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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
O Censo e os agrotóxicos: o uso seguro é possível? - Raquel Maria Rigotto
Censo Agropecuário mostra que 56% dos estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos não receberam orientação técnica. Confira artigo de Raquel Maria, para a revista do MST.
O Censo Agropecuário de 2006, divulgado apenas em 2010 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), revelou alguns dos impactos do uso de agrotóxicos em larga escala no Brasil.
O país é o que mais utiliza produtos químicos no campo, e quem os administra são trabalhadores que, em sua maioria, não foram capacitados para essa ativividade insalubre.
Contexto
Desde o começo da Revolução Verde, tem-se debatido o uso de agrotóxicos e suas implicações para o ambiente e a saúde humana. Ao que tudo indica, caminhamos para a aceitação de sua utilização, estabelecendo regras que garantam a proteção das diferentes formas de vida expostas aos biocidas – seria o paradigma do uso seguro, também aplicável a outros agentes nocivos, como o amianto.
A legislação brasileira para a regulação dos agrotóxicos se constrói sob o paradigma do uso seguro. A Lei n° 7.802/89 e o Decreto nº 4.074/2002 atribuem aos ministérios da Agricultura, Meio Ambiente e Saúde a competência de “estabelecer diretrizes e exigências objetivando minimizar os riscos apresentados por agrotóxicos, seus componentes e afins” (Art. 2º, inciso II). Entre elas estão a obrigatoriedade do registro dos agrotóxicos, após (re)avaliação de sua eficiência agronômica, sua toxicidade para a saúde e sua periculosidade para o meio ambiente; o estabelecimento do limite máximo de resíduos aceitável em alimentos e do intervalo de segurança entre a aplicação do produto e sua colheita ou comercialização; a definição de parâmetros para rótulos e bulas; a fiscalização da produção, importação e exportação; as ações de divulgação e esclarecimento sobre o uso correto e eficaz dos agrotóxicos; a destinação final de embalagens etc.
No que diz respeito aos trabalhadores, o Ministério do Trabalho determina que os empregadores realizem avaliações dos riscos para a segurança e a saúde e adotem medidas de prevenção e proteção. Esta Norma (NR 31 da Portaria 3214/78) sublinha ainda o direito dos trabalhadores à informação, ao determinar que sejam fornecidas a eles instruções compreensíveis sobre os riscos e as medidas de proteção implantadas, os resultados dos exames médicos e complementares a que foram submetidos assim como das avaliações ambientais realizadas nos locais de trabalho etc.
Sustentável?
Mas no contexto em que vivemos hoje é possível fazer valer o uso seguro dos agrotóxicos? Vejamos alguns dados.
Em primeiro lugar, é preciso saber a magnitude do uso do agrotóxico no Brasil: somos o país que mais consumiu químicas agrotóxicas no mundo em 2008. Foram 673.862 toneladas – o que corresponde a cerca de 4 quilos de agrotóxicos por habitante. Isto rendeu US$ 7,125 bilhões para a indústria química (Sindag, 2008). São 470 ingredientes ativos, apresentados em 1.079 produtos formulados (Meirelles, 2008).
Diante desse quadro, para garantir o uso seguro dos agrotóxicos, seria preciso fiscalizar 5,2 milhões de estabelecimentos agropecuários, que ocupam uma área correspondente a 36,75% do território nacional. São 16.567.544 pessoas dedicadas ao setor – incluindo produtores, seus familiares e empregados temporários ou permanentes –, o que corresponde a quase 20% da população ocupada no Brasil. Além deles, também seria necessário acompanhar a proteção dos trabalhadores nas categorias de usos não agrícolas, como os comerciantes destes produtos e os funcionários das fábricas. Isso, claro, sem mencionar os moradores do entorno das indústrias e todos os consumidores de alimentos, que podem ser contaminados com doses diárias de veneno.
É nessa hora que pesam as deficiências das políticas públicas. Não faltam exemplos sobre as dificuldades de implementação do receituário agronômico ou notícias sobre o uso de produtos ilegais. Mais que isso, há que considerar as condições políticas para adotar a legislação reguladora: tome-se aqui, por exemplo, a ação incisiva do segmento ruralista no sentido de dificultar a reavaliação pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de agrotóxicos já banidos por diversos países, inclusive a China – como é o caso do metamidofós e do paration metílico.
Qualificação profissional
Além disso, outra dificuldade para adotar medidas mitigadoras de risco e protetoras da saúde que é, de acordo com o IBGE, a grande maioria dos produtores rurais é analfabeta e mais de 80% têm baixa escolaridade. Há também um recorte de gênero: entre as mulheres, que respondem por cerca de 13% dos estabelecimentos agropecuários, o analfabetismo chega a 45,7%, enquanto entre os homens, essa taxa é de 38,1%. As regiões Norte (38%) e Nordeste (58%) concentram os maiores percentuais. Não se pode considerar a priori que baixa escolaridade signifique pouco conhecimento: há extenso e fecundo saber popular e tradicional entre os diferentes grupos de trabalhadores do campo, mas não exatamente em relação aos agrotóxicos, produto da civilização ocidental urbano-industrial.
Agravando esta condição de vulnerabilidade, acrescente-se que há mais de 1 milhão de crianças com menos de 14 anos de idade ocupadas com a agropecuária e quase 12 milhões de trabalhadores temporários, o que dificulta a capacitação e o acúmulo de experiência profissional.
Outro dado importante é que a assistência técnica continua muito limitada, sendo praticada em apenas 22% dos estabelecimentos – aqueles cuja área média é de 228 hectares. O Censo Agropecuário de 2006 mostra que mais da metade dos estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos não recebeu orientação técnica (785 mil ou 56,3%). O pulverizador costal, que é o equipamento de aplicação que apresenta maior potencial de exposição aos agrotóxicos, é o utilizado em 973 mil estabelecimentos. As embalagens vazias são queimadas ou enterradas em 358 mil estabelecimentos e 296 mil estabelecimentos não utilizaram nenhum equipamento de proteção individual. E nos que utilizaram, a maioria adotou apenas botas e chapéu.
“Uso seguro”
Para implementar de maneira consequente e responsável o paradigma do “uso seguro” dos agrotóxicos, seria preciso conceber um vultoso e complexo programa, que incluiria a alfabetização dos trabalhadores; a sua formação para o trabalho com agrotóxicos; a assistência técnica; o financiamento das medidas e equipamentos de proteção; a estrutura necessária para o monitoramento, a vigilância e assistência pelos órgãos públicos; e a ampliação da participação dos atores sociais no processo de tomada de decisões, entre outros. Quanto tempo, recursos e vidas demandaria isso?
A intervenção para o uso seguro teria ainda que desenvolver estratégias específicas para os diferentes contextos em que o risco se materializa, considerando, por exemplo, que apenas a soja consumiu a metade destas 673 mil toneladas, seguida pelo milho com 100 mil e a cana com 50 mil toneladas. Ou seja, só nestes cultivos do agronegócio já teríamos cerca de 70% do consumo de agrotóxicos no país. Quais as estratégias para viabilizar o uso seguro neste setor?
Talvez caiba aqui a analogia do “brinquedo perigoso demais para ficar na mão de criança”: precisamos reconhecer que, por enquanto, não temos condições de fazer o uso seguro. E como as consequências dos agrotóxicos para a vida também são graves, extensas, de longo prazo e algumas irreversíveis ou ainda desconhecidas, não seria o caso de priorizar a eliminação do risco, como quer a legislação trabalhista? Não estaria na hora de ouvir ambientalistas, movimentos sociais, trabalhadores e profissionais de saúde que vêm, há décadas, falando e fazendo agroecologia?
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FONTE : Raquel Maria Rigotto, Médica, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC. Coordenadora do Núcleo TRAMAS. Conselheira Titular do Conselho Nacional de Saúde, representante FBOMS (Fórum de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento). Artigo socializado pela CPT – Comissão Pastoral da Terra e publicado pelo EcoDebate, 07/01/2011.
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