordo e uma harmonia da emoção assumida como a única realidade da linguagem humana.
O naturalismo como disciplina de pensamento e da consciência perceptiva é um programa ambicioso e exigente que ultrapassa de longe as balbuciantes perspectivas ecológicas de hoje. Trata-se de lutar muito mais contra a poluição subjetiva do que contra a poluição objetiva – a poluição dos sentidos e do cérebro contra a queda do ar e da água.
Um contexto tão excepcional como o do Amazonas suscita a ideia de um retorno à natureza original. A natureza original deve ser exaltada como uma higiene da percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral, gigantesco catalisador e acelerador das nossas faculdades de sentir, pensar e agir.
Pierre Restany
Alto Rio Negro, quinta-feira, 3 de agosto de 1978.
Na presença de Sepp Baendereck e Frans Krajcberg
Anexo 4 – Novo Manifesto do Naturalismo Integral
Le XXIème siècle n’a toujours pas ouvert la voie à une création artistique résolument engagée au service de l’équilibre de la planète avec son environnement et ses habitants. Nous dénonçons cette impuissance.
Ecrasé par la globalisation des cultures et des économies, l’art perd son sens, tandis que la domination universelle de la finance génère spéculations éhontées et bulles artificielles. Nous dénonçons l’emprise des marchés sur l’art, avec leurs méfaits et leurs impasses.
Nous lançons un cri d’alarme pour que l’art retrouve le sens de la nature, de la mesure et de l’harmonie, et qu’il recouvre sa position d’avant-garde au service de valeurs de liberté, de dignité, de respect.
Nous publions le «Nouveau Manifeste du Naturalisme intégral » pour entraîner un mouvement qui mobilise l’expression d’une conscience planétaire.
Nous reconnaissons dans la nature une source illimitée d’inspirations, de concepts, de recherches et de formes.
Nous revendiquons, en devoir et en droit, la totale diversité des expressions, une laïcité sans compromis, une liberté de création intégrale.
Nous nous adressons aux artistes et aussi aux citoyens du monde qui ne veulent pas rester les spectateurs passifs de la destruction de leur planète.
Plus que jamais l’artiste doit être au cœur de tout projet de civilisation, à la fois artiste et citoyen du monde, intégralement et radicalement.
Pierre Restany terminait le Manifeste du Rio negro par ces mots : « La nature originelle doit être exaltée comme une hygiène de la perception et un oxygène mental… »
- Les termes du Manifeste du Rio negro de 1978 doivent être réaffirmés et radicalisés.
En 1978, l’écologie balbutiait et le Manifeste du Rio negro était une première prise de conscience du potentiel formidable de la nature dans l’expression artistique. Pour Pierre Restany, il s’agit alors « de lutter beaucoup plus contre la pollution subjective que contre la pollution objective, la pollution des sens et du cerveau… »
Aujourd’hui, la crise de la planète est devenue une réalité évidente appelant des réponses urgentes. La destruction de la forêt Amazonienne est engagée au prix de l’élimination inéluctable, et hélas silencieuse, des peuples indiens. La fonte de la banquise s’accélère, le réchauffement climatique est en marche. L’accroissement de la population mondiale entretient la pauvreté, favorise les guerres et sert de terreau au développement des fanatismes religieux et politiques.
Les droits de l’homme et la laïcité sont de plus en plus bafoués. Les pouvoirs politiques nationaux et internationaux ont abdiqué devant la finance mondiale.
La crise de l’art dénoncée alors par Pierre Restany s’est elle-même amplifiée.
La multiplication des investissements financiers invoqués pour exprimer une marche en avant de la démocratisation des arts aboutit en fait à promouvoir une grande entreprise internationale de divertissement.
- L’engagement de l’artiste contemporain est la condition du renouvellement de la création.
Au moment où l’on n’a jamais autant montré d’art contemporain, il se révèle en fait de plus en plus déconnecté de la réalité sociale, économique et politique. Il se centre sur l’individu et ses atermoiements.
Il n’annonce plus, il illustre. Il n’anticipe plus, il accompagne. Il ne dénonce plus, il dissimule.
Les mouvements intellectuels qui reliaient innovations artistiques et engagements politiques et sociaux, ont disparu. Ils sont devenus sujets d’étude ou d’expositions. La pratique artistique n’est plus un engagement collectif mais une carrière individuelle. Isolés, les artistes sont moins dangereux. Ils ne dirigent plus la scène artistique, ils tentent d’en profiter. L’art n’est plus qu’une marchandise cotée. Il oscille entre spéculation intellectuelle et spéculation marchande. Il devient stratégie de pouvoir. Il perd sa portée critique.
Nous réaffirmons le rôle essentiel de l’artiste, alors qu’il est de plus en plus relégué à celui de simple décorateur dont « les maîtres du monde » attendent qu’il déguise les crises au lieu de les dénoncer.
- Le Naturalisme intégral appelle une éthique de la création artistique
Le Naturalisme intégral est non seulement une attitude de combat mais aussi un aiguillon de la pensée. Il s’oppose intégralement à l’exploitation destructrice de la nature et à la transformation de l’œuvre d’art en objet de consommation jetable.
Le Naturalisme intégral se conçoit comme un outil de développement artistique durable. Il s’insère même dans l’espace-temps du cosmos.
Le Naturalisme intégral relie les cultures les plus contemporaines aux plus ancestrales. Il en appelle à la conscience des “Magiciens de la terre
Sobre o autor
João Carlos de Souza Meirelles Filho, que assina usualmente como João Meirelles Filho, é escritor e empreendedor social. Diretor do Instituto Peabiru – www.peabiru.org.br e tem seus artigos e ensaios publicados aqui na Envolverde – www.envolverde.com.br e em – https://peabiru.academia.edu/JoaoMeirelles/Literatura-e-Artes
[i] Em 19 de fevereiro de 2013, a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia institui o Museu Artístico e Ecológico Frans Krajcberg, como Fundação Estatal de Direito Público, segundo o projeto de lei complementar No 113/2013.
[ii] Frans cede para a Fundação Cultural de Curitiba, da Prefeitura Municipal de Curitiba, um conjunto de obras, para constituir o Espaço Krajcberg. Em função da desatenção às obras, retomou-as em 2010.
[iii] Seu sitio localiza-se a cerca de sessenta quilômetros da Rodovia BR-101.
[iv] Trata-se do Parque Estadual Serra do Conduru, nos municípios de Ilhéus, Itacaré e Uruçuca, no Sul da Bahia.
[v] O russo Vladimir Klavdiyevich Arsenayev (1872-1930) é conhecido como explorador da Sibéria e o leste da Rússia. Sua obra mais conhecida é Dersu Uzala, de 1923, baseada nas viagens à taiga de Ussuri, no inicio do século XX, acompanhado do guia caçador local, Dersu Uzala.
[vi] Os artistas referidos são os franceses Jean Dubuffet (1901-1985), Fernanda Léger (1881-1955),
[vii] A obra se encontra no museu Mauritshuis, em Den Haag (Haia), na Holanda. Inventário N 915.
[viii] O documentário tem roteiro de João Moreira Salles.
[ix] Nome de uma das propriedades da colonizadora, onde ficava o porto, uma casa e uma pista de pouso, na beira do Rio Juruena, a 17 km da cidade de Juruena, por onde iniciou-se a colonização quando o transporte era feito por barco, a partir do Rio Arinos. Ali Frans, Zé e eu nos instalamos.
[x] Baxiúba ou paxiúba (Socratea exorrhiza (Mart.) H. Wendl.), também denominada a palmeira que anda.
[xi] Segundo o web-site da galeria, Paralelamente no ano 2000, editou o livro “Frans Krajcberg – Natura e Revolta”, lançado no Rio, São Paulo e Paris. O 1º vol. traz um levantamento abrangente da obra de Krajcberg, e o 2º vol. “Natura” as fotos tiradas pelo próprio artista em suas viagens pela Amazônia. Em 2005, foi lançado “Natureza de Krajcberg”, livro de fotografias, ao mesmo tempo o artista mostrou os trabalhos mais recentes. Finalmente, em 2007 publicou FK, outro livro de fotografias.
[xii] Certamente Frans se refere a continuar algo que Jean Dubuffet inicia com a sua Art Brut, ampliando seu sentido para um encontro com a Natureza, tal qual ela é.
[xiii] Nota do autor: referindo-se ao planeta Terra.
(O Autor)
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