por Fernanda B. Müller e Fabiano Ávila, do CarbonoBrasil
Clóvis Borges, diretor executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental, relata a complexidade em conciliar conservação com desenvolvimento local no maior remanescente contínuo de Mata Atlântica no sul do Brasil.
A Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, com cerca de 313.000 hectares e localizada no litoral norte do Paraná, é uma das regiões sob a atuação da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS).Presente no local desde 1991, a instituição busca apoiar processos de gestão e implementar ações que propiciem a garantia da conservação da biodiversidade e a melhoria substancial da qualidade de vida regional.
Além de um conjunto de iniciativas abrangendo todo o território da APA, em 1999 a SPVS teve a oportunidade de começar projetos que aliam a conservação ao combate ao aquecimento global. Este esforço permitiu transformar antigas fazendas de búfalos, introduzidos na região pelo governo a partir de incentivos fiscais, em três Reservas Naturais: Rio Cachoeira, Serra do Itaqui e Morro da Mina.
Nessa entrevista, Clóvis Borges, diretor executivo da SPVS, detalha como a instituição busca colaborar com a transformação da APA de Guaraqueçaba e destaca os benefícios que estão sendo conseguidos para uma das regiões mais pobres do Paraná.
Ele também apresenta sua opinião sobre as críticas de que a SPVS estaria prejudicando comunidades locais ao impedir certas atividades que seriam de subsistência.
Borges fala ainda sobre o novo projeto E-CONS, que acaba de receber o Prêmio von Martius de Sustentabilidade, concedido pela Câmara Brasil-Alemanha.
Instituto CarbonoBrasil – A atuação da SPVS na APA de Guaraqueçaba e a oportunidade da formação das três reservas representa que tipo de vantagem para as comunidades locais?
Clóvis Borges – Nós já trabalhamos na Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba desde 1991 com um entendimento bastante consistente da realidade local, e os avanços sociais e econômicos da região sempre foi parte da nossa estratégia de conservação. Estabelecemos estes princípios num diagnóstico realizado à época, chamado “Plano Integrado de Conservação da Região de Guaraqueçaba”.
A visão de mosaico que deve ser instituído numa Área de Proteção Ambiental abrange tanto áreas de uso intensivo e extensivo como também áreas de conservação e de preservação. É neste contexto que o futuro da região precisará conciliar suas atividades.
Os projetos que constituíram novas RPPNs na região estão dentro desta perspectiva de mosaico, além de representarem uma nova alternativa para emprego e geração de renda. Embora ainda seja de difícil argumentação, as áreas protegidas devem ser vistas como um ativo com inúmeras possibilidades de agregar valor a economias locais. Isto já ocorre em muitos outros locais, e não deverá ser diferente em na APA de Guaraqueçaba.
No entanto, é um equívoco imaginar que instituições de conservação, isoladamente, poderão reverter o quadro de estagnação econômica e baixos índices de qualidade de vida na região. Em função disto temos um intenso trabalho de políticas públicas no sentido de permitir que as diferentes instâncias de governo assumam efetivamente suas responsabilidades. Este é o ponto de mudança que precisa ser atacado prioritariamente para podermos avançar.
ICBr – E quais são os resultados que a SPVS pode apresentar em função de suas atividades na região?
CB – Os resultados em conservação são evidenciados no trabalho de longo prazo que mantém firme a prerrogativa de que a proteção da região é um dos pilares centrais para o seu desenvolvimento. Somos um dos atores que cumpre este papel de instigar esta percepção de oportunidade única que existe na região. É o conceito de que a conservação pode gerar riquezas e benefícios adicionais a serem apropriados pela comunidade local. Além disto, existem muitos avanços de conservação mais facilmente evidenciáveis, como o monitoramento por mais de 14 anos do papagaio-de-cara-roxa, uma espécie indicadora do estado de conservação de toda a planície costeira paranaense. Restauramos cerca de 1600 hectares de áreas degradadas nas três reservas constituídas e espécies raras e ameaçadas passaram a ocorrer na região com uma frequência maior, desde onça-pintada e parda, antas, gaviões-pega-macaco, queixadas, cachorros do mato-vinagre – que só existem em áreas bem conservadas.
Com relação a ações diretas no campo de desenvolvimento da comunidade a SPVS vem executando uma série de projetos com vistas a estabelecer ações de geração de renda e de capacitação. A formação de uma cooperativa de turismo de base comunitária (Coperguará) e uma cooperativa de produtores de mel de abelhas nativas (ACRIAPA) são exemplos atuais muito relevantes e com excelentes perspectivas de gerar desdobramentos.
No caso das três reservas naturais, outro bom exemplo pode ser dado se consideramos que sequer carteira assinada possuíam os responsáveis pelo cuidado das antigas fazendas de búfalos existentes na região. Nossos funcionários (atualmente são 23), além de capacitados ao longo deste período, são formalmente contratados, tem plano de saúde e garantias. Além disto, fizemos dispêndio de recursos ao longo desses 12 anos, o que movimentou a economia local. Somos o maior empregador da região excetuando-se o Porto de Antonina e as prefeituras.
Preponderante é ressaltar que a instituição dessas reservas aqui no Paraná criou um retorno de ICMS Ecológico substancial para as prefeituras, e quanto mais estrutura e empregos conseguirmos gerar, quanto mais qualificado o manejo dessas unidades, maior a arrecadação. As prefeituras usam esses recursos agora, em qualquer tipo de atividade. Tanto em Antonina quanto de Guaraqueçaba, as autoridades consideram o retorno do ICMS uma das principais fontes de financiamento que o município tem hoje.
Mas mais do que isso é importante reiterar que nossas atividades na região também chamam a atenção para um conjunto de municípios que está historicamente abandonado. Nós estamos desde 1991 trabalhando com a intenção de mudar o cenário regional.
Continuamos fazendo esforços no campo das políticas públicas, em especial junto ao Governo do Estado do Paraná, principal responsável pelas limitações hoje observadas no campo da saúde, educação, mobilidade e alternativas de renda desta região. A busca é por recursos a partir do BNDES no Programa de Economia Solidária e de fontes privadas, para realmente permitir o desenvolvimento de uma gestão integrada regional, incluindo iniciativas de geração de renda, onde as unidades de conservação representam pontos para a criação de empregos.
Existe um cenário virtuoso, e um desafio enorme que continua sendo muito complexo, de conseguir uma cooperação do poder público e um compromisso mais sério no sentido de não se limitar a obras isoladas sem nenhuma estratégia realmente mais consistente. Precisamos continuar lutando para mudar esta situação.
ICBr – Como era a situação da APA de Guaraqueçaba antes da chegada da SPVS e como a entidade enxerga o desafio de mudanças regionais?
CB – A caracterização da região é de 3º pior IDH do Paraná (399 municípios). Em 1991 assumimos o compromisso de tentar mudar esse cenário através dos projetos e temos trabalhado por melhores políticas publicas, colocando pressão no poder público.
A SPVS desenvolveu uma série de iniciativas tentando fomentar e demonstrar o que precisaria de investimento neste campo. É importante ressaltar que temos um compromisso de longo prazo para mudar o cenário social da região, melhorando o IDH e gerando oportunidade de renda.
Existem os projetos sociais de geração de renda apoiados pela SPVS. Como a produção de mel de abelhas nativas e de turismo de base comunitária, que correm integrados aos projetos de gestão das reservas naturais.
Os projetos contrataram pessoas com carteira assinada, ou as capacitaram com o objetivo de incentivar a geração de renda compatível com a conservação da biodiversidade. No caso das reservas da SPVS, as ações do projeto as qualificam para deixarem de ser ‘cuidadores’ de búfalo para serem guarda-parques e para conseguirem coordenar projetos de restauração de áreas degradadas.
Apesar dos esforços, não temos como mudar sozinhos o cenário da região. E esta realidade demonstra a importância estratégica de trazer à responsabilidade as diferentes instâncias do poder público, historicamente distantes e descompromissados.
Uma retórica corrente e que não é uma prerrogativa única da SPVS, afirma que a conservação da natureza não deve ser uma prioridade em relação aos problemas sociais. É evidente que a afirmação tem cunho demagógico e é excessivamente simplista, uma vez que a conservação também representa uma demanda social e, desde que existam os mecanismos adequados, pode integrar-se a uma agenda de melhoria de qualidade de vida.
Conclui-se que a manutenção de processos de degradação da natureza e que sustentam processos cada vez menos produtivos de extrativismo ilegal representam uma das fortes razões para desvalorizar iniciativas conservacionistas. De outro lado, o desenvolvimento convencional e de grande escala ameaça áreas naturais como a APA de Guaraqueçaba a partir de grandes obras nas suas redondezas, como ampliações portuárias e a tentativa de instalação de empresas de grande porte e novas vias de acesso no litoral paranaense.
ICBr – Vocês teriam uma estimativa de quantas pessoas poderiam trabalhar em Unidades de Conservação na região?
CB – Considerando o Mosaico Lagamar, há hoje 43 UCs entre a região sul de São Paulo e o litoral norte do Paraná. Estimativas demonstram que pelo menos 400 novos postos de trabalho seriam necessários, incluindo mais posições nas próprias reservas da SPVS. O que é muito interessante é que quanto mais funcionários nestas UCs, pelo menos no caso do Paraná, mas arrecadação de ICMS as prefeituras conseguirão ter.
ICBr – A presença da SPVS na região trouxe mais fiscalização ambiental. Isso explicaria as críticas de que vocês estariam limitando as atividades das comunidades locais?
CB – A SPVS não é uma instância com papel de fiscalização, demanda que é prerrogativa exclusiva de órgãos ambientais. E temos a compreensão de que a caça de subsistência deve ser assimilada como uma prioridade menor na fiscalização, embora seja ilegal. Mas quando se encontra um freezer cheio de carne de caça para ser vendido para restaurantes, isso não é uma caça de subsistência. São cenários assim que os órgãos de fiscalização sistematicamente identificam na região; ações de extrativismo, tráfico e caça extremamente impactantes e que precisam de providências imediatas para que não sejam mantidos.
Um outro aspecto muito interessante no que se refere a atividades de caça e de extrativismo ilegal é ouvir a história dos nossos funcionários, que eram caçadores e que não tinham entendimento algum sobre cuidados ambientais, e hoje já possuem uma nova percepção.
As comunidades precisam de um atendimento concreto e sério por parte do governo. As pessoas devem receber apoio, orientação e educação formal no sentido de escolherem profissões e obterem investimentos que mantenham a sua cultura e que valorizem seus produtos. E não da maneira praticada hoje. É óbvio que não será abrindo- se mão da fiscalização que nenhuma situação será resolvida. Ao contrário.
ICBr –Você acha que teve algum problema na fase inicial dos projetos de constituição de reservas naturais, talvez alguma falha de comunicação que ajudou a uma dificuldade de entendimento de parte de atores locais? Se vocês pudessem começar novamente, teriam feito alguma coisa diferente?
CB – Ao adquirir as áreas, quebramos paradigmas, pois foram 18 mil hectares que vinham sendo usados para atividades meramente convencionais sendo direcionadas para restaurar áreas degradadas e fazer conservação, e isto gerou um impacto não apenas regional. O projeto é fruto de comentários em muitos meios, pelo ineditismo e pelo desafio que representam. Hoje, embora a gente reconheça que haveria uma série de aprendizados e pré-investimentos que esses projetos deveriam fazer, inclusive um trabalho de comunicação muito mais intenso para demonstrar os resultados extraordinariamente positivos, a gente também interpreta que qualquer tipo de inovação sempre encontrará resistências.
Em boa parte, as criticas recebidas fazem parte do resultado do que conseguimos, então é um indicador de sucesso. O que avaliamos em relação aos projetos é que é muito positivo o fato de você ver o incômodo e a dúvida gerada por uma iniciativa de aquisição de áreas não destinada para gerar degradação, mas para conservar.
Isso demonstra que ousamos e nos posicionamos no sentido de abrir uma discussão. Veja que, embora numa escala interessante, é um projeto demonstrativo. Não tem que ser perfeito já no seu início, simplesmente é uma ferramenta importante, até porque começou em 1999. Nos nossos erros e acertos fomos construindo uma realidade que não estava construída antes. Esse é o grande valor dos projetos.
ICBr – As três reservas da SPVS ficam inseridas no Mosaico de Unidades de Conservação do Lagamar, que abrange o litoral sul de São Paulo e do Paraná. Consideradas projetos característicos de REDD, qual a colaboração que pode ocorrer para a região a partir disto?
CB – O Mosaico foi instituído formalmente e são mais de 40 Unidades de Conservação. Estamos começando a ter reuniões e a discutir ações integradas de fiscalização e manejo, é uma tendência muito forte para a região.
Nós já estamos revertendo o discurso de que ações de conservação nesta região sejam vistos como negativos. Essa é uma das metas da SPVS, continuar reverberando e dando conta dos resultados importantes que os projetos têm apresentado. No caso das três reservas naturais, são iniciativas pioneiras que têm a grande importância de serem avaliadas e ajudar a definir quais sistemas de REDD vão perseverar no Brasil.
O REDD não vai desaparecer, mas sim amadurecer e consolidar-se como num conjunto de mecanismos inteligentes e práticos para agregar iniciativas complementares, como a conservação e a melhoria da qualidade de vida. As suas modalidades precisam ser estudadas e colocadas em um plano crítico.
Nós fazemos parte desse conjunto de poucas experiências em curso no mundo, e iniciamos estas práticas antes mesmo do surgimento da sigla REDD. É mais um motivo para caracterizar nosso espírito inovador e de forte empreendedorismo, que só vem se fortalecendo com os anos.
ICBr – O que vocês estão planejando para o futuro das reservas?
CB – Desde 1991 a SPVS assumiu o compromisso de trabalhar na região e a nossa entidade vai fazer 30 anos em 2014. Então, estamos quase dois terços da nossa existência com o foco na atuação na APA de Guaraqueçaba.
É um compromisso de longo prazo e o que, como já foi dito, nossos resultados não se limitam a esses três projetos de aquisição de áreas, restauração e conservação, por mais representativos e relevantes que sejam. É a mudança de cenário regional que efetivamente nos impulsiona.
A nossa meta é essa e vamos continuar com esse projeto das reservas e mais outros, além de parcerias que possam ser viabilizadas para mudar a região. Essa é a grande expectativa que temos.
ICBr – A SPVS recentemente foi premiada pelo programa Empreendedores da Conservação, o E-CONS, você poderia falar um pouco sobre ele?
CB – O Programa E-CONS está baseado numa necessidade premente de executores de projetos de excelência em conservação da natureza em buscar alternativas para ampliar seus resultados.
Portanto a iniciativa começa identificando pessoas que já são bem sucedidas nas suas ações de conservação, proporcionando aos selecionados uma ajuda estratégica nos seus projetos, para que eles incorporem valores de empreendedorismo.
O objetivo é usar os recursos do E-CONS, fruto de uma parceria com o HSBC Bank Brasil, para ampliar a capacidade de replicação de projetos de qualidade reconhecida. Trata-se de uma nova modalidade que até o momento as fontes de financiamento convencionais não atendem diretamente.
Estamos agora buscando cadastrar novos empreendedores, por meio do site do Programa E-CONS (www.programaecons.org.br), e ao mesmo tempo estamos procurando financiadores. O HSBC foi extraordinário ao iniciar o programa e estamos à procura de novos apoiadores que queiram se aliar a essa iniciativa.
É um projeto pioneiro, inovador. Nossos seis Empreendedores da Conservação já efetivados estão nos ajudando a demonstrar a efetividade deste esforço. Estamos abertos ao diálogo com apoiadores interessados, incluindo a possibilidade para buscar arranjos regionais.
ICBr – Você acredita que as políticas do governo federal ajudam ou atrapalham o crescimento deste tipo de iniciativa?
CB – Não tem como não admitir que as fontes de financiamento para a conservação são pequenas, embora nos últimos anos tenham surgido alguns atores novos aportando volumes maiores. Em relação à demanda, ao passivo que temos e ao processo de degradação da natureza que é gigantesco e intangível, é inexpressível o que a agenda da conservação recebe de financiamento aqui no Brasil.
A inteligência desses financiamentos também precisa ser desenvolvida, pois grande parte dos recursos foi usada em busca de indicadores sociais e econômicos, não de conservação.
A ausência de uma política adequada de conservação do país é altamente prejudicial. Vivemos observando a efetivação de ações fora de um contexto de prioridade e pela característica demonstrativa. Assim, os poucos bons projeto de conservação, quando efetivados, não estão alinhados politicamente com um compromisso de escala.
* Publicado originalmente no site CarbonoBrasil.
(CarbonoBrasil)
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