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segunda-feira, 8 de julho de 2013

A erosão do sentido da vida e as manifestações de rua


Leonardo Boff (ao centro), em atividade da Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Brasileira (CPDS), na COP 8, Curitiba, em 2006. Foto: Cintia Barenho/CEA

Leonardo Boff

Está lentamente ficando claro que as massivas manifestações de rua ocorridas nos últimos tempos no Brasil, e também pelo mundo afora, expressam mais que revindicações pontuais, como uma melhor qualidade do transporte urbano, melhor saúde, educação, saneamento, trabalho, segurança e uma repulsa à corrupção e à democracia das alianças sustentada por negociatas. Fermenta algo mais profundo, diria quase inconsciente, mas não menos real: o sentimento de uma ruptura generalizada, de frustração, de decepção, de erosão do sentido da vida, de angústia e medo face a uma tragédia ecológico-social que se anuncia por toda a parte e que pode pôr em risco o futuro comum da humanidade. Podemos ser uma das últimas gerações a habitar este planeta.
Não é sem razão que 77% dos manifestantes tenham curso superior,quer dizer, gente capaz de sentir este mal-estar do mundo e expressá-lo como recusa a tudo o que está aí.
Primeiro, é um mal-estar face ao mundo globalizado. O que vemos nos envergonha, porque significa a racionalização do irracional: o império norte-americano, decadente, para se manter precisa vigiar grande parte da humanidade, usar da violência direta contra quem se opõe, mentir descaradamente como na motivação da guerra contra o Iraque, desrespeitar acintosamente qualquer direito e norma internacional como o sequestro do presidente Evo Morales, da Bolívia, feita pelos europeus mas forçados pelos corpos de segurança norte-americanos. Negam os valores humanitários e democráticos de sua história e que inspiravam outros países.
Segundo, a situação de nosso Brasil. Não obstante as políticas sociais do governo do PT que aliviaram a vida de milhões de pobres, há um oceano de sofrimento, produzido pela favelização das cidades, pelos baixos salários e pela ganância da máquina produtivista de cariz capitalista que, devido à crise sistêmica e à concorrência cada vez mais feroz, superexplora a força de trabalho. Só para dar um exemplo: pesquisa feita na Universidade de Brasília apurou que entre 1996 e 2005 a cada 20 dias um bancário se suicidava, por causa das pressões por metas, excesso de tarefas e pavor do desemprego. Nem falemos da farsa que representa nossa democracia. Valho-me das palavras do cientista social Pedro Demo, professor da UNB, em sua Introdução à sociologia(2002): ”Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leisbonitas mas feitas sempre, em última instância, pela elite dominante para que sirva a ela do começo até o fim. Político é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar parentes e apaniguados, enriquecer-se às custas dos cofres públicos e entrar no mercado por cima… Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação” (págs. 330-333). Agora, entendemos por que a rua pede uma reforma política profunda e outro tipo de democracia em que o povo quer codecidir os caminhos do país.
Há um oceano de sofrimento, produzido pela favelização das cidades, baixos salários e ganância da máquina produtivista
Terceiro, a degradação das instâncias do sagrado. A Igreja Católica ofereceu-nos os principais escândalos que desafiaram a fé dos cristãos: pedofilia de padres, de bispos e até de cardeais. Escândalos sexuais dentro da própria Cúria romana, o órgão de confiança do papa. Manipulação de milhões de euros dentro do Banco do Vaticano (IOR), onde altos eclesiásticos se aliaram a mafiosos e a corruptos milionários italianos para lavar dinheiro. Igrejas neopentecostais atraem em seus programas televisivos milhares de fiéis, usando a lógica do mercado e transformando a religiosidade popular num negócio infame. Deus e a Bíblia são colocados a serviço da disputa mercadológica para ver quem atrai mais telespectadores. Setores da Igreja Católica não escapam desta lógica com a espetacularização de showmissas e dos padres-cantores com sua autoajuda fácil e canções melífluas.
Por fim, não escapa ao mal-estar generalizado a situação dramática do planeta Terra. Todos estão se dando conta de que o projeto de crescimento material está destruindo as bases que sustentam a vida, devastando as florestas, dizimando a biodiversidade e provocando eventos cada vez mais extremos. A reação da Mãe Terra se dá pelo aquecimento global, que não para de subir; se chegar nos próximos decênios a 46 graus Celsius pelo aquecimento abrupto, este pode dizimar a vida que conhecemos e impossibilitar a sobrevivência de nossa espécie, com o desaparecimento de nossa civilização.
Não dá mais para nos iludirmos, cobrindo a feridas da Terra com esparadrapo. Ou mudamos de curso, preservando as condições de vitalidade da Terra, ou o abismo já nos espera.
Como insiste a Carta da Terra: ”Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados”; é esta interligação real mas, em parte inconsciente, que leva milhares às ruas querendo outro mundo possível e agora necessário. Ou aproveitamos a chance para as mudanças ou não haverá futuro para ninguém. O inconsciente coletivo pressente este drama e daí o clamor das ruas por mudanças. Sem atender às demandas, poderemos protelar a tragédia mas não a evitaremos. Agora é ouvir e agir.
Fonte: Jornal do Brasil, 08/07/2013.
Leonardo Boff, filósofo e teólogo, é autor de diversos livros, entre os quais ‘Proteger a Terra e cuidar da vida: Como evitar o fim do mundo’. (Record, 2010).

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