Transposição do Rio São Francisco: via de mão única
Por Marcia Dementshuk
“Sem dúvida, com a transposição do rio São Francisco será oferecida segurança hídrica para o Nordeste”, garantiu o diretor-presidente da Agência Nacional das Águas (ANA), Vicente Andreu Guillo, durante nossa entrevista. A aposta do governo federal é alta: o orçamento atual da transposição é de R$ 8.158.024.630,97 (o dobro do previsto inicialmente), financiados pelo Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC I e II). Trata-se do maior empreendimento de infraestrutura hídrica já construído no Brasil, que mudará para sempre a cara da região.
Menos de 5% das reservas hídricas do país estão no Nordeste do país, que detém entre 12% e 16% das reservas de água doce no planeta. O clima semiárido, seco, quente e com poucas chuvas domina o sertão, território com mais de 22,5 milhões de habitantes (Censo IBGE/2010).
Neste cenário, a notícia de que seria possível transportar a água do Rio São Francisco para regiões mais secas transformou-se em esperança para os nordestinos de todas as épocas. Fala-se nessa obra desde os tempos do Império, quando, em 1877, o intendente do Crato, no Ceará, apresentou para dom Pedro II um projeto que levaria águas do Rio São Francisco até o rio Jaguaribe, no seu estado.
A obra foi iniciada 130 anos depois, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com base no projeto elaborado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Depois do investimento inicial, de cerca de R$ 4 bilhões, o rendimento dos trabalhos diminuiu em 2010 por problemas de adequação do Projeto-Base à realidade da execução , e novas licitações precisaram ser feitas. Somente no final de 2013, conforme o Ministério da Integração Nacional, responsável pelo projeto, as obras foram 100% retomadas.
Hoje, o empreendimento aponta 51% de avanço, e o orçamento dobrou. A nova previsão para a conclusão é em dezembro de 2015, quando as águas deverão alcançar afinal o leito do rio Paraíba, no Eixo Leste, e o reservatório Engenheiro Ávidos, pelo Eixo Norte, ambos na Paraíba.
Ali do lado, falta água
O projeto prevê que as águas captadas do Rio São Francisco em dois canais de aproximação (no Eixo Norte, em Cabrobó e no Eixo Leste, no reservatório de Itaparica, em Floresta,ambos em Pernambuco) serão conduzidas pelos canais até os reservatórios, de onde abastecerão dezenas de municípios dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, aproveitando a rede de saneamento existente. Projetos referentes a tomadas para uso difuso (pontos de tomada de água captadas ao longo dos canais para abastecer as comunidades instaladas nas proximidades) ainda estão em fase de elaboração. O Ministério da Integração ainda não definiu que pontos serão esses, nem os locais exatos de captação. Da mesma forma, os valores finais do custo desta água para a população ainda estão em estudo por parte do governo federal.
A realidade, porém, é que há mais de dois anos, muitos moradores dos municípios do semiárido nem sequer têm água nas torneiras; usam a água distribuída por caminhões-pipa, de poços particulares ou públicos (a maioria com água salobra) ou da chuva (quando chove).
O riacho Custódia passa próximo da casa de Manoel Rodrigues de Melo, agricultor de 52 anos, mas o fio de água que resta é salobra, e só serve para lavar a casa ou os estábulos. “A água boa vem de Fátima, a uns 40 quilômetros daqui. O que a gente mais precisa aqui é água, que não tem”, suplica o agricultor. Nessas condições, ele e a esposas criaram oito filhos. Todos partiram em busca de melhores condições de vida. “É muito filho, até parece mentira! Mas antigamente os invernos eram melhores, chovia mais”.
Manoel Rodrigues de Melo, que nunca saiu da região onde nasceu, viu seu terreno ser dividido pelo canal do Eixo Leste: ficou com seis quilômetros de um lado do canal e com a mesma medida do outro. Dono de um sotaque sertanejo carregado, com poucos dentes na boca, as mãos calejadas e a pele castigada pelo sol, Manoel conta que agora os bichos têm de usar a ponte sobre o canal para passar. “Senão, eles ficam ou do lado de cá, ou do lado de lá, ou tem que fazer um volta tremenda lá por baixo, onde tem um lugar pra passar. Mas o que mais a gente espera é essa água que ‘tá’ pra vir. Isso vai mudar a nossa vida aqui. Vai ser muito bom”, diz o agricultor, ansioso.
“A gente tinha água pela torneira, era ruim, mas dava pra limpeza. Mas desde que começou essa construção (referindo-se à transposição) ela foi cortada”, lembra-se a vizinha de Manoel, a dona de casa Maria Célia Rodrigues da Silva, que cuida da mãe doente, com 82 anos. “Nem as cisternas não enchem. Estamos com dois anos de seca”, completou. A água encanada provinha de um poço escavado em outro vilarejo próximo de Caiçara, Fiúza, mas ela não sabe dizer se foi cortada em função das obras da transposição, ou se o poço secou. Mesmo com o encanamento de sua casa enferrujado e sem saber se terá água para beber no dia seguinte, a vida de Maria Célia continua. Ela não teve filhos. Cria alguns bodes, cabras e galinhas no quintal da casa e conta com o dinheiro da aposentadoria de sua mãe para o sustento das duas. Trabalhava na roça, mas nada mais resistiu à seca de dois anos.
Tradicional como a seca, o pífano de Zabé
Típica sertaneja, que jamais conheceu o conforto de abrir uma torneira de onde corresse água em abundância, Zabé teve 14 irmãos, oito dos quais morreram por doenças originadas pela falta de água e desnutrição. Fumante inveterada, persistiu no hábito mesmo depois do tratamento de combate a um enfisema pulmonar e à pneumonia e não deixou de enrolar um cigarrinho durante a visita, enquanto lembrava: “Nessa serra sempre teve água da chuva que empoçava nas pedras. Mas tinha anos que não encontrávamos água em canto nenhum. A gente tinha que ir até o rio (afluente do rio Paraíba, próximo da nascente) pegar”.
Quando comentamos sobre a transposição do rio São Francisco ela reagiu: “esse negócio existe mesmo?”
Para o ex-presidente da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, Luiz Gabriel Azevedo, o custo de operação da água da transposição é elevado e requer investimentos vultosos, quando comparado a outras alternativas. “Parte do pacto, quando se pensou esse projeto, é de que os estados fariam um trabalho forte de racionalizar o uso dentro de seus territórios, de melhorar o sistema de gestão; e os estados estão aquém dessa expectativa”, analisa. Ele alega que os estados deveriam investir mais em obras que garantissem os recursos hídricos, como manutenção e construção de açudes, estudos para perfurações de poços e principalmente em obras de saneamento e rede de distribuição de água.
“Não valerá à pena trazer uma água cara para se desperdiçar do outro lado. Não dá para executar um projeto complexo se os recursos dos açudes não forem bem usados, se não houver um sistema de distribuição, se não se tem um sistema de gestão eficiente nos estados que vão receber para gerir a água”, complementou Luiz Gabriel Azevedo.
Por Lei, o órgão competente que determinará como a água será distribuída é o Conselho Gestor do Projeto de Integração do Rio São Francisco, instituído pelo Decreto 5.995/2006. Esse Conselho é formado por representantes dos estados beneficiados com o empreendimento – Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará – e tem por objetivo, entre outros, tratar da alocação das águas e dos rateios dos custos correspondentes.
Realocação de moradores e uma vila partida ao meio
Cerca de 800 famílias foram deslocadas e receberam indenizações entre cerca de R$ 10 mil a R$ 15 mil para dar passagem às obras da transposição – de acordo com a gerência de Comunicação da CMT Engenharia, empresa responsável pelo acompanhamento das ações de compensação socioambiental do PISF – ao longo dos eixos Norte e Leste, em Pernambuco e no Ceará. De acordo com o supervisor de obras da empresa Ecoplan, Adilson Leal, porém, as terras não entraram na avaliação das propriedades a serem indenizadas por possuírem baixo valor de mercado, segundo a empresa, em função da pouca qualidade da terra para o plantio ou para o pasto, em uma região onde a chuva é escassa. Só as benfeitorias foram ressarcidas.
Em outra localidade, na zona rural de Sertânia, os moradores do Sítio Brabo Novo ficaram divididos pelo canal. Pelo menos treze famílias preferiram a remoção para terras acima do reservatório Barro Branco, ainda em fase de retirada da vegetação. Um número bem maior de famílias permaneceu do outro lado do reservatório.
Maria da Conceição Siqueira, viúva, de 51 anos, e seu filho, de 18 anos, deixarão a antiga moradia para trás e irão para Sertânia. “Já recebi R$ 7.500,00 por aquela casinha ali”, diz, apontando para uma casa que ficará submersa pelo reservatório, “e ganhei essa casa aqui. Mas vamos fechá-la e ir embora”. “Fiquei com um pedaço de terra muito pequeno, (cerca de 50m²) não dá pra nada. Meu filho está em tratamento, ele teve um derrame no cérebro e é melhor a gente ficar lá”, diz.
Lucinéia, professora, duvida que no futuro haja uma distribuição justa das águas da transposição. “Tem os pontos positivos, mas acho que vão ter os negativos também. Eu penso que com essa água toda vão começar a fazer mais obras por aqui e eu não sei se toda a comunidade vai ter acesso a essa água quando quiser. O pequeno produtor nunca é beneficiado como os grandes proprietários, nunca tem igualdade. E acho que o crescimento vai ser desordenado. A comunidade já tem uma associação de moradores, mas ainda não sabe como abordar esse assunto”, lamentou Lucinéia, dizendo que não há orientação nenhuma dos governos sobre isso.
“E essa água, quando chega?”, interrompe o capataz do sítio, que prossegue, num monólogo: “Ninguém sabe…”.
Leia também as outras quatro reportagens da série e ainda um relato da repórter Márcia Dementshuk, onde ela conta os bastidores da reportagem.
Uma viagem ao canteiro de obras
Na Contramão da Transposição
O povo contra os areeiros
Leia os bastidores da reportagem
A Transposição, um projeto dos tempos do Império
Fonte: Envolverde / Agência Pública.
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