A saúde pública vive uma situação de subfinanciamento crônico agravada em 2015 por duas medidas legislativas: a Emenda Constitucional n.86/2015 e a Lei 13.097/2015.
A EC-86/15 reduz a base de cálculo do valor a ser investido em saúde pública pela União, quando no seu artigo 2º troca o que foi postulado pelo Projeto de Lei de Iniciativa Popular, que requeria 10% da Receita Corrente Bruta (RCB) da União para a Saúde pela destinação de 15% da Receita Corrente Líquida (RCL), a ser alcançado ao final de cinco anos; porcentagem bastante inferior para o financiamento do SUS, já que o equivalente a 10% da RCB seria em torno de 18,7% da RCL, em vez de apenas 15% como previsto no texto. A EC-86 ainda fez com que os royalties do petróleo a serem investidos em saúde deixassem de ser um recurso a mais, e passassem a ser incluídos na base de cálculo do mínimo a ser investido em Saúde pela União. Agravando o cenário, a EC torna impositivo o orçamento das emendas parlamentares, sendo que metade deste valor deve ser destinado à Saúde – aqui o problema está no fato de que este recurso será contado como valor mínimo a ser investido pela União, sem que tenha passado pelo planejamento da política e nem tenha contado com participação social na sua destinação.
Já a Lei 13.097/15 alterou a Lei Orgânica do SUS de 1990, passando a permitir a entrada do capital estrangeiro na Saúde. Porém, apesar da proposta dizer que seria uma entrada de capital a ser investido na Saúde brasileira, o que temos observado nas empresas multinacionais em diversas áreas é que ocorre apropriação do fundo público nacional. Assim, em vez de termos a entrada de capital, o que ocorre na verdade é a saída de capital, e quase sempre rumo a paraísos fiscais.
Agudizando a crise do financiamento do SUS, seu orçamento sofreu ainda um ajuste fiscal em 2015 da ordem de R$ 11,7 bilhões, o que representa um corte de 10% do seu orçamento. Porém, será que todas essas limitações de recursos e cortes orçamentários para a Saúde e de outros direitos sociais e humanos são realmente necessários, “a única saída” para o enfrentamento da situação econômica atual do país, ou existem formas de garantir seu financiamento?
Para responder a essa pergunta é necessário avaliar de onde vem o dinheiro a ser investido na Saúde. Pela Constituição Federal, a Saúde é financiada, juntamente com a Assistência e a Previdência, pelo Orçamento da Seguridade Social. Este orçamento é composto por recursos provenientes de receita tributária advinda de taxas como a de fiscalização da vigilância sanitária e por receita de contribuições pagas por empresas e trabalhadores – Cofins (contribuição para o financiamento da seguridade social), CSLL (contribuição sobre o lucro líquido) e PIS/PASEP (Programa de Integração Social / Programa de Formação do Patrimônio do Servidor).
É importante observar que as variadas propostas de Reforma Tributária no Congresso tentam acabar exatamente com essas contribuições que são hoje as principais responsáveis pelo financiamento da Seguridade Social. Uma dessas propostas é a emenda à Constituição PEC 233/2008 que prevê a criação do IVA Federal – imposto sobre o valor adicionado federal, que incidiria sobre operações com bens e prestações de serviços – em substituição à COFINS, a CIDE, o salário-educação e a contribuição para o PIS. Com isso, para financiar a Seguridade, passaria a valer o seguinte cálculo: o produto da arrecadação do imposto sobre a renda, do imposto IPI e do IVA passaria a ser repartido nos seguintes termos: 38,2% ao financiamento da seguridade social; 6,7% ao financiamento do abono do PIS e o seguro-desemprego.
Todas as receitas arrecadadas dos tributos cobrados da população compõem o Orçamento de cada ente federado, que é divido em orçamento fiscal e da seguridade. Deste Orçamento deve ser aplicado um percentual mínimo em saúde, conforme determina a Lei Complementar 141/2012. Dados da Receita Federal demonstram que a carga tributária brasileira é de 35,4%, o que equivale à média dos países da OCDE. No entanto, é importante analisar sobre quem mais incide proporcionalmente esta carga tributária no Brasil, uma vez que ela é muito regressiva, estando concentrada em tributos indiretos e cumulativos que oneram mais os trabalhadores e os mais pobres. Mais da metade da arrecadação provém de tributos que incidem sobre bens de consumo e serviços, havendo baixa tributação sobre a renda e o patrimônio. Essa é uma lógica inversa do que ocorre nos países socialmente mais desenvolvidos, onde a tributação sobre o patrimônio e a renda corresponde a cerca de 2/3 da arrecadação dos tributos, conforme dados da OCDE.
Exemplificando esta situação, temos o seguinte: os ricos pagam o mesmo imposto sobre produtos (arroz, feijão, café) que a classe média e os pobres. Isso significa que proporcionalmente o pobre paga muito mais imposto que a classe média e infinitamente mais que os ricos. Segundo estudo do Ipea, 10% das famílias mais pobres do Brasil destinam 32% da renda disponível para o pagamento de tributos, enquanto 10% das famílias mais ricas gastam 21% da renda em tributos; já os super-ricos, 0,05% da população brasileira, pagam apenas 6,7% de sua renda em tributos.
Como isso é possível? Primeiro pela própria característica regressiva do sistema tributário brasileiro. Segundo, porque 65,8% da renda total desses super-ricos são rendimentos considerados isentos e não-tributáveis pela legislação brasileira, como ocorre com os dividendos e lucros que não são taxados no imposto de renda. Assim temos uma situação onde somente a renda dos trabalhadores assalariados é taxada, na sua maioria na fonte, enquanto a renda financeira permanece intocada, tornando o imposto de renda progressivo somente do pobre até a classe média, que é justamente a fatia da população que mais paga imposto de renda; e extremamente regressivo da classe média até os super-ricos. Esta é a fórmula para aumentar cada vez mais a desigualdade social no Brasil, a injustiça, a ignorância, a violência e a dificuldade de financiamento dos direitos.
Num contexto mais amplo, quando consideramos os super-ricos em parceria com os bancos e as empresas transnacionais, observamos a construção de uma arquitetura global que é concentradora de renda e promotora de desigualdades, por meio de manobras contábeis nas transações comerciais, do uso de paraísos fiscais e da redução da soberania dos países na regulação de suas políticas tributárias e econômicas, para que possam deliberadamente pagar menos impostos sobre seus lucros e dividendos. Essas manobras, tanto legais quanto ilegais, para evitar pagar os impostos devidos, têm feito com que as populações dos diversos países percam, uma vez que a riqueza tem fluido dos fundos públicos para as mãos privadas de poucos.
Conhecendo todo esse cenário, é essencial sairmos do caráter de denúncia do texto e partimos para as propostas e ações que já estão ocorrendo e que buscam tornar o sistema tributário mais justo, mais progressivo e mais equitativo.
A primeira é a resistência específica das organizações da sociedade civil (OSC) do campo da Saúde, das históricas entidades do movimento da Reforma Sanitária, dentre elas o Cebes – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, e também doMovimento Saúde+10, para que a Saúde seja adequadamente financiada, com ampliação de receita de forma justa. Hoje, o Brasil investe 8% do seu PIB em Saúde; no entanto, apenas 4% vai para a SUS, o restante são gastos privados, com as restituições de imposto de renda decorrentes de gasto com saúde, além das renúncias fiscais às seguradoras de planos privados de saúde.
A questão das renúncias e restituições fiscais demonstra um importante fator de injustiça fiscal: enquanto proporcionalmente os pobres pagam mais impostos, estes são convertidos em renúncias e restituições, assim os impostos deixam de ser investidos na Saúde pública e passam a financiar a saúde suplementar – resultando numa situação em que os pobres financiam a Saúde privada da classe média e dos ricos. Para promover justiça fiscal nesta situação, é necessário que as renúncias às empresas de planos privados sejam extintas e que exista um teto para as restituições no imposto de renda com gastos privados em Saúde, nos moldes do que já ocorre com os gastos com Educação.
Para promover ainda mais justiça fiscal referente ao imposto de renda, existem algumas propostas da atual “Campanha Isonomia Já” dos auditores fiscais, que propõe:
– Colocar todas as rendas na mesma tabela progressiva;
– Tributar a remessa de lucros para o exterior com alíquotas majoradas quando o destinatário é um paraíso fiscal;
– Revogar a dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio;
– Aumentar a progressividade, criando novas alíquotas para o Imposto de Renda, de 5, 10, 15, 20, 25, 30, 35 e 40%;
– Elevar o limite de isenção para o salário mínimo do Dieese.
Com isso seria possível produzir uma elevação da arrecadação do IR, com estimativa de aumento de no mínimo 3 vezes. Em 2013 o IRPF foi de R$ 105 bilhões. Com as alterações propostas, seria possível arrecadar em torno de R$ 300 bilhões e desonerar os trabalhadores com renda inferior a R$ 10 mil, onerando as altas rendas, acima de 80 salários mínimos mensais, com alíquotas marginais de 35% e 40% das parcelas de renda que ultrapassem esses níveis. Além disso, seria possível aumentar a arrecadação compartilhada com os Estados e Municípios, diminuindo as desigualdades sociais.
Já com relação à questão das empresas e dos fluxos ilícitos de capital, existe uma Campanha Global de Justiça Fiscalrequerendo que as transnacionais paguem o justo, a sua parte devida, para ao menos limitar essa distorção econômica que destrói a democracia e priva as pessoas de terem seus direitos humanos e sociais promovidos para viver com dignidade. Internacionalmente, a campanha é impulsionada pela Tax Justice Network. Já na América Latina é tocada pela Red de Justicia Fiscal, e no Brasil, por uma rede integrada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (InesC), pelo Instituto de Justiça Fiscal (IJF), pela Auditoria Cidadã da Dívida, pela Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip), pela organização Internacional do Serviço Público (ISP) e pelaConfederação Sindical das Américas (CSA).
Diante desse análise da situação, não só do financiamento da Saúde no Brasil mas também do seu sistema tributário, e considerando o atual momento de crise econômica/política e de Reforma Tributária em pauta nos Poderes do país, o que se quer é Justiça Fiscal na condução do processo de Reforma Tributária por meio de uma legislação tributária mais progressiva, que taxe mais renda e patrimônio do que consumo e serviço. Assim é possível promover e garantir os direitos humanos, os direitos sociais, e a dignidade da população brasileira como um todo, em vez dos privilégios coloniais de somente 5% dos cidadãos.
A atual discussão de Reforma Tributária travada apenas em simplificação e redução dos impostos, sem considerar Direitos, é superficial e prejudicial. É essencial que a sociedade seja envolvida nesse debate e suas necessidades atendidas. Nas ruas, o que vemos são pedidos por direitos, por educação e saúde públicas, de qualidade e para todos – e isso só será possível com um sistema tributário justo. E definitivamente isso não se faz apenas reduzindo a carga tributária de forma geral, mas sim reduzindo-a para os pobres e classe média, e aumentando-a para os ricos e super-ricos que até hoje não pagaram sua parte.
Artigo de Grazielle David, assessora política do Inesc.
in EcoDebate, 18/09/2015
"A essencial Justiça Fiscal na Reforma Tributária para garantir o Direito à Saúde, artigo de Grazielle David," in Portal EcoDebate, 18/09/2015,http://www.ecodebate.com.br/2015/09/18/a-essencial-justica-fiscal-na-reforma-tributaria-para-garantir-o-direito-a-saude-artigo-de-grazielle-david/.
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