Rosangela Toni, 57 anos, chegou a perder as sobrancelhas devido a alergia à Ascarel, um contaminante proibido nos anos 80, mas presente no campus contaminado
“Eu me olhava no espelho e enxergava a visão do inferno”. É assim que a estudante de Gestão Ambiental Rosangela Toni resume os efeitos de sua alergia ao composto químico Ascarel, adquirida, segundo ela, nos gramados da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP), mais conhecida como USP Leste. Rosangela é a primeira aluna do campus a alegar que foi contaminada no terreno da instituição de ensino e a abrir um processo na Justiça contra a Universidade de São Paulo.
Aos 57 anos, Rosangela divide-se entre seus estudos e o trabalho como costureira, em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo. Os primeiros sinais da alergia apareceram em 2013. Depois, avançaram com rapidez. Incapaz de arcar com os custos de exames e tratamento, entre 2013 e 2014 Rosangela perdeu 40% do cabelo e as duas sobrancelhas. A alergia também deixou feridas por todo seu corpo. “Nessa época, eu tinha vergonha de sair na rua por conta da minha aparência e fiquei muito deprimida”, lembra. “Hoje, eu tenho medo de pisar na EACH”.
Atualmente, Rosangela recebe acompanhamento médico no Hospital das Clínicas, primeiro lugar onde aventou-se a hipótese de contaminação por Ascarel, um composto químico altamente cancerígeno. Muito utilizado como isolante elétrico em transformadores industriais, o Ascarel eram comum na indústria brasileira até a sua proibição, em 1981, devido aos riscos à saúde dos trabalhadores. Apesar de barrado por quase 14 anos, o Ascarel continua, ainda hoje, presente em antigos terrenos industriais contaminados. Isso não explicaria, contudo, como a substância chegou até a USP Leste, construída em uma área de proteção ambiental.
A peça que pode completar o quebra-cabeça surgiu em 2013, com o depoimento de Valter Pereira da Silva, dono da empresa Ratão, ao Ministério Público do Meio Ambiente.CP Silva declarou que fazia o serviço de terraplanagem no Templo do Rei Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, e procurava um lugar para despejar a terra da escavação. Como a USP Leste era próxima de sua casa, Silva buscou o apoio da instituição para a prática, que é ilegal.
“Depois da autorização do professor [José Jorge] Boueri [ex-diretor da EACH], o declarante [Silva] passou a levar caminhões de terra, terra essa proveniente do Templo do Rei Salomão, para o interior do campus da USP-Leste”, afirma o documento. Segundo o empresário, todos os ajustes foram verbais, sem contrato escrito. A principal suspeita, assim, é de que o Ascarel seja proveniente do terreno do Templo de Salomão, onde antes existiam indústrias que muito provavelmente despejaram o composto no terreno.
A contaminação, no entanto, pode ter começado anos antes. Isso porque o aterro ilegal, criado em 2011 com o consentimento de Boueri, não foi o primeiro despejo na Área de Proteção Ambiental do Parque Ecológico do Tietê, onde fica a USP-Leste. De acordo com Valter Silva, “por determinação do governador Geraldo Alckmin, no ano de 2007 o sr. Marcos Alano, responsável pela empresa de terraplanagem Alano, retirou a calha do rio Tietê e todo o entulho oriundo da demolição do Presídio do Carandiru e os jogou na área onde hoje está instalada a USP-Zona Leste”. Ao todo, 6 mil caminhões de terra foram depositados no local.
A prática é comum em São Paulo. Segundo, a assessoria do vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das áreas contaminadas, vereador Vavá (PT-SP), muitas empreiteiras, em vez de descontaminar os terrenos onde seus projetos serão erguidos, optam por transportar a terra para outro lugar, barateando a construção, uma vez que não há custos de descontaminação. Para integrantes da CPI, a prática cria o risco de uma contaminação multiplicada por toda a cidade de São Paulo.
Crime ambiental
Inaugurada em 2005, a USP Leste foi construída na Área de Proteção Ambiental do Parque Ecológico do Tietê. Por ser um terreno protegido por lei, o governo estadual paulista só obteve autorização para a construção do campus após comprovar o interesse social da obra e garantir a integridade dos atributos ambientais do local. Jogar resíduos e rejeitos, sobretudo tóxicos, porém, fere o compromisso estabelecido pelo governo, conforme cita o Ministério Público Estadual de São Paulo na Ação Pública movida contra a USP. “[É] evidente que o seu uso para disposição de quaisquer tipos de resíduos ou rejeitos constituem-se de práticas inadequadas, desconformes e proibidas”, diz o documento.
Em 2011, uma perícia realizada pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) comprovou a existência de vários tipos de PCBs, grupo de compostos químicos que abriga o Ascarel, no aterro ilegal da EACH. A área contaminada, na época, era de uso comum dos alunos e frequentadores para o esporte e lazer.
Para a professora da EACH-USP Adriana Tufaile, não havia como o ex-diretor do campus, Jorge Boueri, não ter participação no aterro ilegal. “Durante esse período, o Parque Ecológico do Tietê enviou uma notificação pedindo para parar o aterro. Isso durou alguns dias e, depois, voltou”, conta. “Depois, o diretor do Parque foi transferido”. Segundo Tufaile, algo similar aconteceu com os promotores responsáveis pela Ação Pública contra a USP na Promotoria de Meio Ambiente, que foram promovidos ou entraram em licença.
Após o despejo impróprio, a contaminação só se agravou. Ainda em 2011, durante uma forte chuva, a terra virou lama e se espalhou pelo campus, atingindo inclusive o reservatório subterrâneo de água. Na época, o reservatório era desprovido de proteção externa na parte superior à tampa, peça prevista em seu projeto inicial.
Com o reservatório atingido, houve denúncias de água turva saindo das torneiras e bebedouros. A ação da direção foi rápida. “Na época, a USP limpou rapidamente o reservatório, sem fazer nenhuma análise da presença de contaminantes do aterro na água que foi consumida”, afirma a professora. Isso, de acordo com Tufaile, acabou com a possibilidade de provar que as pessoas chegaram a consumir água contaminada. Além disso, os funcionários da USP-Leste não tiveram a proteção apropriada durante uma obra no aterro de 2011, ficando em contato direto com os metais pesados e compostos tóxicos da terra.
Apenas em dezembro de 2013 a proteção externa foi instalada no reservatório, após a Sabesp constatar a presença de coliformes totais na água, como consequência da falta de proteção. Coliforme totais são grupos de bactérias presentes no intestino de mamíferos e servem como parâmetro de qualidade da água. “Tivemos episódios de diarreia coletiva na escola, mas sempre ligávamos à comida servida no refeitório”, conta Tufaile. Uma análise completa da água para identificar a contaminação por metais não foi feita. Dias depois, o campus foi interditado após ser constatada a inoperância do sistema de incêndio, uma infestação por piolho de pombo e a presença de gás metano no local.
O Ministério Público acredita que as diversas exigências técnicas feitas para a construção da USP Leste demonstram o “prévio conhecimento do histórico do local no que se refere à existência de contaminantes e da presença de gás metano”, afirma em um relatório anexado na Ação Civil Pública contra a universidade.
A interdição para a descontaminação perdurou de janeiro a julho de 2014, quando a Justiça liberou a volta às aulas no campus baseada em um relatório da Cetesb. O responsável por assinar o documento foi Elton Gloeden, gerente de áreas contaminadas da companhia de saneamento. Semanas antes, em reunião da CPI de áreas contaminadas, Gloeden disse que a contaminação não poderia ser resolvida com grama e tapume, conforme a Cetesb orientou e direção da USP-Leste segue atualmente. “Isso foi feito em caráter emergencial. O que a Cestesb considera como uma proposta razoável seria a realização de uma cobertura melhor, com um solo limpo, com algum tipo de material que conseguisse isolar esse material, além demarcá-lo para que não se tenha contato nenhum com esse material”, disse Gloeden.
Em resposta à reportagem, a assessoria da EACH-USP disse que todo o sistema de ventilação de gás metano foi instalado e está em pleno funcionamento, com medições diárias. Quanto à contaminação do solo, a assessoria disse que a área foi isolada conforme determinação da Cetesb. “Um serviço de investigação ambiental detalhado e avaliação de riscos toxicológicos será contratado pela Superintendência de Espaço Físico da USP (Edital aberto) irão complementar estudos já realizados. A partir desses estudos, a Cetesb irá determinar o que de fato deverá ser feito com a terra que estiver comprovadamente contaminada e que foi depositada no campus”, afirma a nota.
Medo de voltar
Apesar dos sintomas, Rosangela não pode deixar de frequentar a universidade, sob a ameaça de ser expulsa da instituição. A expulsão está atrelada ao tempo que a aluna frequenta a universidade sem concluir um curso. Inicialmente, Rosangela ingressou em 2003 no curso de Meteorologia no Instituto de Astronomia e Geofísica da USP (IAG-USP), mas decidiu pedir transferência para a USP Leste logo após sua abertura, em 2005, motivada pelo menor trajeto de sua casa, em Guarulhos, à universidade. “Eu tenho medo de pisar na EACH, mas entrar na USP foi uma conquista para mim e eu me recuso a sair, a desistir”.
Internamente, a diretoria da EACH não vê ligação entre o campus e a alergia de Rosangela e nega que os índices de contaminação por compostos químicos e metais pesados sejam altos o suficiente para gerar problemas de saúde para os alunos.
Por meio de nota, a direção da EACH USP disse que “entrou em contato com a Superintendência de Saúde da USP, que colocou o Hospital Universitário à disposição da aluna para que ela realizasse uma série de exames. No entanto, até a presente data, a aluna não compareceu ao hospital e, portanto, não realizou nenhum exame”.
Rosangela cita dois motivos para não ter feito o exame: o difícil acesso ao hospital e a desconfiança a respeito dos órgãos da universidade. “Eu moro na periferia de Guarulhos. Se eu me deslocar até o HU eu perco o dia”, diz. “Além disso, eu não confio na USP, quero um tratamento privado”, completa. Em seu processo, Rosangela pede uma indenização pela doença e os custos com exames e medicamentos, além da transferência para outro campus da USP e o tratamento de sua doença na rede particular de saúde.
Além da ação civil da aluna, tramitam na Justiça dois processos contra a USP por conta dos eventos ocorridos na USP-Leste: uma ação civil pública do Ministério Público do Meio Ambiente e um inquérito do Ministério Público da Fazenda para apurar crimes ambientais e administrativos, além da improbidade administrativa contra o ex-diretor Boueri. Além disso, o relatório final da CPI de áreas contaminadas de São Paulo, previsto para fevereiro, defenderá que o tratamento dado pela USP-Leste aos contaminantes não é o ideal, adiantou a assessoria ambiental do vereador Aurélio Nomura (PSDB-SP), relator da CPI.
Hoje, a ação civil pública está emperrada na Justiça, aguardando a realização de perícias no local. O processo sofreu com a transferência dos promotores responsáveis pela ação e, hoje, segundo a assessoria do MP-SP, está nas mãos de um novo promotor, que herdou o processo de mais de 5 mil páginas da USP Leste. Dentro da USP, o processo administrativo aberto contra o ex-diretor Boueri em 2013 ainda não foi concluído. Boueri segue como docente da EACH-USP e voltará a lecionar no primeiro semestre de 2015.
* Publicado originalmente no site Carta Capital.
(Carta Capital)
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