“Os estudos apresentados sobre os transgênicos são em quase sua totalidade elaborados pelas empresas que propõem a sua liberação, ou que foram contratados por elas”, denuncia o agrônomo.
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Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Ferraz questiona as relações éticas estabelecidas entre aquele que desenvolve a pesquisa e as empresas que lutam pela liberação da transgenia. Tal prejuízo viria desde a formação acadêmica até a pós. “O estreitamento da relação ensino/empresas e pesquisa/empresa, ao invés do efeito desejado de formar profissionais com uma visão também de mercado e tornar a pesquisa focada na realidade, criou uma relação empresa/ensino e empresa/pesquisa de conluio e dependência”, aponta ele. Tais empresas são as grandes financiadoras dos estudos da área e, por vezes, chegam até mesmo a atuar como prestadoras de serviço para pesquisas públicas, o que geraria novos dilemas éticos.
Para o pesquisador, esta relação desbalanceada, onde liberações legais são criadas para seguir interesses corporativos, pode trazer muitos riscos para o País. Um dele diz respeito às sementes terminator, patenteadas e desenvolvidas para darem origem a grãos estéreis — forçando a compra de novas sementes. “Existe o risco de o pólen de uma planta contendo o gene “terminator” fecundar outra planta, inclusive variedades crioulas, e torná-la estéril”, aponta ele.
Por enquanto, o uso da semente não é permitido em nenhum país do mundo. No entanto, no Brasil, há várias propostas para a sua liberação. “Isso nos coloca mais uma vez na ponta, mas na ponta da prancha que era usada pelos piratas para executar seus inimigos”, ironiza.
José Maria Gusman Ferraz é mestre em Agronomia pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Cursou pós-doutorado em Agroecologia pela Universidade de Córdoba – UCO, Espanha. Atualmente é professor do curso de mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural da UFSCar e professor convidado da Unicamp.
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IHU On-Line – O que leva uma variedade transgênica no Brasil, mesmo considerada insegura por diversos estudos, a ser aprovada? São pressões e lobbies de que espécie?
José Maria Gusman Ferraz - São vários os fatores, um deles é seguramente o ponto de vista simplista da maioria dos membros da CTNBio de que não existem riscos, mesmo com todas as evidências que as publicações independentes têm apontado. Alguns membros (ou o departamento em que trabalham) também desenvolvem trabalhos com transgênicos e prestam serviços para empresas que estão produzindo transgênicos, em alguns casos criando um problema ético complicado para sua atuação na CTNBio. Entre outros fatores está o de que as regras de biossegurança são por vezes desconsideradas, como a necessidade de estudos mais longos para verificação de efeitos crônicos, e não só de efeitos agudos, sobre organismos não alvos feitos de forma criteriosa.
IHU On-Line – Muito se fala sobre os riscos dos transgênicos em longo prazo. Quanto tempo é necessário para determinar que um OGM seja seguro para a saúde humana?
José Maria Gusman Ferraz - Trabalhos realizados na Argentina estabelecem uma correlação entre o aumento de plantio de soja transgênica e o aumento de incidência de nascimentos prematuros e de crianças que nascem com deficiências (efeitos teratogênicos). Como não existe uma forma de estabelecer uma relação causa—efeito, pois a população não usa só um tipo de alimento, fica difícil estabelecer esta correlação. No caso do DDT (um inseticida organoclorado), foram necessárias décadas para que se evidenciasse na população seus efeitos deletérios sobre a saúde humana e o meio ambiente, embora houvesse estudos indicando a possibilidade de sua correlação, assim como ocorre hoje com os transgênicos, e que foram desconsiderados pela academia na época.
IHU On-Line – Atualmente usamos transgênicos nas vacinas, na alimentação humana e animal. O que é preciso, afinal, para que um OGM seja considerado seguro?
José Maria Gusman Ferraz - É necessário que sejam efetuados estudos de longo prazo e intergeracionais (mais de uma geração), e que estes estudos sejam efetuados de forma independente. Os estudos apresentados sobre os transgênicos são em quase sua totalidade elaborados pelas empresas que propõem a sua liberação, ou que foram contratados por elas. As poucas publicações independentes de longo prazo indicam riscos, o que mereceria maior atenção para que fossem desenvolvidas novas pesquisas para verificar a segurança ou não dos transgênicos.
Caso flagrante é do milho NK 603, que tem um estudo publicado em revista de referência internacional indicando claramente o alto risco de sua utilização e que foi desconsiderado pela CTNBio. Porém, ao contrário do que indica um comportamento comprometido com a busca da verdade científica, estes trabalhos são criticados e não são considerados pela CTNBio, que não apresenta o mesmo rigor na hora da liberação comercial dos transgênicos. Entre inúmeros casos, um dos mais gritantes é a liberação do feijão transgênico da Embrapa.
IHU On-Line – Acredita que as políticas públicas são pautadas pelo resultado das pesquisas científicas?
José Maria Gusman Ferraz – Infelizmente, a meu ver, ocorre exatamente o contrário. Os interesses das empresas e seus lobbies determinam o estabelecimento de políticas públicas e normas regimentais. Isto fica claro na flexibilização que a CTNBio vem tendo ao longo do tempo, passando de órgão consultivo para deliberativo. Depois, as decisões que eram definidas por maioria absoluta (o que levava a mais discussões científicas) passam a ser por maioria simples.
A mudança nas regras de liberação para experimentos no meio ambiente, que as tornou mais flexíveis, tinha como perspectiva um controle e avaliação detalhada no acompanhamento após a liberação comercial. Fato que ocorreu de forma inversa, pois a exigência dos estudos pós-liberação comercial foi flexibilizada ao extremo com uma nova resolução, permitindo inclusive que a empresa solicitasse a isenção de monitoramento.
IHU On-Line – Qual a relação dos pesquisadores com essas indústrias que promovem pesquisas em transgenia?
José Maria Gusman Ferraz - Variam, desde a total isenção até uma proximidade que poderiam caracterizar conflitos de interesse; houve inclusive uma publicação nominando pesquisadores que, segundo a autora, tinham ligações com empresas. A entrada e saída de membros e assessores de empresas para a CTNBio e vice-versa também ocorre, sem ao menos observar um tempo de “carência” de um para outro.
IHU On-Line – Que tensionamentos éticos se estabelecem na relação entre cientista e mercado? Como garantir que os resultados das pesquisas tenham isenção?
José Maria Gusman Ferraz - A formação de novos pesquisadores já sofre uma forte influência das empresas desde os cursos de graduação, passando pela pós, pois o estreitamento da relação ensino/empresas e pesquisa/empresa, ao invés do efeito desejado — formar profissionais com uma visão também de mercado e tornar a pesquisa focada na realidade —, criou uma relação empresa/ensino e empresa/pesquisa de conluio e dependência com total ausência de ética. Além da visão neoliberal implementada no País, que torna o Estado mero observador e incentivador destas discrepâncias, há também situações como o aparelhamento de laboratórios por empresas e a elaboração de projetos conjuntos. Outro exemplo é a prestação de serviços de empresas públicas, em que consta uma cláusula de que os resultados obtidos, para que sejam divulgados, precisam ter o aval da empresa privada.
IHU On-Line – Nestes 10 anos de transgênicos no Brasil, como você enxerga a discussão sobre o tema no País? Ela tem avançado para uma base empírica mais justificada ou ainda é baseada no senso comum?
José Maria Gusman Ferraz - A discussão pouco tem avançado e a população não tem a mínima informação do que está ocorrendo, até mesmo com a rotulagem dos produtos, que não é observada na forma prevista na lei. As empresas têm feito um trabalho de patrocínios de eventos acadêmicos e publicações por instituições mantidas por elas para construir uma ideia da segurança absoluta da tecnologia. Os estudos que existem são, em sua quase totalidade, os fornecidos pelas empresas, e os trabalhos independentes têm apontado riscos que eram previstos na teoria, mas que são desconsiderados pela maioria dos membros da CTNBio, por pura crença de que os transgênicos são seguros.
IHU On-Line – Como funcionam exatamente as sementes terminator e qual a relação disso com os royalties pagos para as desenvolvedoras? Por que é uma opção vantajosa e quais os riscos envolvidos?
José Maria Gusman Ferraz - A tecnologia terminator é patenteada pela empresa Delta & Pine, que introduz um gene que, incorporado às sementes, faz com que estas, quando forem plantadas, deem origem a plantas de sementes estéreis. Ou seja, produzem grãos e não mais sementes, interrompendo o ciclo natural de vida. Exemplificando de forma simples, eles agem através de “promotores” que na fase final de embriogênese (formação do embrião da planta) inibem o transporte de substâncias de reserva da semente para alimentar o embrião, causando sua morte. A inserção deste gene na planta é extremamente vantajosa para as empresas e extremamente desvantajosa para o agricultor e para a segurança e soberania alimentar do País.
Existe o risco de o pólen de uma planta contendo o gene “terminator” fecundar outra planta, inclusive variedades crioulas, e torná-la estéril. Por enquanto ela não é permitida em nenhum país, mas no Brasil vários projetos estão em tramitação para liberar o seu uso. Isso nos coloca mais uma vez na ponta, mas na ponta da prancha que era usada pelos piratas para executar seus inimigos.
IHU On-Line – Em relação a outros países do mundo, como percebe a relação do brasileiro com os transgênicos? Produtores e consumidores têm consciência do que estão comendo e plantando?
José Maria Gusman Ferraz - O brasileiro comum e mesmo aqueles com mais conhecimento não têm informação sobre o que seja transgênico, nem o que significa o triângulo amarelo com o T na cor preta — quando visível —, e muito menos como este alimento pode estar influenciando em sua alimentação.
O produtor tem pouca opção, pois dificilmente encontra sementes não transgênicas no mercado, pois para as empresas que dominam este mercado interessa vender a semente transgênica. É uma venda casada com o agrotóxico, que ela mesma comercializa. O mesmo acontece para quem planta com a tecnologia Bt, que obrigatoriamente tem que plantar uma área sem transgênicos para retardar o tempo e adquirir resistência.
IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?
José Maria Gusman Ferraz - Esta tecnologia, que prometia reduzir o uso de agrotóxicos, está fazendo exatamente o contrário. O uso indiscriminado e em larga escala da tecnologia no país tem levado à seleção de plantas espontâneas tolerantes aos herbicidas, o que tem elevado o número de aplicações. Há relatos de até 15 aplicações para obter o resultado esperado. No caso da tecnologia Bt, após prejuízos de 10 bilhões de dólares, o Brasil aprovou em tempo recorde a Portaria de número 1109 [1], a qual permite a importação do inseticida (benzoato de emamectina), extremamente tóxico e que até agora era proibido no Brasil.
NOTA:
[1] Portaria MAPA 1109/2013: Portaria que, entre outras medidas, prevê a autorização, em caráter emergencial e temporário, da importação de produtos agrotóxicos que tenham como ingrediente ativo a substância Benzoato de Emamectina para fins de contenção da praga Helicoverpa armigera.
(Por Andriolli Costa)
(EcoDebate, 25/11/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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