O ano de 2014 representa um desafio crítico à equipe econômica do governo federal, porque “o tripé macroeconômico responsável pela responsabilidade fiscal, pela questão da inflação, do equilíbrio externo, está de certa forma desalinhado”, avalia Guilherme Delgado em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone. Na avaliação dele, a dívida pública impactada pelo processo de retomada da taxa básica Selic, a condição externa ruim da conta corrente e o baixo crescimento conferiram a 2013 “um ano de semiestagnação”.
Ele explica que, nos dois primeiros anos, o governo Dilma rompeu com o tripé macroeconômico, apostando em um crescimento apoiado em políticas keynesianas de ativação do crédito e do gasto público. Mas no terceiro ano retomou a fórmula e demarcou “um retorno ao conservadorismo econômico, talvez nem tanto por concepção, mas por uma certa imposição das circunstâncias e uma leitura que o governo fez no sentido de se adaptar a essa engenharia financeira”.
Para Delgado, os déficits da economia brasileira e o baixo crescimento estão relacionados a “uma aposta imediatista” do governo de conferir ao setor agroindustrial um “papel diretor na política econômica” e de abandonar os investimentos em setores industriais de intensidade tecnológica. “Essa é uma arma séria contra o próprio futuro da indústria, e com isso o Brasil acumula déficits enormes, como no ano passado: mais de 100 bilhões de dólares nas transações comerciais da indústria”, adverte.
O economista destaca ainda que a política de incentivo ao consumo por meio do crédito, iniciada no governo Lula, também se esgotou. Ele explica: “Com a indústria com um grau de dependência que apresenta hoje por conta das exportações, qualquer incentivo que se der ao consumo — que antes se materializava sob a forma de incentivo ao consumo, salário em elevação, demanda por bem de consumo e salário atendidas pelo setor doméstico — pode piorar, porque a demanda por bens-salário é atendida por exportações crescentes. A elevação de uma massa de salários internos, seja por aumento de emprego ou da taxa de salário, tem como correspondente, em vez da demanda para a indústria, a demanda para a importação de produtos chineses. Então, vazam para o exterior os incentivos distributivos bons da política social não porque ela seja má, mas porque a política econômica externa de dependência crescente das exportações industriais torna o toque distributivo da política social oneroso ao déficit do comércio e das transações correntes”. E acrescenta: “Então, uma coisa tem de ser corrigida junto com a outra. Precisa se manter a política social e o efeito distributivo, porque o Brasil não é nenhum nirvana de igualdade social. Mas precisa corrigir essa lógica que permite ter, no fim do ano, o déficit comercial de 100 bilhões de dólares. Não há país que funcione assim por longo prazo. A dívida é um sintoma do padrão de subdesenvolvimento do arranjo do neodesenvolvimentismo do governo Dilma, que copiou coisas do governo Lula, mas numa conjuntura piorada”.
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Que mudanças o governo Dilma introduziu na economia brasileira? Percebe alguma mudança de direção na política econômica e em relação à dívida pública entre uma primeira e segunda fase do seu governo?
Guilherme Delgado – Do ponto de vista da política monetária, a principal mudança foi a volta ao sistema de elevação de juros internos com as sucessivas altas de 0,5% na taxa Selic. Essa mudança levou a economia ao estágio anterior. O governo Dilma, em 2011, 2012, havia iniciado um processo sistemático de redução da taxa de juros para colocá-la em um patamar internacional mais competitivo. Contudo, no segundo semestre de 2013 voltou atrás por várias razões — muito disso tem a ver com a pressão do setor financeiro. Dilma voltou ao sistema convencional de usar a política monetária do Banco Central como principal via de contenção das tendências inflacionárias que não são tão fortes, mas que também estão presentes. Essa é a principal mudança de 2013.
Em relação à dívida isso tem um impacto negativo, porque praticamente toda a dívida pública interna é ancorada na taxa mínima da Selic. Quando se reajusta a taxa básica, você impacta a dívida pública pelo incremento de juros que incidem sobre ela. Então esse é um fator diretamente associável a essa política. Agora, não foi só isso que o governo Dilma fez no ano passado no sentido de se alinhar em uma perspectiva mais “constrangida” da economia. A economia andou mal em relação ao crescimento, o qual foi na faixa de 2%. Se considerarmos um crescimento populacional de 1.8, é praticamente um crescimento per capita próximo de zero, e isso não é muito bom.
Outro aspecto que não é propriamente de política de governo, mas que é fundo de resultados econômicos, é o resultado externo, ou seja, o elevado nível do déficit em conta corrente na faixa dos 80 bilhões de dólares no exercício fiscal de 2013. Esse também é um resultado muito ruim do ponto de vista das relações mais ou menos equilibradas do setor externo. Esses três componentes: a dívida pública impactada pelo processo de retomada da taxa básica Selic, a condição externa ruim da conta corrente e o baixo crescimento conferiram ao ano de 2013 um ano de semiestagnação.
IHU On-Line – Há uma discussão entre os economistas de que Dilma teria abandonado o tripé econômico formado por câmbio flutuante, meta de inflação e responsabilidade fiscal. Como o senhor se posiciona? O governo abandonou essa fórmula? Ela ainda é necessária para a economia?
Guilherme Delgado – Nos primórdios do governo Dilma — primeiros dois anos —, ainda se trabalhava com a hipótese de que era crucial enfrentar os dilemas da crise de estagnação mundial com uma política ativa de ação do Estado no sentido de criar ou propiciar uma demanda econômica que tornasse a economia mais propícia ao crescimento. Essa é um pouco a ideia do Ministro Mantega e dos seus assessores.
Tripé econômico x política keynesiana
Essa tese do crescimento apoiada na demanda com políticas keynesianas de ativação do crédito, de ativação do gasto público, são, de certa forma, distintas desse tripé de câmbio flutuante, meta de inflação e responsabilidade fiscal, porque quando se tem de fazer a política de demanda efetiva, é preciso injetar recursos na economia, portanto, rompe-se um pouco com esse tripé. Mas essa ruptura ocorreu nos dois primeiros anos. No terceiro ano, em 2013, o governo retornou a esse enredo de estabilização stricto senso que está contido no tripé. Na verdade, o ano de 2013 demarca um retorno ao conservadorismo econômico, talvez nem tanto por concepção, mas por uma certa imposição das circunstâncias e uma leitura que o governo fez no sentido de se adaptar a essa engenharia financeira.
Estamos em 2014 e essa engenharia é de certa forma o preâmbulo da política macroeconômica, mas tudo indica que ela irá sofrer alguns reveses: primeiro, como este é um ano eleitoral, normalmente haverá um gasto público maior por razões eleitorais dos três níveis de governo; segundo, por ser um ano esportivo, tem uma série de ações de investimentos públicos que estão sendo apressadamente concluídos porque não foram bem planejados e isso também gera resultados econômicos. Agora, nem o ano eleitoral, nem o ano esportivo são um componente equilibrado ou sustentado no sentido de relançar o crescimento econômico, porque para relançá-lo é preciso investir nos setores que aumentam a produtividade do conjunto do sistema econômico. A produtividade do sistema econômico nesse momento depende muito mais de investimentos na indústria manufatureira, que está muito estagnada, e nas infraestruturas dos serviços públicos, que também estão sendo paralisadas. Não se pode investir em obras da Copa e em uma série de infraestruturas urbanas necessárias, mas muito mais ligadas a eventos dessa natureza, do que no conjunto das obras de infraestrutura mais ligadas a se repartir em serviço para o conjunto do sistema social e econômico.
Vejo o ano de 2014 como um desafio crítico, em que as obras da Copa tomam o lugar de obras que são necessárias. O Estado tem o papel de protagonista, mas não está conseguindo exercê-lo, porque o tripé macroeconômico responsável pela responsabilidade fiscal, pela questão da inflação, do equilíbrio externo, está de certa forma desalinhado.
IHU On-Line – Por que esses investimentos na indústria não são feitos do modo esperado? O Estado fica refém de alguém?
Guilherme Delgado – Há setores industriais cujo investimento — até dois, três anos atrás — têm se dado em ritmo forte, por exemplo, como no caso da indústria frigorífica, que na realidade chamamos de indústria, mas é um processo leve de transformação de carnes em commodities. O mesmo tipo de investimento ocorre com a indústria do setor sucroalcooleiro, que é uma indústria que transforma cana-de-açúcar em açúcar e álcool e que está em forte crise. A indústria ligada a papéis de celulose também tem uma forte competitividade externa que cresce, as indústrias ligadas ao complexo de rações e concentrados agrícolas também crescem, mas essas são indústrias leves, que dependem fortemente do preço de commodities que estão ou poderiam estar “bombando” no mercado mundial.
Nó da questão
O problema todo é que quando esse conjunto de setores agroindustriais assume um papel diretor na política econômica — porque eles são o vetor principal em cima do qual o Brasil perseguiu e ainda persegue o equilíbrio externo —, de certa forma se abandonam os investimentos em setores de maior intensidade tecnológica, de trabalho qualificado e inovação, porque esses setores concorrem com setores que têm, no mundo exterior, uma competitividade instalada mais forte.
O que temos hoje é um problema de perda enorme de competitividade da indústria brasileira no setor internacional por conta dessa defasagem entre as vantagens competitivas construídas em comparação com as vantagens comparativas naturais, que vêm da exploração ultraintensiva de recursos naturais. O governo fez uma aposta imediatista por conta da vantagem comparativa natural porque ela já está posta, não precisa muito conhecimento e sempre se exportam commodities. Mas essa é uma arma séria contra o próprio futuro da indústria, e com isso o Brasil acumula déficits enormes, como no ano passado: mais de 100 bilhões de dólares nas transações comerciais da indústria. Ora, se há déficits na indústria e nos serviços, e se remete toda a responsabilidade para setores primários de mineração e petróleo para resolver o desequilíbrio externo, essa é uma armadilha que coloca a dependência brasileira numa situação muito grave. Esse é o nó da questão: sair de um modelo de especialização no comércio exterior com vistas aos setores primários exportadores, abandonando a indústria e ficando cativo e dependente desse complexo de interesses que não é só econômico, mas social, político, que lançam um padrão conservador para o processo econômico.
IHU On-Line – O senhor está entre aqueles economistas que defendem uma mudança na política cambial? Por quê? Que outra posição o Brasil poderia assumir em relação ao câmbio?
Guilherme Delgado – Quando se tem uma situação de vulnerabilidade externa muito forte, como é o caso do Brasil, que está acumulando há seis anos — desde 2008 —, déficits sucessivos e crescentes na conta corrente, é preciso resolver estruturalmente esse desequilíbrio e se tornar mais competitivo no comércio externo. E, portanto, reduzir a dependência no pagamento de serviços porque, do contrário, o país se torna a bola da vez do ataque especulativo. Esse é o grave momento que o Brasil está enfrentando. Evidentemente, no presente, quando se tem altas reservas formadas por várias circunstâncias do período anterior, o ataque especulativo não é imediato nem um problema de curto prazo. Mas esse receio existe e o Brasil está vulnerável na situação externa, porque se meteu num processo de ajuste externo dependente fundamentalmente do setor primário. E uma economia desse tamanho, com esse grau de complexidade, de industrialização e urbanização alcançado, não pode ter esse arranjo externo que o Brasil articulou nos anos 2000.
Política cambial
Agora, respondendo diretamente à sua pergunta: a política cambial brasileira tem de ser num sentido de gerar formas de sair dessa dependência. Não se trata só da questão da taxa de câmbio, porque ela não é determinada só pelo Brasil. Ela depende fortemente da política cambial e monetária norte-americana. Mas o Brasil não pode se acomodar como fez no passado recente, ou seja, virar um mero exportador de produtos primários e um importador voraz de tudo quanto é manufatura mundial.
Esse padrão de crescimento ou de relações externas é contraditório com a ideia de autonomia nas relações internacionais. Portanto, a política cambial tem de se ajustar a um perfil mais autônomo de relações externas e, portanto, o câmbio tem de ficar um pouco mais caro do que foi no passado. Não se pode, numa relação de dois reais por dólar, viabilizar um conjunto de setores que está atrasado há muito tempo, porque essa relação cambial é predatória de vários setores econômicos. Contudo não se trata somente de efetuar mudanças na política cambial, mas investir em política industrial, reduzir a dependência do setor de serviços, que é o grande vilão dessa dependência externa, melhorar a competitividade não apenas de commodities — claro que se deve exportar commodities, mas não se especializar nesse tipo de exportação.
IHU On-Line – A política de crédito e incentivo ao consumo interno se esgotou ou a inclusão de milhares de pessoas no mercado de consumo seguirá contribuindo para ampliar a inclusão social e fortalecer a economia?
Guilherme Delgado – Ela se esgotou por tudo isso que acabei de dizer. Com a indústria com um grau de dependência que apresenta hoje por conta das exportações, qualquer incentivo que se der ao consumo — que antes se materializava sob a forma de incentivo ao consumo, salário em elevação, demanda por bem de consumo e salário, atendidas pelo setor doméstico — pode piorar a situação, porque a demanda por bens-salário é atendida por exportações crescentes. A elevação de uma massa de salários internos, seja por aumento de emprego ou da taxa de salário, tem como correspondente, em vez da demanda para a indústria, a demanda para a importação de produtos chineses. Então, vazam para o exterior os incentivos distributivos bons da política social não porque ela seja má, mas porque a política econômica externa de dependência crescente das exportações industriais torna o toque distributivo da política social oneroso ao déficit do comércio e das transações correntes.
Então, uma coisa tem de ser corrigida junto com a outra. É preciso manter a política social e o efeito distributivo, porque o Brasil não é nenhum nirvana de igualdade social. Mas precisa corrigir essa lógica que permite ter, no fim do ano, o déficit comercial de 100 bilhões de dólares. Não há país que funcione assim por longo prazo. A dívida é um sintoma do padrão de subdesenvolvimento do arranjo do neodesenvolvimentismo do governo Dilma, que copiou coisas do governo Lula, mas numa conjuntura piorada.
IHU On-Line – O governo não ficou atento ao momento de acabar com a política de crédito? Ele se atrasou?
Guilherme Delgado – Provavelmente, sim. O problema é que não se pode fazer política econômica sem planejamento. A política conjuntural de manejar taxa de câmbio e meta de inflação é política de conjuntura. Quando a ideia de planejamento estratégico não está na agenda porque foi abandonada ou mitigada, em geral se corre atrás dos fatos da conjuntura. Mas uma das lições é que o governo federal precisa pensar em planejamento estratégico que vá além dessa coisa midiática do PAC e antecipar as tendências do investimento público, da ação pública em setores públicos intercomunicativos relacionados a gastos de saúde, educação. Tem de haver um planejamento para ver como, no longo prazo, isso vai impactar o investimento público, a infraestrutura, o consumo industrial, e, ao que parece, não há esse arranjo no governo. Existem políticas de conjuntura do Ministério da Fazenda. Mas o planejamento governamental está perdido na Casa Civil, que é imprópria para fazer planejamento e mistura projetos de infraestrutura, muitas ações políticas, e falta coordenação econômica de médio prazo.
Eu venho do Ipea, de uma época em que os militares criaram o Plano Nacional de Desenvolvimento – PND. Apesar de todas as desgraças do período, o PND era um programa de médio prazo de planejamento da ação do setor público. Abandonou-se isso, mas não se colocou nada no lugar. Não estou dizendo que os militares fizeram bem para o Brasil, mas é preciso considerar que algumas coisas que foram feitas à época, e hoje não se fazem mais, fazem falta.
IHU On-Line – No final da semana passada o governo divulgou que o crédito oferecido pelo Banco do Brasil deve ceder espaço para bancos privados neste ano. O que isso sinaliza? Essa medida tem a ver com o esgotamento da política de crédito?
Guilherme Delgado – O que aconteceu nos últimos dois anos foi um avanço dos bancos públicos, Banco do Brasil e Caixa Econômica, mas isso ainda é fruto de uma estratégia dos dois primeiros anos do governo Dilma, a qual estava muito apoiada no crédito ao consumo exercitado pelos bancos públicos e, ao mesmo tempo, uma redução das taxas praticadas pelos bancos. Como os bancos públicos poderiam baixar suas taxas de juros por decisões administrativas e os bancos privados poderiam correr atrás ou não, aconteceu que os bancos públicos aumentaram o ranking de oferta de crédito sob participação. O Banco do Brasil e a Caixa dão lucros altos e a taxa de inadimplência deles é tolerável.
O que se vê agora é uma mudança no segundo momento do governo, com uma posição mais conservadora em relação ao crédito. Digo mais conservadora porque a ideia do crédito é estimular a demanda e o consumo na perspectiva de que, com isso, se criem elementos de demanda efetiva compensatórios a eventuais perdas externas. O problema é que nem essa linha é convergente com a ideia de uma certa autonomia externa, porque se criam estímulos ao crédito, ao consumo, à demanda interna, mas não se resolve o problema da dependência por importações industriais e se eleva o tamanho do desequilíbrio na conta corrente. O que está acontecendo no momento é um processo de ajustamento e de oferta mais conservadora de crédito na perspectiva dos riscos comedidos do setor bancário.
Não creio que o Banco do Brasil ou a Caixa Econômica vão sair dos setores em que têm tradição. O Banco do Brasil é o grande provedor de crédito rural. A Caixa Econômica é a grande provedora de crédito habitacional. Mas isso terá certo controle e limitação em função dessas outras leituras dos desequilíbrios macroeconômicos que o atual padrão de crescimento contém.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta a declaração da presidente Dilma em Davos, de que o capital privado é bem-vindo no país? O Brasil está oferecendo vantagens ao ingresso do capital estrangeiro na economia brasileira? O que diferencia o acordo com o capital externo no governo Dilma em relação ao governo Lula?
Guilherme Delgado – Não tem muita diferença entre os dois governos nesse caso. No governo Lula, o capital externo afluía para a economia brasileira sem precisar de grandes declarações de boa intenção. Teve-se um movimento forte de capital estrangeiro, que tornou possível formar reservas enormes e, ao mesmo tempo, financiar o déficit na conta corrente sem problemas. A questão agora é com as diversas mudanças na economia internacional desde 2008, e as crises financeiras na Europa e nos EUA. Há, a partir dessas mudanças, uma seletividade de movimento do capital na balança de pagamento. Então, como o governo tem programas ambiciosos de infraestrutura, de energia petroleira, de concessão de serviços de transporte viários e precisa de capital estrangeiro, é essa sinalização que o governo Dilma está dando a esse capital. Agora, o capital não vem gratuitamente; vem em função das benesses que se concedem. Cabe ao governo regulá-lo, instituir regras de permanência e condições que tornem a sua permanência maior. Além disso, precisa de capital externo para tapar o buraco criado pela política de especialização no comércio exterior. Mas o capital exterior não tem compromisso em resolver os problemas do país.
Parceria com capital estrangeiro
O programa de investimento do governo na área petroleira, elétrica, na área rodoviária, no agronegócio, contém um conjunto de parcerias explícitas com o capital estrangeiro. O problema é saber se o capital estrangeiro que vem para esses setores tem capacidade de gerar um acréscimo de exportações capaz de reduzir a dependência externa do país, ou ele será mais um elo da cadeia da dependência brasileira. Porque, se esse capital não acrescentar exportações líquidas de mercadorias e serviços, ele acrescerá demandas por remessas de lucros ou de juros. Portanto, o país tem de sair dessa dependência, ou seja, a forma de tratar esse capital estrangeiro pode ser uma equação ou um enforcamento maior do sistema econômico na dependência.
IHU On-Line – Como é possível sair da dependência externa?
Guilherme Delgado – Sair da dependência externa atraindo capital estrangeiro parece uma contradição. Mas depende. A China atrai capital estrangeiro e não tem a dependência externa da economia brasileira, porque os setores do capital que para lá se deslocam estão vinculados explicitamente a exportações e têm um componente importante de gerar saldos para a economia chinesa. O capital externo que vem para o Brasil não tem esse tipo de vinculação. Praticamente, a economia brasileira debitou toda a responsabilidade para resolver o problema externo no setor primário. Os outros setores não têm compromisso de exportar. Esse é um problema a ser enfrentado.
IHU On-Line – Os índices atuais de desemprego, de 4,3% da população, são os menores já alcançados pelo Brasil. Como se explica o menor nível de desemprego da história do país diante de um crescimento do PIB de apenas 2% no último ano?
Guilherme Delgado – Essa relação tem mais a ver com a situação demográfica do país. Para responder a essa questão é preciso explicar a situação do desemprego. Esse índice de 4,3% é o desemprego aberto, ou seja, das pessoas que nos últimos 30 ou 60 dias procuraram emprego. Mas existem muitos que não estão procurando emprego porque têm outra forma de sobreviver e não precisam trabalhar, e outros que não estão procurando emprego porque estão desalentados. Então, a desocupação é maior do que esses 4,3% indicados pelo IBGE.
Mas mesmo considerando que esse índice represente uma situação concreta, temos de considerar o fato de que a quantidade de jovens que entram anualmente no mercado de trabalho tem diminuído, porque é uma situação que reflete a transição demográfica dos últimos 20 anos, ou seja, se tem uma base jovem da população muito menor. Então, se antes todo ano entravam dois milhões de jovens no mercado de trabalho, esse índice está reduzindo a cada ano. Com essa entrada menor de jovens no mercado de trabalho e com a economia contratando menos pessoas, mas ao mesmo tempo não afetando a capacidade de incorporação da força de trabalho mais jovem, o desemprego fica menor.
Boa parte das pessoas que acessam benefícios sociais consegue manter uma parte dos jovens esperando um pouco mais de tempo para ingressar no mercado de trabalho e isso configura uma situação diferente daquela que tivemos no passado, como à época do governo FHC, em que a taxa de desemprego era de 12%. Ou seja, tinha uma massa muito maior de pessoas entrando no mercado de trabalho e havia um processo de ingresso no mercado informal muito menor. Portanto, é mais a demografia do que a economia que explica desemprego baixo.
IHU On-Line – O crescimento de 2% do PIB no último ano pode ser interpretado como um resultado “positivo” frente às altas taxas de juros da dívida que são pagas pelo país?
Guilherme Delgado – Esse crescimento baixo está refletindo algumas coisas que precisamos incorporar: primeiro teve certo recuo nas exportações externas; a exportação é um item muito importante na chamada “demanda efetiva”. Então, houve primeiro uma forte redução das exportações industriais e certo declínio nas várias cadeias de commodities. Em segundo lugar, o investimento privado foi baixo basicamente porque a indústria perdeu competitividade externa, e isso tem um efeito estagnacionista do ponto de vista do crescimento industrial. Em terceiro lugar, os investimentos de infraestrutura, que são fortemente de responsabilidade do setor público e dos concessionários privados, também foram constrangidos, porque eles dependem de dois vetores fundamentais: do BNDES e do sistema Petrobras. O BNDES está constrangido, porque depende dos repasses do Tesouro para aumentar o giro de recursos que ele empresta para os empresários. E o sistema Petrobras depende da sua capacidade de geração de poupança interna e das parcerias externas. Ambos estão constrangidos porque o “congelamento” dos preços internos de combustível gera um prejuízo de caixa forte para a Petrobras. Esses vários fatores de constrangimento interno, externo e de política macroeconômica conspiram para um baixo crescimento.
IHU On-Line – Não há uma relação direta do baixo crescimento com a dívida?
Guilherme Delgado – Não diretamente. Mas indiretamente há uma relação pelo seguinte: quando o BNDES financia os setores que importam frangos, o setor sucroalcooleiro, a agroindústria florestal, ele financia com base em repasses do Tesouro, que está emprestando ao BNDES e, ao emprestar, aumenta a dívida bruta (não a dívida líquida), porque está emitindo títulos do Tesouro. Portanto, o giro de fundos do BNDES para emprestar depende de transferência do Tesouro. Assim, na verdade essas transferências do Tesouro aumentam a dívida pública bruta. Quando se reduz a transferência do repasse do Tesouro para o BNDES, se reduz também a capacidade do BNDES de financiar investimento de longa duração. A questão é a seguinte: ou é o Estado ou é basicamente o setor financeiro externo que financia esses grandes projetos. O capital doméstico é muito medíocre no sentido de alavancar o crescimento; ele está muito mais ligado a atividades mais leves e mais curtas. Portanto, há um limite de endividamento público, e esse limite não está constrangendo o crescimento econômico, porque na realidade nós não estamos em um patamar muito alto de endividamento líquido do setor público, mas os mercados cobram cada vez mais caro para emprestar recursos para o Tesouro, que os repassa ao BNDES. Isso custa os juros que são pagos. Então, a elevação dos juros tem um efeito constrangedor, pois se paga mais caro para emitir título de dívida pública e financiar o BNDES.
IHU On-Line – Ao aumentar a taxa Selic para controlar a inflação, o governo federal aumenta os juros de sua própria dívida. Esta é a opção mais correta para controlar os custos do país?
Guilherme Delgado – A questão é que não tem escapatória. Ou se faz o crescimento financiado pelo BNDES, pela Petrobras ou pelo sistema público, ou se espera o capital privado, mas ele não sinaliza crescimento. Para fazer esse processo de crescimento, o país se endivida. O nó da questão é se ele se endivida pagando juros “x” ou “dois x”. O setor privado, quando requer taxa Selic de 10, 12, 14%, está freando o processo de crescimento, porque o Tesouro público não consegue realizar esse giro de fundo para financiar o desenvolvimento. Aí é preciso frear o crescimento para torná-lo mais aceitável às exigências financeiras do setor financeiro privado interno.
Basicamente esse endividamento bruto é do governo federal. É ele que empresta ao BNDES para o banco financiar os projetos de desenvolvimento. Como a massa de projetos é muito maior que o fundo de recursos, evidentemente, tem de colocar coisas na prateleira, na espera. Então, nesse último ano o BNDES gastou “rios de dinheiro” financiando obras de infraestrutura da Copa, e, quando se financia obra de infraestrutura da Copa e os recursos são “x”, você está tirando recursos de outra função mais importante. Então, ou o BNDES tem esse poder de alavancar, ou é o capital estrangeiro ou o capital privado interno. Dentro desse tripé, a parte mais fraca é o capital privado interno, que era um pouco o tripé que na época do governo Ernesto Geisel se construiu o PND. Essa equação é que precisa ser resolvida para se relançar novas bases no crescimento da economia.
IHU On-Line – Como vê a declaração da presidente de que o Brasil está determinado a se transformar em um “sócio de primeira ordem no campo econômico” de Cuba e a relação das empreiteiras brasileiras no projeto do porto?
Guilherme Delgado – A parceria com Cuba é muito mais um projeto estratégico de política externa, mas é claro que também meche com ações das multinacionais brasileiras. A Odebrecht é a multinacional brasileira que construiu o Porto recém-inaugurado. Então, o dinheiro do BNDES e a obra da Odebrecht têm um papel estratégico na viabilização de Cuba como um país que sai do bloqueio econômico. A parceria Cuba e Brasil nesse campo não é um projeto econômico no sentido de ganhar dinheiro e viabilizar grandes interesses privados; é mais no sentido de visibilizar uma saída do bloqueio econômico que Cuba experimenta há quase 50 anos. Na minha interpretação é uma medida sábia, uma medida que antecipa aquilo que mais dia menos dia os Estados Unidos vão ter de fazer, que é iniciar relações normais com Cuba, como de certa forma já começaram a fazer com o Irã, depois de tantos anúncios de guerras.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Guilherme Delgado – Estou saindo do Congresso do MST, o qual comemorou os 30 anos do movimento. O relançamento da bandeira da reforma agrária é uma tese muito importante para nos tirar desse pensamento único do agronegócio como se fosse a solução da pátria, quando na verdade é uma parte do problema.
* Colaboração de Andriolli Costa e Luciano Gallas.
** Publicado originalmente no site IHU On-line.
(IHU On-Line)
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