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quarta-feira, 31 de março de 2021
terça-feira, 30 de março de 2021
Cicatrizes na floresta: garimpo avançou 30% na Terra Indígena Yanomami em 2020
Por Instituto Socioambiental (ISA) –
Levantamento inédito aponta proliferação de novos núcleos de invasores mais próximos das comunidades indígenas, incluindo de grupos de índios isolados, e a abertura de novas rotas para dentro do território
De janeiro a dezembro de 2020, uma área equivalente a 500 campos de futebol foi devastada na Terra Indígena Yanomami, localizada ao extremo Norte do Brasil, entre os estados do Amazonas e Roraima. Quinhentos hectares de floresta Amazônica foram destruídos pelo garimpo ilegal no território indígena. O total de área desmatada é de 2.400 hectares – e somente em 2020 o aumento foi de 30%.
Mesmo com a pandemia da Covid-19, que já matou 300 mil pessoas em todo país, a atividade ilegal nunca parou, pelo contrário. Produzido pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume), o relatório ‘Cicatrizes na Floresta – Evolução do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) em 2020’, lançado nesta quinta-feira (25/03), denuncia como a atividade criminosa se prolifera na terra indígena, subindo os rios e se aproximando cada vez mais das comunidades indígenas, com novas rotas de acesso ao interior da floresta.
O relatório destaca seis regiões especialmente afetadas pela devastação, como Waikás e Kayanau, com 35% e 23% do total das cicatrizes mapeadas, respectivamente. O documento aponta ainda a localização exata de novos núcleos garimpeiros nas calhas dos principais rios que correm pela terra indígena, em especial o rio Uraricoera, que concentra mais da metade (52%) de toda a área degradada pelo garimpo na terra indígena. Até recentemente, o garimpo “tatuzão do mutum”, às margens do Uraricoera, concentrava a maior parte da exploração na região. Hoje, além dele, surgiram três novas áreas de garimpo perto das comunidades de Aracaçá, Korekorema e dos Ye’kwana de Waikás.
A liderança Yanomami e xamã Davi Kopenawa, presidente da Hutukara Associação Yanomami, diz que está preocupado e revoltado com a atual invasão garimpeira. “Você vê a água suja, o rio amarelado, tudo esburacado. Homem garimpeiro é como um porco de criação da cidade, faz muito buraco procurando pedras preciosas como ouro e diamante. Realmente, retornou. Há vinte anos conseguimos mandar embora esses invasores e eles retornaram. Estão entrando como animais com fome, à procura da riqueza da nossa terra. Está avançando muito rápido. Está chegando no meio da terra Yanomami. O garimpo já está chegando na minha casa”, afirmou Kopenawa.
Destruição provocada pela atividade garimpeira ilegal na Terra Indígena Yanomami(dezembro de 2020)|Divulgação
O xamã conta ainda que teme um conflito com os invasores. “Estou muito preocupado, pois o garimpeiro não está sozinho, são grandes grupos, andam armados, apoiados por empresários, pelo governador de Roraima e pelo presidente Bolsonaro, assim como outros empresários do Brasil. Aqui em Roraima, os garimpeiros, empresários e políticos não respeitam os povos indígenas, só querem tirar as nossas riquezas”, enfatizou Kopenawa.
O documento aponta o aumento de conflitos entre indígenas e garimpeiros como um dos efeitos da maior presença garimpeira na Terra Indígena Yanomami, a exemplo do assassinato de dois jovens yanomami na região do rio Parima, em julho de 2020. Já no início deste ano, em 25 de fevereiro, indígenas da comunidade de Helepe sofreram um ataque de garimpeiros que resultou em um indígena gravemente ferido e na morte de um garimpeiro – ao se retirarem, os garimpeiros ameaçaram retaliação. No passado recente, situações similares resultaram em chacinas como a de Haximu, em 1993, primeiro caso de genocídio reconhecido no Brasil.
Na região de Kayanaú, a proximidade entre posto de saúde, malocas e garimpo (dezembro de 2020)|Divulgação
O relatório foi elaborado a partir de análises de imagens de satélite da constelação Planet e Sentinel 1, mapeamento mensal das áreas degradadas na TIY, e organização de informações oriundas de denúncias e relatos das comunidades. Um sobrevoo do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal na TIY, realizado em dezembro de 2020, produziu o registro fotográfico que complementa o levantamento.
Povos isolados podem sofrer genocídio
O novo levantamento também denuncia como o avanço dos garimpeiros no território indígena tem levado doenças às comunidades, sobretudo malária e Covid-19, e colocado em risco a sobrevivência de grupos de indígenas isolados, ainda mais vulneráveis às enfermidades. “Os dados indicam também para o aumento da pressão sobre os grupos de indígenas em isolamento voluntário Moxihatëtëma, pressionados pelo aumento da circulação de garimpeiros na região da Serra da Estrutura a poucos quilômetros de suas comunidades. Um eventual contato forçado, nesse estágio, arrisca desencadear num trágico episódio de genocídio”, diz trecho do relatório.
Garimpo próximo à comunidade indígena na região de Homoxi, Terra Yanomami (dezembro de 2020)|Divulgação
O documento, assinado pela Hutukara Associação Yanomami e Associação Wanassedume Ye’kwana, demanda uma série de recomendações às autoridades e órgãos públicos, com destaque para a apresentação urgente de um plano integrado de desintrusão total do garimpo na Terra Indígena Yanomami, a retomada de operações periódicas na terra indígena para destruição da infraestrutura clandestina instalada e o avanço das investigações para identificar e responsabilizar os atores da cadeia do ouro ilegal.
Recentemente, a Justiça Federal brasileira determinou multa diária de R$ 1 milhão à União por não retirar garimpeiros da Terra Yanomami. A decisão exigiu a apresentação de um plano emergencial e estabeleceu 10 dias de prazo para o início da desintrusão.
O relatório será entregue pelas lideranças indígenas aos órgãos públicos federais responsáveis pela fiscalização territorial da TIY.
“A Hutukara já denunciou várias vezes a presença do garimpo, com documentos bem explicados e detalhados. Temos que entregar na mão do chefe da Funai, MPF e PF que são órgãos competentes que devem providenciar medidas para proteger nosso território. Devemos entregar o documento até na mão do presidente da República. Essa é a nossa luta e vamos continuar denunciando. Vamos lutar sem medo, estamos defendendo nosso direito, a nossa Terra Mãe. Eles não podem roubar a nossa Terra. Essa é a minha luta junto com os novos guerreiros”, finalizou Davi Kopenawa.
#Envolverde
segunda-feira, 29 de março de 2021
Os povos indígenas são quem tem evitado de maneira mais efetiva o desmatamento das florestas
Por Anna Beatriz Anjos, Agência Pública
relatório “Povos indígenas e comunidades tradicionais e a governança florestal”
O relatório “Povos indígenas e comunidades tradicionais e a governança florestal” foi produzido pela ONU
Os povos indígenas são quem tem evitado de maneira mais efetiva o desmatamento das florestas da América Latina e Caribe nos últimos anos, principalmente quando seus territórios tradicionais são demarcados e protegidos. É o que constata o novo relatório “Povos indígenas e comunidades tradicionais e a governança florestal”, da Organização das Nações Unidas (ONU), lançado nesta quinta-feira (25) e produzido a partir da revisão de mais de 300 estudos acadêmicos.
A Agência Pública conversou com a médica indígena Myrna Cunningham, presidente do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (Filac), que elaborou o documento junto à Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
Cunningham, natural da Nicarágua e indígena do povo Miskito, explicou que as principais descobertas do relatório têm base na ciência. Pesquisas apontam que, entre 2000 e 2012, a taxa de desmatamento em florestas dentro de terras indígenas demarcadas foi 2,8 vezes menor do que fora dessas áreas na Amazônia boliviana, 2,5 vezes menor na parte brasileira e duas vezes menor na porção colombiana.
A médica reconhece que o Brasil enfrenta um período de ameaça aos direitos indígenas devido ao governo de Jair Bolsonaro, que em mais de dois anos não demarcou nenhuma terra indígena e travou pelo menos 70% dos processos em andamento. Ela diz, no entanto, que o relatório deve ser útil para colocar na mesa evidências que podem ajudar os povos indígenas brasileiros. “Acredito que o relatório ressalta e evidencia tudo o que é negado pelo presidente”, afirma.
Cunningham avalia também que a situação do Brasil é reflexo de movimentos de supremacia branca, que têm ressurgido em vários lugares do mundo nos últimos anos, com destaque para os Estados Unidos. “Vocês estão em um dos lugares onde isso se reflete de forma tão descarada e sem vergonha”, destaca. “Não é uma situação única, mas, pela dimensão do Brasil e pelo que representa para a Amazônia, é assustador.”
Por que demarcar e fortalecer a fiscalização das terras indígenas na América Latina e Caribe é uma forma eficiente e economicamente viável de proteger as florestas e mitigar as mudanças climáticas?
Primeiro porque, tal como documenta o relatório, as áreas controladas por povos indígenas têm uma taxa mais baixa de desmatamento e, portanto, ainda guardam muita biodiversidade. Isso, por sua vez, ajuda na redução da fome, porque as pessoas que vivem nesses territórios podem ter acesso a alimentos tradicionais que resolvem seus problemas de alimentação. No entanto, reconhecer esses territórios como indígenas não é caro. O relatório traz alguns dados que mostram que, neste processo, se ganha mais do que se investe [nesse reconhecimento].
Por que é imprescindível efetivamente demarcar as terras indígenas para que isso aconteça?
Estejam formalmente demarcados ou não, há jurisprudência afirmando que os territórios tradicionais são propriedade dos povos indígenas, e contar com um documento que comprove a propriedade sobre um território coletivo fortalece o controle sobre ele.
Quando o processo de demarcação é feito respeitando o mapeamento tradicional indígena, a apropriação daquela terra por seu povo é fortalecida – os limites vão sendo definidos conjuntamente, e com isso são desenvolvidos mecanismos de proteção dessa área. Há séculos, para os povos indígenas, não era essencial o papel escrito, mas agora é importante que contem com um documento respaldando sua posse sobre o território, para que possam negociar com o Estado e organizações privadas. O documento obriga que sejam feitos protocolos de consulta prévia, por exemplo. Ele dá às comunidades um poder que é válido no mundo ocidental, perante as normas ocidentais.
O relatório cita algumas formas de proteção aos territórios indígenas: investir nos direitos coletivos à terra, compensar as comunidades pelos serviços ambientais prestados, promover o manejo florestal comunitário e a governança territorial. Poderia explicar como funciona cada uma dessas estratégias?
A primeira recomendação se refere ao reconhecimento do direito à terra – que foi feito de distintas formas por diversos governos da região – e tem a ver com marcos legislativos, procedimentos para a demarcação e mecanismos para a governança dessas áreas. A segunda medida que o relatório propõe tem a ver com a compensação pelos serviços ambientais. Obviamente, esse é um enfoque bastante ocidental, porque, para os povos indígenas, a terra e os serviços ambientais não têm preço, é o que herdamos de nossos ancestrais. Mas o que o relatório fez foi documentar algumas experiências na região que demonstram que, à medida que os povos indígenas se articulam com a economia de mercado, necessitam de recursos financeiros para complementar sua alimentação, suas necessidades. Então, a compensação pelo serviço que prestam ao proteger as florestas ajuda a suprir as necessidades materiais que foram geradas nas comunidades como resultado de sua articulação com o resto da sociedade. Há evidências de que essa compensação ajuda a fortalecer os mecanismos de controle e a apropriação sobre a terra não somente pelos povos indígenas, mas pelo restante da população que se beneficia da água de um rio protegido, por exemplo. O terceiro mecanismo que o relatório recomenda tem a ver com as práticas de manejo tradicional que os povos indígenas desenvolveram para cuidar das florestas, e que devem ser utilizadas, apoiadas e financiadas para que ajudem a reduzir o desmatamento e a proteger a mata. Já o quarto ponto está relacionado ao fortalecimento das organizações locais, pois tudo isso que o relatório menciona não é possível se as redes comunitárias indígenas estiverem afrouxadas. É importante fortalecer os modos de governança próprios das comunidades, pois elas sustentam os conhecimentos tradicionais e permitem sua transmissão de uma geração a outra – como proteger a água, as florestas, quais cantos ensinar às crianças para proteger o rio, por exemplo. A ideia é que o fortalecimento organizativo de base e territorial contribui para que todas as outras medidas sejam bem-sucedidas.
O relatório cita que os fatores culturais, geográficos, econômicos e políticos que contribuíram para a preservação das florestas em terras indígenas até hoje estão “mudando rapidamente”. Que fatores são esses e por que estão se deteriorando? De que maneira esse contexto tem piorado nos últimos anos?
Temos na América Latina e no Caribe um modelo econômico que prioriza o extrativismo em um cenário de flutuações dos preços das matérias-primas. Essa aposta econômica afeta os territórios indígenas e os direitos coletivos, já que não raro as áreas onde há minério, por exemplo, coincidem com terras indígenas. O avanço desse modelo econômico coloca em risco os povos indígenas: não só partes de seus territórios foram sendo cedidas como muitas comunidades foram expulsas de suas terras tradicionais e levadas a ambientes urbanos. Tudo isso mudou a cultura desses povos: o contato com sua língua, seus locais sagrados e a relação com o ambiente, o que afeta também sua noção de identidade e sua saúde mental. Esses fatores obviamente impactam as florestas, porque aqueles que as têm protegido ao longo dos séculos vão perdendo esses valores. Por isso, o trabalho com povos indígenas para proteger as florestas tem que ser integral, que é o que propõe o estudo. Neste momento, temos que encontrar uma fórmula para a recuperação pós-Covid que não mais admita este meio ambiente onde há justamente o desequilíbrio que causa novas doenças. É fundamental chegarmos a uma estratégia de proteção às florestas, e os povos indígenas têm muito o que contribuir para isso.
Embora tenha uma matriz energética considerada limpa, o Brasil ainda emite grande quantidade de gases de efeito estufa devido principalmente ao desmatamento. Como a falta de fiscalização e proteção aos territórios indígenas pode agravar ainda mais esse cenário?
O não reconhecimento da contribuição dos povos indígenas à proteção do meio ambiente e a violação de direitos indígenas já garantidos pela sua própria Constituição e pelo marco jurídico internacional afetam tudo o que se refere às mudanças climáticas. Isso tudo aumenta o desmatamento e os fatores que intensificam a emergência climática. O relatório propõe medidas cuja implantação não é tão complicada, mas é preciso ter vontade política, respeito à diversidade de conhecimentos, disposição de sentar junto e encontrar soluções em comum entre os indígenas, o Estado e as empresas.
O Brasil tem um presidente que se opõe publicamente à demarcação de novas terras indígenas e incentiva as invasões a esses territórios não apenas no discurso, mas com a máquina do Estado. Como é possível fortalecer os povos indígenas e seus territórios neste contexto em que estamos, já que “o momento de atuar é agora”, como destaca o relatório?
Definitivamente o Brasil é uma situação preocupante para todos os povos indígenas do mundo, não só da América Latina. Do ponto de vista da biodiversidade e do meio ambiente, o Brasil representa um enorme potencial pelo importante papel que tem sobre a Amazônia, mas também é onde há centenas de línguas indígenas em desaparecimento, por exemplo. O fato de o Brasil ter um governo e um presidente que negam esses direitos o coloca num nível muito alto na agenda global dos povos indígenas. Preocupa-nos enormemente que continuem a criminalização dos povos indígenas, os assassinatos e a ameaça de novas leis que revertam os avanços nos direitos indígenas. Acredito que o relatório ressalta e evidencia tudo o que é negado pelo presidente, colocando na mesa evidências que podem ajudar os povos indígenas brasileiros. Além disso, está sendo lançado num momento em que o mundo busca respostas sustentáveis diante das distintas crises – alimentar, ambiental – que estamos enfrentando, e coloca os povos indígenas na agenda global, o que é muito importante à medida que nos aproximamos da próxima COP [a Conferência da ONU sobre o Clima, em novembro deste ano], que vai avaliar o cenário após o Acordo de Paris. Há um contexto global favorável para se discutir a situação dos povos indígenas em todo o mundo, e nesse cenário as populações indígenas do Brasil têm uma relevância enorme devido à situação política e ambiental do país.
O presidente Jair Bolsonaro diz que é preciso abrir as terras indígenas à exploração econômica para que as próprias comunidades “garantam seu sustento” a partir de atividades como a agropecuária de grande escala, mineração e garimpo. Você avalia que o relatório fornece subsídios para que esse argumento seja contestado?
Estamos falando de comunidades que não estão em isolamento voluntário, a maioria das populações indígenas na América Latine e Caribe está em contato com o resto da sociedade e inserida no modelo econômico vigente, que impõe a necessidade de recursos para que supram suas necessidades. Quando o relatório fala de apoio às modalidades de manejo florestal comunitário, está se referindo a isso. As comunidades que fazem extração de borracha e artesanato com materiais da floresta, por exemplo, têm que vender sua produção; as que trabalham com turismo comunitário querem atrair pessoas sensíveis ao tema ambiental e aos direitos indígenas. Não é possível implementar medidas de proteção ambiental sem levar em conta as necessidades econômicas dos povos indígenas para que continuem realizando seu trabalho enquanto guardiões da floresta. O que o relatório pretende é encontrar uma maneira de se fazer isso que seja alternativa ao modelo extrativista, que priorize um modelo econômico culturalmente aceitável, que garanta o equilíbrio entre os seres humanos e os demais seres.
Cada vez mais os cientistas admitem e defendem que os conhecimentos tradicionais indígenas devem ser valorizados se a humanidade quiser preservar sua vida no planeta. Qual é a importância desses saberes para a proteção das florestas?
O conhecimento indígena é resultado do que as comunidades vêm acumulando e desenvolvendo ao longo de gerações para manter as florestas na situação em que estão atualmente. Esse conhecimento combina elementos tangíveis e intangíveis que devem ser levados em conta. Há elementos intangíveis que se relacionam, por exemplo, com as fases da lua, orações e presenças de espíritos, e são fundamentais. Se queremos dar uma resposta a muitos dos nossos grandes problemas, temos que reconhecer a importância desses conhecimentos que sempre utilizamos, mas não valorizamos. Na Rio-92 houve o reconhecimento desses conhecimentos, mas uma coisa é reconhecer, outra é valorizar, e outra ainda é usá-los de forma respeitosa, o que envolve também o respeito aos portadores desses saberes.
Qual o papel de lideranças indígenas mulheres e jovens para que o enfrentamento da crise climática?
Há alguns povos indígenas matriarcais em que as mulheres cumprem um papel fundamental de liderança, mas, independentemente disso, na maioria das comunidades as mulheres desempenham a função de portadoras e reprodutoras do idioma, dos conhecimentos sobre medicina e alimentos tradicionais. São elas que sabem como promover esses saberes, muitas vezes de baixo para cima, quando não lhes é permitido ocupar cargos de liderança em suas comunidades. Agora, quando se conversa com lideranças indígenas sobre suas formas de governança, fica claro que o maior desafio é a transmissão intergeracional. Houve um momento em que se pensou que a juventude indígena já não tinha interesse em seguir com as práticas tradicionais, mas acredito que nos últimos anos temos visto uma redução paulatina disso – não digo que o problema foi resolvido, mas sinto que há mais jovens regressando às suas comunidades e buscando formas de exercer sua identidade de distintos modos. Há jovens que protegem as florestas cantando rap, jovens que o fazem com sua poesia e arte. Tem um movimento de jovens indígenas na América Latina e Caribe preocupados, porque se deram conta de que, se não assumirem a liderança, correm riscos de perder muitos dos conhecimentos de seus avós. Diante da pandemia de Covid-19, com tantos falecidos, há maior nível de consciência da juventude.
De que modo a pandemia tem dificultado a proteção aos povos e territórios indígenas nas Américas?
As medidas de isolamento promovidas por grande parte dos governos da região foram medidas hipócritas. A maioria dos países seguiu aprovando concessões às empresas de mineração sobre os territórios indígenas, por exemplo, no meio da quarentena. Temos visto casos dramáticos como o da Colômbia, onde o fato de as comunidades terem realizado isolamento voluntário e protegido seus territórios para se defender do vírus representou uma ameaça aos narcotraficantes, que utilizavam essas áreas para transportar droga – e o que eles têm feito é assassinar as lideranças indígenas. As mortes dos anciãos indígenas também têm sido um desastre, porque com eles se vão diversos conhecimentos tradicionais, muitas vezes sem que tenham cumprido seu ciclo de transmissão aos mais novos. O caso do Brasil é muito mais dramático porque tem um governo contrário aos povos indígenas e que está tentando empurrar leis contra os seus direitos.
Na sua avaliação, o Brasil está caminhando no sentido oposto ao resto mundo no enfrentamento da crise climática e na garantia dos direitos indígenas?
Antes fosse só o Brasil. O que temos visto nos Estados Unidos nos últimos meses é o ressurgimento da supremacia branca, e o que se observa no Brasil é uma expressão desse sentimento. Gostaria de pensar que isso acontece apenas no Brasil, mas não é verdade: são milhões de pessoas no mundo que pensam ser superiores aos indígenas, negros e outros grupos e que querem impor sua visão de mundo, cultura e modelo econômico. Do ponto de vista dos povos indígenas e comunidades afrodescendentes, o que se vê é um contramovimento a isso, de maior equilíbrio em relação à natureza, mais tolerante e intercultural. Essa situação é muito complexa, e vocês estão em um dos lugares onde isso se reflete de forma tão descarada e sem-vergonha – é preciso dizer. Não é uma situação única, mas, pela dimensão do Brasil e pelo que representa para a Amazônia, é assustador.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 29/03/2021
EcoDebate - Edição 3.634 de 29 / março/ 2021
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Negacionismo, incompetência e catástrofe nacional, artigo de Juacy da Silva
O Brasil está diante da maior crise, na verdade da maior tragédia nacional, que afeta o país não apenas em relação ao caos, sofrimento e morte como característica do nosso Sistema de saúde pública e privado, mas também profundamente a economia e a sociedade como um todo.
A evolução da pandemia do coronavírus foi rápida e atingiu praticamente todos os países, em todos os continentes. Todavia, a incidência tanto de casos quanto de mortes tem sido bem diferentes, sendo que as Américas (Norte, Central, Sul e Caribe), além da Europa concentram a grande maioria tanto de casos quanto de mortes.
Em 18 de Março de 2021 a OMS já contabiliza 121,3 milhões de casos e 2,68 milhões de mortes. Os Estados Unidos ocupam o primeiro lugar tanto em casos quanto em mortes, cabendo ao Brasil o segundo lugar nesta trágica estatística.
No Brasil já foram contabilizados 11,7 milhões de casos e 284,8 mil mortes para uma população de 212,6 milhões de habitantes; enquanto a China, onde o coronavírus foi identificado pela primeira vez, com 1,4 bilhão de habitantes registra apenas 101,5 mil casos e 4,8 mil mortes; situação também bem diferente do Brasil é apresentada pela Índia, com uma população de 1,39 bilhão de habitantes e apenas 159,2 mil mortes.
A mesma tendência pode ser observada em alguns outros países mais populosos do que o Brasil como Indonésia com 270 milhões de habitantes, tendo registrada 1,4 milhão de casos e apenas 39,1 mil mortes e o Paquistão com 220 milhões de habitantes tendo apenas 615,8 mil casos e 13,7 mil casos, situação muito melhor do que a existente em diversas estados brasileiros, com população infinitamente menor.
Situação também muito diferente do Brasil vive a Nigéria, com população de 206 milhões de habitantes, bem próxima `a população brasileira tem apenas 161,3 mil casos e um número insignificante de 2,0 mil mortes.
Outra situação digna de nota é a Coreia do Sul, com população de 51,3 milhões de habitantes, bem mais do que do estado de São Paulo ou 15,5 vezes a população de Mato Grosso, registra apenas 97,3 mil casos e 1,7 mil mortes; enquanto São Paulo registra 2,24 milhões de casos e 65,5 mil mortes e Mato Grosso 278,0 mil casos e 6,5 mil mortes; ou seja, Mato Grosso com apenas 3,3 milhões de habitantes tem mais mortes por covid do que a China e a Nigéria, países com mais de 1,4 bilhão e 206 milhões de habitantes, respectivamente.
Algo de errado está acontecendo no Brasil e com nossos governantes, com certeza, isto é o que devemos refletir ao analisar a atual situação de um colapso no Sistema de saúde de nosso país.
Esses dados demonstram como governantes, em diferentes países, enfrentaram ou estão enfrentando a COVID 19, com medidas que conseguiram, de fato, barrar a disseminação do vírus e também reduzir os índices de letalidade e, pelo que se tem notícia não enfrentaram situação de calamidade pública como esta acontecendo no Brasil e nem queda do PIB.
O último relatório de acompanhamento da COVID-19 da FIOCRUZ, instituição centenária, respeitadíssima tanto no Brasil quanto no exterior pela sua excelência em matéria de ensino, pesquisa e extensão, entidade governamental, vinculada ao Ministério da Saúde, portanto, que trabalha com seriedade e reconhecimento público, com a mais alta credibilidade não deixa dúvida quanto `a extrema gravidade da situação. Pena que o governo federal não considere os alertas que ao longo de meses a FIOCRUZ e seus pesquisadores vem fazendo quanto `a gravidade desta pandemia.
Vejamos o que consta de seu último relatório sobre a situação caótica e crítica dos indicadores que permitem que o conteúdo deste relatório, de 15 de março de 2021, portanto há poucos dias, seja, de fato, um alerta nacional, principalmente `as autoridades Federais, estaduais e Municipais: “ Uma pandemia envolve uma doença infecciosa que afeta populações em muitos países, em diferentes regiões, ainda que de diferentes modos, como no caso da Covid-19. Se estes países não estão preparados para controlar a sua disseminação, seus efeitos podem resultar em uma grave interrupção do funcionamento de uma sociedade e exceder sua capacidade de resposta utilizando recursos próprios, de forma que uma pandemia pode ser compreendida como um desastre. Porém, quando a capacidade de resposta, como as ações desenvolvidas pelos serviços e sistemas de saúde, se apresenta em uma situação extremamente crítica ou mesmo em colapso, como se vê em quase todo país, sendo incapaz de atender às necessidades de todos os pacientes graves e levando os trabalhadores da saúde a situações de exaustão, estamos próximos ou diante de uma catástrofe.”
Seguem outros alertas quanto a situação dos leitos de UTI no citado relatório: “No momento atual são 24 estados e o Distrito Federal, entre as 27 unidades federativas, com taxas iguais ou superiores a 80%, sendo 15 com taxas iguais ou superiores a 90%. Em relação às capitais, 25 das 27 estão com taxas de ocupação de leitos de UTI Covid-19 para adultos iguais superiores a 80%, sendo 19 delas superiores a 90%. A situação é absolutamente crítica. Como nos boletins anteriores, chamamos à atenção para o fato de a situação da pandemia por Covid-19 ser gravíssima. Um conjunto de indicadores, incluindo as médias móveis de casos e de óbitos e as taxas de ocupação de leitos UTI Covid-19 para adultos, apontam para situação extremamente crítica ou mesmo colapso, em todo o país.”
Um outro aspecto não mencionado no relatório da FIOCRUZ, mas que esta umbilicalmente relacionado com a situação apontada é quanto `a super lotação dos leitos de UTI que são as filas da morte, ou seja, existem atualmente mais de 6 mil pessoas necessitando e aguardando um leito de UTI e inúmeras já morreram nessas filas e outras mais irão sucumbir nos próximos dias, semanas e meses. Para essas, como para as que ficaram e ainda vão ficar sem oxigênio em alguns hospitais, o direito `a vida, constitucionalmente amparado, não tem passado de letra morta.
O que todos se perguntam ou como se diz “a pergunta que não quer se calar” é como em apenas um ano um país que tanto se orgulho de seu potencial, de sua pujança econômica, principalmente ao se transformar em um dos três maiores países produtores de commodities, principalmente alimentos, não ter sido capaz de controlar a covid 19, como aconteceu com alguns outros países como China, Vietnã, Nova Zelândia, Coreia do Sul, da Índia e outros mais, que conseguiram enfrentar, controlar esta terrível pandemia, alguns desses países chegaram até mesmo a experimentar crescimento econômico em 2020.
Indo `a raiz desta tragédia, podemos encontrar o negacionismo do Presidente como a causa básica, a partir da qual todas as demais mazelas vieram a ocorrer e continuam presentes neste drama que estamos vivendo.
De inicio o mesmo ridicularizou o coronavírus dizendo ser apenas uma “gripezinha”, depois, sem ser médico e contrariamente ao que toda comunidade científica do mundo e também no Brasil, médicos e suas entidades representativas, docentes e pesquisadores de diversas universidades públicas e privadas e centros de excelência no mundo como o CDC nos EUA e a própria FIOCRUZ e também a OMS que declarou a COVID-19 como uma PANDEMIA mundial em março de 2020, o nosso presidente sempre foi contra o uso de máscara, do distanciamento social, do isolamento social, de medidas que restringem a circulação de pessoas, como formas de reduzir a circulação do vírus.
O seu negacionismo é complementado pela propaganda quanto ao uso de cloroquina, hidroxicloroquina e outros medicamentos que há muito tempo foram declarados pelas comunidades médicas, cientistas e a OMS, como sendo ineficazes na prevenção ou tratamento da covid-19. Este fato foi determinante na saída dos ex ministros Mandeta e Nelson Teich do Ministério da Saúde.
O próprio novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que irá substituir o atual ministro da saúde General Pazuello, através da Sociedade Brasileira de Cardiologia, da qual é presidente, já se manifestou contra o uso da cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento de prevenção e cura da coronavírus, argumentando que tal ação não tem respaldo científico, além de pessoalmente também ter defendido o uso massivo de mascaras, higienização, isolamento e distanciamento social, além de “lockdown” em localidades específicas. Talvez se persistir nessas ideias não deverá permanecer por muito tempo `a frente do Ministério, a menos que se molde totalmente `as determinações do presidente, que, para muitos é o único e verdadeiro ministro da saúde.
Outra forma de negacionismo tem sido sua postura do Presidente em relação `a vacina, chegando em alguns casos a ridicularizar a mesma que seria (como acabou acontecendo) produzida pelo Instituto Butantã, em parceria com a China, ao dizer que não compraria a vacina da China, país sempre denegrido por seus filhos e por seus seguidores, por ser um um país comunista.
Como parte deste negacionismo chegou a dizer que ele jamais tomaria a vacina (mas sua genitora acabou tomando), insinuando numa forma jocosa que quem a tomasse poderia “virar jacaré”. Além disso, desautorizou publicamente o General Ministro da Saúde que em determinado momento anunciou aos governadores que iria comprar 46 milhões de dose da coronavac (a vacina do Butantã/China), obrigando o mesmo a voltar atrás e cancelar os entendimentos.
Na ocasião o Presidente esbravejou publicamente dizendo que ele é o presidente, que “quem manda sou e que por isso não abro mão de sua autoridade” , dizendo que “já mandei o Pazuello cancelar esta compra”. Todavia, meses depois o Governo Federal, com aval de Bolsonaro e do General Pazuello voltaram atrás desta decisão e “fecharam” a compra de 100 milhões de doses da vacina do Butantã/China.
Outro episódio que contribuiu para a falta de vacina no Brasil, provocando a demora e lentidão da campanha de imunização/vacinação, foi a forma negacionista em relação a uma oferta de compra de 70 milhões de doses feita pela Pfizer em Agosto de 2020.
Bolsonaro e Pazuello se apegaram a uma cláusula contida no contrato onde fica estabelecido que aquela empresa farmacêutica não se responsabiliza por danos colaterais que, porventura, ocorram com pessoas que tomam a vacina.
Este lenga lenga, que acabou se mostrando apenas uma cortina de fumaça, foi deixado de lado e o Governo brasileiro irá comprar alguns milhões de doses da Pfizer, cujo contrato é o mesmo anteriormente apresentado nas negociações e que foram aceitos por dezenas de países, cujas campanhas de vacinação estão muito avançadas do que o Brasil. Vale ressaltar que o Brasil ocupa a 50a. posição no ranking dos países em termos de percentuais da população que já receberam a primeira e segunda dose, onde a vacina da Pfizer fez uma grande diferença.
Podemos notar o negacionismo de Bolsonaro quando se referiu a quem usa máscara como maricas ou que a população deve deixar de frescura e parar de chorar, se lamentar, esquecendo-se de que mais de 11,8 milhões de pessoas já foram infectadas e mais de 287,8 mil pessoas já morreram. Pergunta-se: será quem nem chorar seus mortos e se lamentar de que pessoas estejam nas filas da morte, a espera de uma vaga de UTI, ou entubadas em hospitais seus familiares não tem o direito sequer de chorar, já que nem velório podem ser feitos e nem se despedir de um ente querido que faleceu?
Deixando de lado o negacionismo do Presidente , de diversas de seus auxiliares diretos e milhões de seus seguidores que, na verdade acabam provocando aglomerações, sem uso de máscaras e facilitando a propagação do vírus, podemos também identificar na origem do caos, catástrofe e colapso dos sistemas de saúde tanto a incompetência do Governo Federal em liderar as ações de prevenção e combate `a COVID 19, quanto `a falta de articulação entre os três níveis de poder e de governos: federal, estaduais e municipais.
Tanto por parte do Governo Federal quanto dos Governos Estaduais e municipais o que se tem visto é uma verdadeira balburdia, uma politização politica-partidária, colocando sempre interesses menores, como as futuras eleições gerais de 2022, na frente dos principais desafios que estão direta ou indiretamente relacionados com o enfrentamento daCOVID-19.
Ao longo da pandemia a população tem acompanhado um confronto, um conflito aberto entre o Palácio do Planalto, o Ministério da Saúde e os governadores e também os mesmos conflitos entre governadores e prefeitos, principalmente das capitais e maiores cidades, onde estão os maiores colégios eleitorais.
Esta desarticulação tem acarretado sérios prejuízos financeiros e de gestão de recursos humanos e insumos, contribuindo para a presente tragédia, que poderá se agravar se mudanças radicais e profundas na condução das ações governamentais não forem feitas com urgência. Tanto isto é verdade que o Ministro da Saúde, General Pazuello está sendo investigando pelo STF por acusação de se omitir na crise sanitária/hospitalar de Manaus quando centenas de pacientes tiverem que ser transferidos para outros estados e dezenas morreram por falta de oxigênio nos hospitais e no Congresso Nacional já foi aprovado uma CPI, ainda nao instalada, para investigar as ações do governo federal em relação `a pandemia.
A evolução da pandemia, tanto em números de casos quanto de mortes teve um perfil que não foi acompanhado pelas ações governamentais correspondentes, ou seja, houve negligência, certo descaso e incompetência por parte de governantes e gestores públicos nas três esferas de governo.
Diante de inúmeros alertas por parte de médicos e especialistas quanto aos riscos e desafios que a pandemia iria acarretar se medidas efetivas não fossem adotadas a tempo, como de fato aconteceu, ou seja, esta é uma tragédia anunciada e muitos alertas foram feitos, só faltaram mais ações efetivas e menos discursos, meias verdades ou inverdades, inclusive, falta de transparência quanto `as estatísticas e medidas que deveriam ser adotadas.
Uma das grandes falhas que podem ser mencionadas foi a falta de testagem em massa, como fizeram inúmeros países, para que pudessem ser detectados todos os casos de pessoas contaminadas e, assim, poderem ser isoladas e tratadas adequadamente.
Diversas pesquisas, realizadas por universidades, centros médicos, prefeituras e governos estaduais demonstram e continuam demonstrando que o número real de pessoas infectadas representa duas ou três vezes mais do que as estatísticas oficiais indicam (que só identificam as pessoas infectadas quando as mesmas buscam unidades de saúde). Isto significa que de fato existem no Brasil mais de 35 ou 40 milhões de pessoas infectadas ao longo desta pandemia e os níveis de contágio são muito maiores do que as informações governamentais passam para a população, daí este colapso que estamos assistindo.
Se, desde o inicio da pandemia, houvesse testagem em massa, campanha por parte do Ministério da Saúde para o uso massivo, inclusive com distribuição gratuita, de máscaras para a população e isolamento e distanciamento social articulado em todos os estados ao mesmo tempo e severa fiscalização por parte dos diferentes níveis de governo e uma maior compreensão por parte do empresariado, com certeza o panorama atual seria muito diferente e o país teria conseguido controlar a pandemia, como fizeram tantos outros países e já teria retornado `a plenitude das atividades como aconteceu na China, Vietnã, Coreia do Sul e outros países, como já mencionado.
Vejamos como evoluíram os casos e mortes relacionados com a COVID 19 no Brasil.
O primeiro caso registrada de covid 19 foi em 26/02/2020 e só depois de 124 dias foi registrada o primeiro milhão de casos em 19/06/2020. Em menos de um mês depois, em 16/07/2020 atingimos 2 milhões; em 9 de Agosto chegamos a 3 milhões; em 02 de setembro 4 milhões; em 7 de outubro 5 milhões; em 20 de novembro 6 milhões; em 16 de dezembro 7 milhões; em 8 de janeiro deste ano (2021) 8 milhões; em 28 janeiro 9 milhões; em 18 de fevereiro último 10 milhões; em 08 de marco (há pouco mais de uma semana) 11 milhões e, nesta semana, em 17 marco de 2021 atingimos 11,7 milhões.
Mantida a tendência de aceleração observada nas duas últimas semanas dentro de poucos dias, entre este domingo ( 21 de março de 2021) e segunda feira próxima o Brasil estará registrando 12 milhões de pessoas infectadas e 296,2 mil mortes.
Convenhamos, nossos governantes tiverem bastante tempo para agirem de forma mais eficiente, efetiva e eficaz para debelar esta pandemia, se não o fizeram não foi por falta de alerta e das observações quanto a velocidade em que a covid se alastrava e continua se alastrando pelo país. Há quem diga que tudo isto pode ser traduzido em poucas palavras: incompetência, negligência, omissão, descaso e insensibilidade em relação ao, drama, sofrimento e morte de tanta gente, cifras jamais vistas em nosso país ao longo de sua história.
Vejamos como tem ocorrido o registro/dados sobre mortes por covid-19 no Brasil.
A primeira morte foi registrada em 12/03/2020, há pouco mais de um ano. Quando da saída de Mandeta do Ministério da Saúde, em 16 de abril de 2020, o Brasil registrava apenas 30.891 casos de covid e 1.592 morte, praticamente um terço da media dos casos diários e metade das mortes registradas por dia atualmente.
O Ministro Nelson Teich, alcunhado de “o breve”, pois ficou menos de um mes no cargo por se recusar a seguir as recomendações do Presidente, principalmente quanto ao uso da hidroxicloroquina, que desde sempre tem contrariado a ciência. No dia de sua saída do ministério o Brasil já registrava 220.191 casos e 14.062 mortes.
Com Pazuello tanto durante seus poucos meses como ministro interino e depois como ministro efetivo , tanto os casos quanto as mortes evoluíram com extrema rapidez, apesar de que o mesmo sempre tentava minimizar a gravidade do quadro sanitário e hospitalar brasileiro.
Em 16 de setembro de 2020, quando da efetivação de Pazuello como titular do Ministério da Saúde, o Brasil registrava 4,4 milhões de casos e 134,2 mil mortes e, em 15 de março deste ano (2021) quando Bolsonaro, apesar dos constantes elogios quanto `a sua gestão `a frente da Pasta (razão pela qual ninguém entendeu a troca, ou seja, se Pazuello era tão eficiente, qual a razão da toca?), repetido no anúncio do final da gestão de Pazuello e a escolha do quarto ministro da saúde em apenas um ano de pandemia, o Brasil registrou mais um triste recorde de 11,5 milhões de casos e 279,6 mil mortes.
Hoje (18/03/2020) o Brasil registra 11,8 milhões de casos e 287,8 mil mortes, sendo que só nas últimas 24 horas ocorreram 87,2 mil casos e 2,7 mil mortes, indicando uma tendência de alta em ambos os indicadores, o que demonstra que ainda estamos longe de um controle efetivo da pandemia, o caos e colapso total dos sistemas público e privado de saúde
Apesar de que Bolsonaro ter dito certas frases que não foram bem recebidas pela população, como as que disse em relação ao elevado número de mortes: “E daí? Sou messias, mas não faço milagres”, agora, no auge desta tragédia nacional, que pode ainda ficar pior, pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, demonstra que o Presidente Bolsonaro não tem sido bem avaliado pela população em relação `as suas posturas e ações no combate `a pandemia e que ele, Presidente, é o maior responsável pelo atual situação, mais do que os governadores e prefeitos, a quem também a população não avalia positivamente.
Vamos a alguns números desta pesquisa.
Em relação `a condução das ações de enfrentamento `a pandemia, 22% aprovam a forma como o Presidente tem atuado e 54% o reprovam. Quanto `as declarações do Presidente 18% dos entrevistados afirmam que sempre acreditam e 45% jamais acreditam; em relação `a capacidade de Bolsonaro liderar o país no combate `a pandemia, 42% afirmam que ele tem condições e 56% que ele não tem condições para desempenhar satisfatoriamente tal missão.
Uma visão temporal também demonstra uma certo desencanto e deterioração tanto na imagem quanto nas ações do Presidente, bem como quando comparadas com governadores e prefeitos.
Em março de 2020, em torno de 35% consideravam o desempenho do Presidente como ótimo e bom, enquanto 33% consideram ruim e péssimo. Já em março de 2021, ótimo e bom caíram para 22% e ruim e péssimo passou para 54%.
A pesquisa do Datafolha também indagou quem seria o maior responsável pela escalada da pandemia no Brasil. Para 42% dos entrevistados é o Presidente da República; para 20% são os governadores e para 17% são os prefeitos.
Quando a questão “quem está combatendo melhor a pandemia”, ou seja, tendo um melhor desempenho, os resultados seguem a mesma linha: Presidente 16%; Governadores 38% e Prefeitos 28%; ou seja, a imagem de Bolsonaro quanto `a eficácia, eficiência e efetividade de suas ações continua bem arranhada perante a população.
Uma quesito que também lança luz sobre a avaliação quanto ao desempenho dos governantes em relação ao enfrentamento `a pandemia do coronavírus, o panorama da situação é o seguinte.
Em março de 2020 em torno de 54% dos entrevistados avaliaram que os governadores estavam tendo um desempenho ótimo e bom e em marco de 2021 caiu para 34%.; e os que disseram ruim e péssimo passou de 16% para 35%, ou seja, também a avaliação negativa quanto ao desempenho dos governadores fica bem patente na pesquisa.
Um dado interessante é em relação ao desempenho do ministro da saúde. Em março de 2020, o então ministro Mandetta foi avaliado positivamente, ou seja, ótimo e bom para 55% dos entrevistados e em marco de 2021, o ministro Pazuello foi avaliado positivamente por apenas 28%; e , inversamente, ruim e péssimo (avaliação negativa) março de 2020 Mandeta 12% e Pazuello em março de 2021 nada menos do que 39%.
Esses dados são importantes para que passamos refletir como a população está reagindo não apenas quanto a este caos, colapso e tragédia que está estrangulando todo o sistema de saúde (pública e privada) e o sofrimento daí advindo; mas também e principalmente, dando um recado, através dos resultados da pesquisa de que não está nada satisfeita com seus governantes quando se trata de políticas, estratégias e ações de enfrentamento `a pandemia do coronavírus.
Os mesmos sentimentos de angústia, frustração, sofrimento e também de indignação podem ser observados em relação `a campanha de vacinação, cuja morosidade e falta de uma coordenação mais eficiente por parte do ministério da saúde pode levar muitos meses ou até mais de um ano para que toda a população adulta, acima de 18 anos ou talvez, inclusive, adolescentes a partir de 15 anos, possam ser devidamente imunizados.
Enquanto isto podemos observar um verdadeiro pandemônio com ações e iniciativas por parte de governadores e prefeitos tentando suprir a lacuna da incapacidade do Ministério da Saúde em cumprir seu verdadeiro papel que seria adquirir e articular as ações como já eram feitas em outras campanhas de vacinação em que até mesmo o setor privado, como os planos de saúde podem participar deste esforço coletivo com excelentes resultados.
Diante desta balburdia, descontinuidade na direção do Ministério da Saúde, troca de equipes e a politização política e partidária, quando todos os políticos tanto do Poder Executivo quanto Legislativo, nas duas esferas de poder (União e Estados), com certeza vamos ter que conviver com mais mortes e pessoas sendo infectadas, podendo atingir mais de 500 mil ou 600 mil mortes e mais de 18 milhões de casos até o final do ano de 2021, caso a tendência recente se mantenha.
Segundo a Dra. Ludhmila Hajjar, que passou a ser chamada de ex futura ministra, “o cenário brasileiro é sombrio”, lamentavelmente. O Brasil e o povo brasileiro merecem governantes melhores, mais capazes, mais comprometidos com as aspirações do povo e que tenham mais solidariedade diante do sofrimento do povo, principalmente de dezenas de milhões de excluídos que estão passando fome, sem condições de sobrevivência e morrendo e menos apegados aos seus projetos pessoais, partidários ou de grupos em busca do poder, das vantagens e privilégios que emanam de suas estruturas.
JUACY DA SILVA, professor universitário, titular e aposentado UFMT, sociólogo, mestre em sociologia e colaborador de alguns veículos de comunicação. Email profjuacy@yahoo.com.br Twitter@profjuacy
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 22/03/2021
Brasil está no pior momento da pandemia, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
Na semana que passou o Brasil somou 15% de todos os casos e 26% de todas as mortes. O Brasil tem sido o epicentro da pandemia global no mês de março. Além de todo o sofrimento interno, o Brasil tem sido uma ameaça à saúde global
[EcoDebate] O Brasil ultrapassou 12 milhões de pessoas infectadas pela covid-19 e superou 300 mil vidas perdidas na semana que passou. No domingo (28/03) a média móvel de 7 dias do número de infectados atingiu o valor mais alto da série com 76,6 mil casos diários e a média de mortes chegou a dramáticos 2.595 óbitos diários, conforme mostra o gráfico abaixo do Conselho Nacional de Secretários de saúde (CONASS).
covid 19 análises geográficas e de média móvel
O gráfico abaixo, do Ministério da Saúde, mostra o número de casos por semanas epidemiológicas (SE) no Brasil. Na 30ª semana (19 a 25 de julho de 2020) ocorreram 320 mil casos, caiu para 118 mil na 45ª SE (01 a 07 de novembro) e bateu o recorde de 2020 na 51ª SE (13 a 19 de dezembro) com 333 mil casos. Mas o que estava ruim piorou muito em 2021 e o recorde de toda a série ocorreu na 12ª SE (21 a 27 de março de 2021) com 540 mil casos.
casos novos de covid 19 por semana de notificação
O gráfico abaixo, também do Ministério da Saúde, mostra o número de óbitos da covid-19, por semanas epidemiológicas (SE) no Brasil. Na 30ª semana (19 a 25 de julho de 2020) ocorreram 7,7 mil óbitos, caiu para 2,4 mil na 45ª SE (01 a 07 de novembro) e voltou a subir para 5,2 mil óbitos na 51ª SE (13 a 19 de dezembro). Mas os números de 2021 pioraram muito e desde a 7ª SE de 2021 os montantes só sobem e chegaram a 18 mil óbitos na 12ª SE (21-27 de março).
óbitos de covid 19 por semana de notificação
O Brasil teve na semana mais óbitos do que a soma dos outros 9 países mais populosos do mundo. O gráfico abaixo, do Our World in Data, mostra o numero diário de mortes (por milhão de habitantes) para os 10 países mais populosos do mundo. No mês de março de 2021 o Brasil assumiu a liderança isolada e se distanciou muito da média das outras nações.
covid 19 numero diário de mortes (por milhão de habitantes) para os 10 países mais populosos do mundo
Um destaque recente em nosso continente é o aumento dos casos e das mortes no Uruguai, que apesar de ser o país da América Latina com menores coeficientes de incidência e de mortalidade, tem batido os recordes pandêmicos do país. O Uruguai – com 3,5 milhões de habitantes – chegou a 95 mil casos acumulados (superando a China) e a 901 vidas perdidas. A média móvel de infectados que estava 750 casos no início de março, ultrapassou 2 mil casos no dia 27/03. E a média móvel de vidas perdidas que estava em 4 óbitos no início de março passou para 18 óbitos no dia 27/03.
média móvel de casos e de mortes no uruguai
O mundo chegou a quase 127 milhões de casos e a quase 2,8 milhões de mortes. Na semana que passou o Brasil somou 15% de todos os casos e 26% de todas as mortes. O Brasil tem sido o epicentro da pandemia global no mês de março. Além de todo o sofrimento interno, o Brasil tem sido uma ameaça à saúde global.
O país mudou de ministro da saúde, mas parece ainda distante de mudar o quadro catastrófico que envergonha a história do país.
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. A pandemia de Coronavírus e o pandemônio na economia internacional, Ecodebate, 09/03/2020 https://www.ecodebate.com.br/2020/03/09/a-pandemia-de-coronavirus-covid-19-e-o-pandemonio-na-economia-internacional-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
ALVES, JED. Presidente quinta-coluna não combate a pandemia e instala o Necroceno no Brasil, Ecodebate, 08/06/2020
https://www.ecodebate.com.br/2020/06/08/presidente-quinta-coluna-nao-combate-a-pandemia-e-instala-o-necroceno-no-brasil-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
ALVES, JED. Brasil tem mais de uma morte por minuto da covid-19 na primeira quinzena de março, Ecodebate, 15/03/2021
https://www.ecodebate.com.br/2021/03/15/brasil-tem-mais-de-uma-morte-por-minuto-da-covid-19-na-primeira-quinzena-de-marco/
Renata Lo Prete. O Assunto #415: Comida cara, tensão social em alta, G1, 22/03/2021
https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2021/03/22/o-assunto-415-comida-cara-tensao-social-em-alta.ghtml
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 29/03/2021
sexta-feira, 26 de março de 2021
A água doce em um planeta salgado - Samyra Crespo
por Samyra Crespo –
Mais de 35 milhões de brasileiros vivem sem água tratada. A maior parte das grandes cidades já se encontra sob o regimento do racionamento seletivo de água parte do ano (caso do Distrito Federal, capital do País). Em alguns lugares o “racionamento seletivo” dura o ano todo (São Paulo e Rio, por ex.). Ou seja, em muitos lares, só corre água da torneira alguns dias na semana ou por algumas horas do dia.
Como sempre, os mais pobres são os mais atingidos pela falta d’água – e as consequências sanitárias deste fato.
Hoje, 22 de março – é Dia Mundial da Água, data que a ONU consagrou para promover o “direito à água” como universal – bem como para conscientizar sobre a necessidade de fazermos um uso sustentável deste recurso. Ao contrário do que se pensa, a água não é abundante: do total existente no Planeta, 96% são salgadas ou impróprias ao consumo humano.
A água é uma necessidade vital para humanos, animais e plantas. É também um direito básico que muitos, dentro e fora do País, estão longe de desfrutar plenamente. A ONU relata situações em que mães e crianças caminham até quatro horas por um balde de água.
Há um grande movimento econômico-empresarial, mundial, para que a água se torne commoditie e grandes empresas oligopolistas vêm comprando as fontes de água.
As consequências sociais e econômicas dessa “privatização ” do recurso para os que vivem em regiões climáticas severas – com poucas chuvas e sem rios perenes – é dramática.
Conflitos e disputas pela posse ou acesso a fontes de água já ocorrem na África sub saariana e em outras regiões áridas do Planeta.
O consumo da Água para beber já pressiona o orçamento das classes médias mais baixas e dos pobres. A péssima água fornecida por serviços estatais ou privados, nos países pouco desenvolvidos, e caros, obriga boa parte da população a comprar adicionalmente galões do produto purificado ou em garrafas de água “mineral”.
Nas comunidades, o fornecimento dessa água em galão, como o gás em botijão vem sendo gradativamente controlado pelas milícias.
O cenário futuro da gestão da água nas cidades, e da real existência dela, disponível na natureza, não é animador.
Além das mudanças climáticas que alteram o regime de chuvas, o mundo continua desmatando suas florestas nativas. Todos sabemos que o desmatamento é o caminho perverso e certeiro para criar a escassez de água.
Estamos todos preocupados com a Pandemia e isto é perfeitamente compreensivo.
Talvez por isso este debate não tenha a devida acolhida neste momento.
Mas outros gatilhos estão sendo armados para que o sofrimento da humanidade não cesse. Um deles, com certeza é a crescente escassez de água potável.
Já ouvi de algumas pessoas que a solução é a dessalinização. Não se iludam. Sim há tecnologia para retirar o sal da água, mas a seguir o que fazer com o sal? Enterrar no solo, jogar no mar? Ou enviar para Marte?
Fica a pergunta, aos capitalistas, aos gestores e a nós mesmos.
Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008
Água: Insumo econômico e direito humano
por Dal Marcondes, da Envolverde –
País viveu experiência de que é possível ter falta d’água mesmo com maior estoque hídrico do planeta: 12% da água doce superficial –
Quando a colônia brasileira começou a ser ocupada, no século 16, e europeus passaram a fundar vilas, pequenas fontes de água bastavam para abastecer uns poucos cidadãos e animais. Permanecer junto aos grandes rios não era parte dos planos dos fundadores das primeiras cidades. O Colégio dos Jesuítas, pedra fundamental de São Paulo, por exemplo, foi edificado em um outeiro, lugar apropriado para a defesa contra possíveis ataques de índios, mas com pouca água. Mas, dessa vila nasceu a metrópole de quase 20 milhões de habitantes que demandam cerca de 80 litros por pessoa/dia de água tratada para suas necessidades domésticas. Volume impossível de ser obtido nos mananciais próximos, que, pelos critérios estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) têm capacidade sete vezes menor que a necessária para a população que atendem. É preciso ir buscar á água cada vez mais longe e tratar cada vez mais os recursos poluídos, para torná-los próprios ao consumo.
Os anos de 2014 e 2015 demonstraram, de maneira empírica, que as fontes disponíveis nas imediações das maiores metrópoles brasileiras não são suficientes para o abastecimento da forma como é feito atualmente: de maneira displicente, com perdas acima de 30% dos volumes tratados antes de chegar aos consumidores e com pouca ou nenhuma informação sobre as condições dos mananciais e a necessidade de uso mais racional do consumo.
Um levantamento da Agência Nacional de Água (ANA) aponta que o problema do abastecimento é generalizado pelo País. Dos 5.565 municípios brasileiros, mais da metade terá problemas de abastecimento nesta década. E, para tentar adiar a crise ao menos até 2030, será preciso desembolsar R$ 22 bilhões em obras de infraestrutura, construção de sistemas de distribuição, novas estações de tratamento e manutenção de redes superadas, com vazamentos generalizados. E nesse total não estão incluídos os recursos necessários para resolver o problema do saneamento básico, como a construção de sistemas de coleta de esgoto e estações de tratamento, de forma a proteger os mananciais onde se faz a captação para consumo humano. Para isso, segundo a ANA, serão necessários outros R$ 47,8 bilhões.
Os investimentos são urgentes também porque 13% dos brasileiros não têm um banheiro em casa, ou porque mais de 700 mil pessoas procuram os serviços de saúde a cada ano em virtude de doenças provocadas pelo contato com água contaminada por esgotos, ou ainda porque sete crianças morrem a cada dia vítimas de diarreia, entram nas estatísticas de mortes por problemas gastrointestinais ?? em 2009, elas somaram 2.101 casos. Acredita-se que mais da metade poderia ter retornado com saúde para suas famílias, ou mesmo nem adoecido, caso o Brasil estivesse entre as nações que oferecem saneamento básico universal à população.
Para tornar a situação ainda mais dramática, um pesquisador da Universidade do México, Christopher Eppig, descobriu que crianças que enfrentam doenças, principalmente ligadas à diarreia e desidratação, podem ser afetadas em seu desenvolvimento intelectual. Segundo ele, a explicação para essa situação é simples. Alguns parasitas alimentam-se de partes do corpo humano e a reposição desse dano tem alto custo energético. “Em um recém-nascido, 87% das calorias absorvidas na alimentação vão para o cérebro, porcentagem que cai para 23% na fase adulta. Daí a preocupação em se saber se doenças que “roubam” energia das crianças podem afetar seu desenvolvimento intelectual.”
Dificuldades de gestão
Especialistas apontam que a questão da água, ao menos no caso brasileiro, está mais ligada a problemas relacionados à gestão que à escassez propriamente dita. Com 12% da água doce superficial do planeta, grande parte dela na Bacia Amazônica, o País deveria estar tranquilo em relação ao futuro do abastecimento. Mas a distribuição da água pelo território nacional é desigual, principalmente quando comparada à concentração da população. A região Norte tem 68% da água e apenas 7% da população. Nordeste e Sudeste, em oposição, concentram 72% dos habitantes e dispõem de menos de 10% da água. José Galizia Tundisi, autor do livro Água no Século XXI e especialista nas dinâmicas de rios, lagos e outros mananciais (ver artigo na pág. 12), acredita que uma das primeiras providências a serem tomadas para melhorar a gestão dos recursos hídricos é “realizar a avaliação econômica dos serviços prestados pelos recursos dos ecossistemas aquáticos”. Para ele, instituir um valor para esses serviços é a base de uma governança adequada, essencial para o controle do clima, do abastecimento e da produção de energia e de alimentos, entre outras atividades humanas.
Outro tema que emergiu como um ferimento exposto no cenário de escassez foi a necessidade de maior proteção aos mananciais, rios e nascentes que garantem a água para os grandes sistemas de abastecimento das metrópoles, como é o caso do sistema Cantareira em São Paulo e do Paraíba do Sul que atende o Rio de Janeiro. Os rios e nascentes que abastecem esses mananciais sofrem com o desmatamento de suas margens e a ocupação desordenada, tanto por habitações, principalmente ocupações ilegais e favelas, como por uma perigosa proximidade de lavouras e pecuária. Essas condições levam à contaminação por esgotos, no caso das favelas, ou a poluição por agentes químicos utilizados nas lavouras e, ainda, o assoreamento provocado pela atividade pecuária.
A água não é, evidentemente, apenas uma necessidade social, conforto de apenas abrir a torneira e dispor de água de boa qualidade em suas casas. É, também, um insumo econômico de necessidade básica. Muitas empresas compreenderam o risco que correm com a escassez e se adiantaram na gestão dos usos de água em seus processos produtivos. A indústria de celulose, por exemplo, reduziu em quase 50% suas demandas de água por tonelada de produto desde a década de 70. Segundo a associação do setor, a média era de 100 m³ de água por tonelada de celulose e caiu para 47 m³ atualmente. Outros setores seguiram a mesma linha: não apenas ao reduzir o volume de água por unidade de produto, mas, ao implantar sistemas de tratamento de águas industriais que permitem fechar o ciclo entre o uso e o reuso ?? como da alemã Basf em suas unidades do ABC Paulista e Guaratinguetá. Nos últimos dez anos, a empresa reduziu em 78% o consumo de água por tonelada produzida e em 62% a geração de efluentes de processos industriais. São exemplos que poderiam ser difundidos por diferentes setores, pois a água é um insumo fundamental à agricultura e à indústria. Sua gestão não tem relação apenas com o bem-estar da população, mas, também, com a saúde da economia.
Recurso natural indispensável
Tudo o que é produzido no País tem uma cota de água embutida. Os especialistas denominam essa situação de “água virtual”. Para produzir 1 kg de arroz, por exemplo, são necessários três mil litros de água, e 1 kg de carne bovina exige 15,5 mil litros. Uma simples xícara de café não gasta menos de 140 litros de água. Não é que essa água desapareça depois de servido o cafezinho. Mas, para que os produtos cheguem às mesas de consumo, é preciso que a água esteja não apenas disponível, mas limpa, isenta de contaminações por esgotos ou produtos químicos. E mais. Para um automóvel chegar à garagem, o consumo de recursos hídricos chega a 150 mil litros. Ou seja, a economia precisa, e muito, de água de boa qualidade. Isso sem mencionar o fato de que 18% das faltas de trabalhadores ao serviço poderiam ser evitadas com uma gestão mais eficaz dos recursos hídricos no fornecimento à população e tratamento de esgotos.
O estudo produzido pela ANA é um passo importante para o debate sobre como o estresse hídrico dos mananciais afeta o abastecimento das principais regiões metropolitanas e deteriora a situação em outros municípios brasileiros. É necessário encarar o fato de que a segurança no abastecimento de água é estratégica e que o recurso é escasso. A sociedade, apesar dos problemas já evidentes no fornecimento de água às principais regiões consumidoras, ainda não trata o recurso como um bem finito. Mesmo com o país tendo atravessado 2014 com uma das mais importantes secas de sua história, administradores públicos relutam em apresentar a escassez de água como um problema estrutural. No discurso oficial, independente da instância de governo, o tema é colocado como conjuntural e que tende a ser superado “assim que as chuvas voltarem”.
Quando as razões da escassez de água são abordadas em boa parte da imprensa e das conversas , as mudanças climáticas, que recebem das Nações Unidas uma atenção especial desde a última década do século 20, não estão no centro da pauta e são lembradas apenas por especialistas em questões ambientais ligados à academia e a organizações da sociedade civil. Uma das principais teses do cientista Antonio Nobre, ligado ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) fala da relação entre a umidade que circula na Amazônia com a fertilidade dos estados do Sudeste, irrigados através do que ele chama de “Rios Voadores”. Esses “rios” são fluxos de umidade deslocados da Amazônia contra as encostas dos Andes, onde fazem uma curva em direção ao sudeste e em seu caminho, provocam chuvas sobre o Pantanal e lançam suas águas sobre os estados de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Uma observação simples do comportamento das chuvas no verão de 2013/2014, mostra que as águas da Amazônia caíram com violência sobre os estados brasileiros do Acre e Rondônia. As cheias na região duraram cerca de quatro meses, justamente o período que normalmente é de chuvas no Sudeste. Essas águas que provocaram o transbordamento dos rios Madeira e Acre são as mesmas que não avançaram como umidade em direção ao Centro-Oeste e Sudeste do Brasil.
Privatizações frustradas
O planejamento do uso da água tem passado por transformações profundas nas últimas décadas e sofrido impacto de políticas públicas que ficaram ao largo de sua importância na produção e distribuição de água pelo país. É o caso do Código Florestal, aprovado em maio de 2012, que levou meses em uma discussão estéril sobre quantos metros deveriam ser preservados de matas ciliares no entorno de rios, lagos e represas. Em nenhum momento a preocupação com a segurança hídrica destacou-se no debate.
Estudos acadêmicos vêm alertando, há alguns anos, que a abordagem da água no Brasil é casual, não integrada e sem relação direta com a o processo da produção desse recurso, tema que, na realidade, é tratado por muitos engenheiros com certo desdém, sob o argumento de que “não é possível produzir água”, afinal, ela cai do céu. Mas, o fato é que o cuidado com rios e mananciais é fundamental para que as empresas de captação e tratamento possam oferecer água de boa qualidade para o consumo humano direto e outras atividades. Assim, é preciso questionar a estrutura jurídica da gestão de recursos hídricos, que torna o município o poder concedente para a exploração, tratamento e distribuição de águas, sem o cuidado de considerar que a dinâmica da Natureza não segue, evidentemente, as regras da geografia política.
O lógico, neste caso, seria uma gestão por bacias hidrográficas, o que vem sendo tentado desde os anos 90, e está presente na lei 9.433 de 1997, que criou a Política Nacional de Recursos Hídricos, mas que não avança por conta dos interesses econômicos envolvidos na distribuição de água. O modelo atual reflete o intenso período de privatizações, no final do século 20, quando as empresas estaduais de água e saneamento foram desmembradas e surgiram, em lugar delas, empresas locais, sob controle da iniciativa privada, em modelo de concessão, ou por empresas públicas municipais ou as estaduais remanescentes do antigo sistema. Algumas dessas empresas estaduais se fortaleceram dentro de um modelo de gestão de capital aberto, inclusive com presença em bolsas de valores internacionais, como é o caso da paulista Sabesp.
A gestão da água a partir de uma ótica estritamente economicista pelas empresas de abastecimento e pelas propriedades rurais, responsáveis por 70% do consumo total, cria distorções capazes de comprometer seriamente não apenas o abastecimento das necessidades humanas diretas, mas, também, o desempenho da economia, com prejuízos para as empresas. Dados apresentados pelo Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas de Campinas e Região apontam prejuízos em diversos setores industriais paulistas por conta da seca. A paralização da Hidrovia Tietê/Paraná, por exemplo, tem o potencial de aumentar a conta da logística para os produtores rurais em mais de R$ 30 milhões e três mil trabalhadores podem ter perdido o emprego apenas em operações relacionadas à hidrovia e aos serviços em suas margens. No entanto os reflexos podem ser ainda maiores. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) está calculando o impacto da escassez de água sobre o PIB paulista, o conjunto de bens e serviços produzidos em determinado período, geralmente de um ano, que atualmente representa um terço do PIB brasileiro.
Uma fração da solução de longo prazo para os problemas de escassez hídrica deveria vir da compreensão de que é parte da “função social” da terra preservar os serviços ambientais por ela prestados. Assim, proprietários rurais deveriam formar uma grande rede de produtores de água, capacitados, com tecnologia, assistência técnica e os recursos necessários para a identificação de nascentes e cursos d’água eventualmente secos pela derrubada da mata e implantação de plantios ou pastagens, e realizar as ações necessárias para a recuperação e perenização dessas fontes hídricas.
Produtores rurais também devem ser apoiados em ações que ajudem a proteger os mananciais em sua propriedade ou adjacentes da contaminação por qualquer tipo de produto químico utilizado nas lavouras ou por dejetos e contaminantes de origem animal. Esses produtos, quando levados aos rios, são contaminantes de alto impacto para a biodiversidade e torna o tratamento da água mais caro.
A revista científica Nature (Scientific American integra o mesmo grupo editorial da Nature) publicou, em 2012, um estudo da University of Leeds, da Inglaterra, em que aponta a perda de mais de 600 mil km² da floresta amazônica desde a década de 70. O estudo também aponta que no atual ritmo de destruição, cerca de 40% de todo complexo natural da região estará extinto até 2050. Isso comprometeria seriamente o regime de chuvas, reduzidas em mais de 20% nos períodos de seca.
Faixa de desertos
O Sudeste brasileiro está na faixa dos desertos do hemisfério sul do planeta, na latitude do Trópico de Capricórnio. Ela atravessa enormes áreas continentais, como os desertos australianos de Great Sendy, Gibson e Great Victoria. Na África, estão as áreas desertificadas da Namíbia e do Kalahari e na América do Sul, o do Atacama. Sem qualquer coincidência, ambos desertos africanos, atualmente em expansão, estão alinhados frontalmente, dentro das margens latitudinais, com as regiões Sudeste e Sul do Brasil.
Essa porção territorial só se viu livre da desertificação com a exuberância da Amazônia e a formação da Mata Atlântica. Ambas foram determinantes para se criar um regime de chuvas que mantiveram essas partes do Brasil e da América do Sul com solos férteis e índices pluviométricos mais que satisfatórios à manutenção da vida.
O geólogo do Inpe e assessor da Agência Espacial Brasileira (AEB), Paulo Roberto Martini, tem sua teoria para esse fenômeno, em que a desertificação dessas regiões ocorrerá se o transporte de ar úmido for bloqueado ou escasseado, por ação natural ou antrópica. Exatamente o, aparentemente, vem ocorrendo. Investigações geomorfológicas mostraram que entre os anos 1000 e 1300 houve secas generalizadas e populações inteiras desaparecerem nas Américas. E isso pode ocorrer novamente, agora potencializado pela devastação de origem antrópica, ou seja, por iniciativa humana. “O solo da região Sul e Sudeste tem potencial enorme para se tornar desértico, basta não chover regularmente. A distribuição da umidade evitou que essa região da América do Sul fosse transformada num imenso deserto”, argumenta Martini. Mas ações humanas podem alterar radicalmente as opções adotadas pela Natureza.
Botões de controle para tubulações de água. Foto: Reprodução/ Shutterstock
Botões de controle para tubulações de água. Foto: Reprodução/ Shutterstock
A gestão dos recursos hídricos passou por uma grande transformação no Brasil no fim do século passado, quando as empresas estaduais de água e saneamento perderam o monopólio do mercado. Muitas foram municipalizadas e outras privatizadas, além de terem continuado a existir companhias estaduais, como o caso da Sabesp, em São Paulo, referência para o setor. A Sabesp é a única empresa de saneamento a fazer parte do Índice Dow Jones Sustainability, e do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da BM&F-Bovespa, a Bolsa de Valores de São Paulo. O período de mudanças, no entanto, não foi tranquilo nem a gestão privada se mostrou um bom negócio em todos os casos. A cidade de Manaus, por exemplo, foi a primeira capital a privatizar os serviços. O abastecimento não deveria, aliás, ser problema para um município que tem quase 10% da água doce do planeta fluindo à sua porta, pelos rios Negro, Solimões que formam o Amazonas. Em 2000, a gestão em Manaus foi transferida para a francesa Suez, a mesma que, por sua administração desastrada, quase provocou um golpe de Estado na Bolívia.
Para os franceses, parecia fácil enfrentar esse desafio. Em Manaus havia muita água disponível e uma população de quase 2 milhões de habitantes que deveria pagar por ela. Tradicionalmente, o serviço de água da cidade era ruim, portanto, “bastaria oferecer um bom abastecimento” para a conta fechar. Mas esse raciocínio não era tão elementar quanto parece. Como o serviço público nunca funcionou, a elite urbana de Manaus nunca dependeu dele. A maior parte das casas e condomínios abastados tem seu abastecimento garantido por poços artesianos, serviço que, depois de funcional, é gratuito, sem a tradicional cobrança mensal de outras regiões.
A empresa francesa ficou apenas com a gestão do consumo da população pobre e com a obrigação de recolher o esgoto da cidade, pelo qual também não se pagava, uma vez que a taxa de esgoto está embutida na conta de água. Em 2007, a Suez saiu da Amazônia e a Águas do Amazonas continuam privatizadas, mas agora sob a gestão de um grupo nacional que teve de renegociar as condições do contrato de concessão com a prefeitura.
O esgoto não tratado tem impacto sobre outro setor estratégico da economia, o turismo. Principalmente no Nordeste, a presença de “línguas negras” a cruzar praias que deveriam ser refúgios ambientais assusta os operadores turísticos e preocupa o setor hoteleiro.
Um dos indicadores fundamentais de desenvolvimento social é o acesso à água de boa qualidade e a coleta e tratamento universal de esgotos, setores em que o Brasil ainda tem muito a fazer. Pesquisa realizada pela organização Trata Brasil, que estuda gestão de água e esgotos no Brasil mostra que menos de 40% do todo o esgoto gerado nas 100 maiores cidades brasileiras é recolhido e tratado antes de ser lançado de volta nos mananciais, o que significa em números absolutos que cerca de 8 bilhões de litros de esgoto sanitário são lançados em rios, lagos e no Oceano Atlântico diariamente. Apenas para se ter uma ideia: é o bastante para encher 3.200 piscinas olímpicas a cada dia.
EM SÍNTESE: A água é um direito social e um insumo econômico de primeira necessidade. O Brasil precisa de uma gestão eficiente do recurso não apenas para garantir o acesso à água de qualidade pela população, mas também para garantir o bom desempenho da economia.
PARA CONHECER MAIS:
Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil
Atlas Brasil – Abastecimento Urbano de Água
Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos
Sem chuva da Amazônia, SP vira deserto. Entrevista com Antonio Nobre, pesquisador do Inpe.
Entenda a crise da água em São Paulo
* Dal Marcondes é jornalista, diretor da Envolverde e especialista em meio ambiente e desenvolvimento sustentável.
** Artigo publicado originalmente na edição especial sobre água da revista Scientific American Brasil, edição nº 63.
quinta-feira, 25 de março de 2021
EcoDebate - Edição 3.632 de 25 / março/ 2021
Desejamos a todos(as) um bom dia e uma boa leitura
Consumo Consciente
‘Mataram Irmã Dorothy’, mas ela vive em nós, na luta pela Amazônia
25% das áreas dos manguezais já foram perdidas no Brasil
Leis estaduais estimulam invasão de terras públicas e desmatamento na Amazônia
Tribunal Penal Internacional de Haia sofre pressão para punir crimes de ecocídio
A desinformação se tornou a praga deste século
“Compreendemos desenvolvimento sustentável como sendo socialmente justo, economicamente inclusivo e ambientalmente responsável. Se não for assim não é sustentável. Aliás, também não é desenvolvimento. É apenas um processo exploratório, irresponsável e ganancioso, que atende a uma minoria poderosa, rica e politicamente influente.” [Cortez, Henrique, 2005]
terça-feira, 23 de março de 2021
Principais ameaças à segurança hídrica devido aos impactos da ação humana no Pantanal
Pantanal, conhecido como reino das águas, a maior área úmida do planeta, que fica nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e partes da Bolívia e Paraguai, tem sua segurança hídrica cada vez mais ameaçada.
Por Rita Silva e Sandra Miyashiro
Esse é o alerta do WWF-Brasil no Dia Mundial da Água. Uma combinação de fatores que têm se intensificado ao longo dos anos – que vão das mudanças climáticas às queimadas, passando pelo crescente número de barragens que modificam o fluxo das águas – está alterando a dinâmica das águas do Pantanal, que se tornou especialmente vulnerável este ano. Níveis historicamente baixos do Rio Paraguai podem ocasionar uma nova temporada de queimadas como nos últimos anos, que pode trazer consequências irreversíveis.
Isso porque o Pantanal cumpre várias funções, entre as quais conservação de solo e da biodiversidade, estabilização do clima e fornecimento de água. Segundo o Serviço Geológico do Brasil, o Rio Paraguai, principal indicador das condições de inundação do Pantanal, apresenta uma tendência de seca para este ano de 2021. Especialmente as regiões de Cáceres e Porto Conceição, ambas no Estado de Mato Grosso, apresentam níveis historicamente baixos no Rio Paraguai. No Mato Grosso do Sul, em Forte Ladário e Coimbra também são previstos níveis historicamente baixos. Os modelos de previsão indicam que a seca continuará nos próximos períodos, com uma interrupção da recuperação do nível do rio. Os gráficos no fim do texto mostram o nível do rio fora da zona de normalidade.
“Mesmo que o regime de precipitação se normalize, é pouco provável que o Rio Paraguai e o Pantanal tenham cheias significativas, mantendo-se em níveis historicamente baixos. Além disso, o fogo e as mudanças no uso do solo tendem a afetar a própria precipitação na região. Com a diminuição da cobertura vegetal, a tendência é que haja menor evapotranspiração, menor umidade no ar, e, logo, menor índice de chuvas. Temos um cenário de mudanças climáticas aliado à falta de controle ambiental e infraestrutura para combate a incêndios, isso traz sérias ameaças à biodiversidade do Pantanal, assim como a segurança hídrica da região. Há o risco de haver uma nova catástrofe em razão dos incêndios e uma, como aconteceu em 2019 e 2020”, alerta Cássio Bernardino, analista de conservação do WWF-Brasil.
O equilíbrio do Pantanal depende basicamente do baixar e subir de suas águas. Esse ciclo se repetia todo ano com certa regularidade, possibilitando a renovação constante da fauna e flora e formatando a cultura pantaneira. Porém, desde a década de 1970, a bacia do Alto Paraguai registra uma progressiva mudança em suas paisagens por causa do intenso uso e ocupação do solo. O bioma já perdeu em torno de 18 % de sua cobertura natural, que se converte geralmente em pastos e terras aráveis. O ano passado foi especialmente danoso: em 2020, 22.119 focos de incêndios, cerca de 120% a mais que no ano anterior. Estima-se que mais de 2,1 milhões de hectares foram atingidos pelas queimadas em 2020.
Paralelamente, a ação humana está impondo outro obstáculo ao fluxo natural das águas: existem mais de 100 pequenas centrais hidrelétricas planejadas na região do Pantanal e bacia do Alto Araguaia. Segundo o relatório Alternativas Energéticas Renováveis da Bacia do Alto Paraguai, do WWF-Brasil, todos esses projetos de barramento poderiam ser substituídos por fontes renováveis que têm capacidade de gerar cerca de três vezes a potência nominal das PCHs planejadas para serem construídas na Região Hidrográfica do Paraguai. Essa energia poderia ser gerada a partir de recursos disponíveis na região, tais como biomassa de cana-de-açúcar, dejetos animais, resíduos sólidos urbanos, particularmente das duas principais cidades da região (Cuiabá e Campo Grande), além da energia dos efluentes líquidos (esgoto) e a energia solar. A mudança evitaria os impactos ambientais que podem comprometer o equilíbrio da região e afetar atividades econômicas importantes, como turismo e pesca, além de gerar empregos duráveis.
“Neste Dia Mundial da Água é importante chamar a atenção para a necessidade da criação de uma estrutura robusta de combate, prevenção e previsão de incêndios, mas também para o desenvolvimento de alternativas de desenvolvimento sustentável na região”, ressalta Bernardino.
Abaixo, gráficos mostram o nível do Rio Paraguai fora da zona de normalidade nas regiões de Cáceres, Porto Conceição (MT), Forte Ladário e Coimbra (MS).
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Sobre o Pantanal: O bioma ocupa os estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bolívia e Paraguai, uma área de 170.500.92km², equivalente ao tamanho de 4 países juntos: a Bélgica, Holanda, Portugal e Suíça. O bioma é morada de 4,7 mil espécies de animais e plantas e cumpre diversas funções: conservação da biodiversidade, conservação do solo, estabilização do clima e fornecimento de água.
Na época da cheia 80% do Pantanal é alagado, as enchentes se concentram entre dezembro e janeiro. Nesse período, cerca de 180 milhões de litros são despejados por dia nos rios pantaneiros. O equivalente a 72 piscinas olímpicas. Em 1988 o Pantanal foi decretado Patrimônio Nacional, e no ano 2000 foi reconhecido como Patrimônio da Humanidade e Reserva da Biosfera, pelas Nações Unidas.
No Pantanal, a instituição vem atuando de forma emergencial, por conta dos incêndios desde setembro de 2020, com apoio da Rede WWF, para atender pessoas e animais atingidos. Algumas ações realizadas:
– Criação de 6 brigadas comunitárias com treinamento e equipamentos de proteção individual;
– Doação de 630 itens para ações de combate ao fogo;
– Doação de 105 cestas básicas para indígenas;
– Doação de 5 armadilhas fotográficas e 1 veículo para monitoramento da Arara-Azul;
– 35 caixas de analgésicos e anestésicos;
– 19 equipamentos de captura de animais.
– 5 caixas de transporte de animais.
Sobre o WWF-Brasil
O WWF-Brasil é uma organização não-governamental brasileira e sem fins lucrativos que trabalha para mudar a atual trajetória de degradação ambiental e promover um futuro em que sociedade e natureza vivam em harmonia. Criado em 1996, atua em todo Brasil e integra a Rede WWF. Apoie nosso trabalho em wwf.org.br/doe
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/03/2021
segunda-feira, 22 de março de 2021
Dia Mundial da Água: A água é um recurso único e insubstituível de quantidade limitada
A água, como base da vida, das sociedades e das economias, carrega consigo vários valores e benefícios. Mas, ao contrário da maioria dos outros recursos valiosos, é extremamente difícil determinar seu verdadeiro “valor”.
UNESCO
O Relatório de Desenvolvimento Mundial da Água 2021 sobre “Valorização da Água” avalia a situação atual e os desafios para a valoração da água em diferentes setores e perspectivas e identifica maneiras pelas quais a valoração pode ser promovida como uma ferramenta para ajudar a alcançar a sustentabilidade.
A água é nosso recurso mais precioso, um ‘ouro azul’ ao qual mais de 2 bilhões de pessoas não têm acesso direto. Não só é essencial para a sobrevivência, mas também desempenha um papel sanitário, social e cultural no coração das sociedades humanas. Audrey Azoulay, Diretor Geral da UNESCO.
Ignorar o valor da água é a principal causa de desperdício e uso indevido de água
A água tem vários valores.
As abordagens para avaliar a água variam amplamente – e até mesmo dentro – das diferentes dimensões e perspectivas do usuário.
A falha em valorizar totalmente a água em todos os seus diferentes usos é considerada uma causa raiz, ou um sintoma, da negligência política da água e sua má gestão.
Reconhecer, medir e expressar os múltiplos valores da água, e incorporá-los aos processos de tomada de decisão, são fundamentais para alcançar uma gestão sustentável e equitativa dos recursos hídricos.
Como você valoriza a água?
A contabilidade econômica tradicional tende a limitar os valores da água à maneira como a maioria dos outros produtos é avaliada, mas a água não é como outras matérias-primas: seu preço, custo de entrega e seu valor não são sinônimos.
Embora os dois primeiros sejam potencialmente quantificáveis de um ponto de vista monetário básico, a noção de ‘valor’ cobre uma gama muito mais ampla de benefícios intangíveis.
Valorizando o abastecimento de água, serviços de saneamento
A água é uma necessidade humana básica, necessária para beber e para apoiar o saneamento e a higiene, sustentando a vida e a saúde. O acesso à água e ao saneamento são direitos humanos.
O papel da água em nossa vida diária (dentro das famílias, escolas, locais de trabalho e instalações de saúde) é frequentemente esquecido, mas o valor da água para WASH (serviços de água e saneamento) não tem preço.
Para atribuir o valor certo aos serviços de água e saneamento , precisamos levar em consideração os benefícios que esses serviços trazem às pessoas, como melhores condições de vida e produtividade, custos reduzidos de saúde e envolvimento no local de trabalho.
As mulheres, e particularmente as meninas, que carregam o fardo de trazer água potável para mais perto de casa, costumam ser as principais beneficiárias de serviços melhorados.
Estima-se que alcançar o acesso universal à água potável segura e ao saneamento em 140 países de baixa e média renda custaria cerca de US $ 114 bilhões por ano.
A relação custo-benefício de tais investimentos demonstrou fornecer um retorno positivo significativo. Os retornos sobre a higiene são ainda maiores, pois podem melhorar muito os resultados de saúde em muitos casos, com pouca necessidade de infraestrutura adicional cara.
O ano de 2020 viu o surgimento da pandemia COVID-19 , que atingiu com mais força as pessoas mais vulneráveis do mundo – muitas delas vivendo em assentamentos informais e favelas urbanas.
A higiene das mãos é extremamente importante para prevenir a disseminação de COVID-19 (ver a resposta da UNESCO para COVID-19 ).
Globalmente, mais de três bilhões de pessoas e dois em cada cinco centros de saúde não têm acesso adequado a instalações de higiene das mãos. O acesso inadequado a instalações de higiene das mãos aumenta o risco de propagação de COVID-19 e outras doenças infecciosas.
O valor perdido na vida humana e no potencial educacional e econômico é um fardo para a sociedade.
O acesso à água potável e a serviços de saneamento seguro contribui para uma vida com dignidade e igualdade.
Da UNESCO, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 22/03/2021
EcoDebate - Edição 3.629 de 22 / março/ 2021
Desejamos a todos(as) um bom dia e uma boa leitura
A fome vem ai e não é culpa do lockdown: Fora Bolsocaro!
Negacionismo, incompetência e catástrofe nacional
Imposto de Renda 2021 (IRPF): Mudanças e cuidados na declaração
Urgência não aumenta o apoio às principais políticas climáticas, concluiu o estudo
Serviços ecossistêmicos dos oceanos são essenciais para o planeta e a humanidade
Desastres naturais afetam cada vez mais os sistemas agroalimentares
Dia Mundial da Água: A água é um recurso único e insubstituível de quantidade limitada
Risco de queda ameaça a qualidade de vida dos idosos
“Compreendemos desenvolvimento sustentável como sendo socialmente justo, economicamente inclusivo e ambientalmente responsável. Se não for assim não é sustentável. Aliás, também não é desenvolvimento. É apenas um processo exploratório, irresponsável e ganancioso, que atende a uma minoria poderosa, rica e politicamente influente.” [Cortez, Henrique, 2005]
sábado, 20 de março de 2021
Conama e o fim da democracia no meio ambiente
Vários Autores (nomes ao final do texto) –
Supremo tem a oportunidade de restaurar a expertise técnica no colegiado –
Nas últimas décadas, o Brasil exerceu um papel de liderança global em questões ambientais, climáticas e de biodiversidade. Com destaque para as ações e políticas de redução drástica dos desmatamentos na Amazônia.
A despeito de diferenças ideológicas e até partidárias dos que comandaram o Ministério do Meio Ambiente, houve evolução cumulativa ao longo dos últimos 30 anos. Isso não se deveu apenas ao compromisso dos gestores, mas também à efetivação da participação social em matéria ambiental e ao arranjo institucional que a viabilizou. A qualidade da política ambiental brasileira é fruto de demanda e da participação efetiva da sociedade.
No entanto, a partir de 2019, diversos colegiados federais foram extintos ou fechados à sociedade. Foi o que aconteceu com o Comitê Gestor do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, o Conselho Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente e o Conselho Orientador do Fundo Amazônia. A desativação do Fundo Amazônia e a paralisia do Fundo Clima até agora retiraram recursos bilionários da proteção da biodiversidade, da fiscalização, da pesquisa e da mitigação de mudanças do clima.
A retração democrática não poupou sequer o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que é o principal e mais longevo formulador de regramentos nacionais para a garantia da qualidade das águas, do ar, para a proteção da fauna e das florestas. Chamado de “Parlamento Ambiental” pelo professor Paulo Nogueira Neto, o Conama era reconhecido por sua ampla abertura participativa e refinada capacidade técnica. Com o decreto 9.806/2019, porém, o colegiado passou a funcionar, na prática, como uma espécie de órgão de governo, em que o critério último para a deliberação é a vontade unilateral e discricionária do Ministro de Meio Ambiente.
A conversão do Conama em organismo chapa-branca, com a exclusão de diferentes componentes da sociedade civil, desvirtua sua essência e castra a participação de vozes representativas, com olhares regionais e setoriais diversos: contraponto indispensável ao monolítico exercício do poder. Deixou de ser um conselho “nacional” e passou a “federal”, com sub-representação de estados e municípios, enfraquecendo o Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) como um todo. O sistema de rifa, literalmente, para a eleição de representantes da sociedade civil no referido conselho é condenável como método “democrático” de exercício de representação setorial.
Nesta sexta-feira (5), o Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de desfazer esse equívoco, reinserindo a dimensão participativa do Conama e restaurando a expertise técnica no colegiado. Para tanto, a corte precisa julgar procedente a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 623 (relatoria da ministra Rosa Weber), ajuizada pela Procuradoria-Geral da República.
A tarefa não é difícil. Na semana passada, noutra ADPF (622), o STF, por 10 votos a 1, o fez em defesa do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), declarando inconstitucional o decreto 10.002/2019.
Há uma grande expectativa de que o mesmo justo peso e medida usados em relação ao Conanda sejam agora aplicados em relação ao Conama. Em uma única decisão histórica, o Supremo poderá fazer um grande bem ao meio ambiente e à democracia, dois valores essenciais e indissociáveis para o desenvolvimento sustentável do Brasil.
Ex-ministros do Meio Ambiente
Rubens Ricupero – Gustavo Krause – José Sarney Filho – José Carlos Carvalho – Marina SIlva – Carlos Minc – Izabella Teixeira – Edson Duarte
Publicado originalmente na seção Debates da Folha de S. Paulo
Crise mundial de alimentos: a inversão de prioridades e o risco para os seres humanos
Por Reinaldo Canto, especial para a Quality Magazine –
Pode ser que alguns se surpreendam, mas nós humanos somos como, quaisquer das espécies que habitam o planeta, notadamente nas funções mais básicas e ordinárias de nossas existências, exatamente iguais. Afinal, assim como outros seres, a principal tarefa que nos cabe cotidianamente é a de obter alimento suficiente à nossa própria sobrevivência. Assim mesmo, sejamos mais ou menos inteligentes, teremos que comer, hoje, amanhã e nos dias vindouros de nossa limitada existência. Nada muito diferente do que faz uma minhoca, um gambá ou um sabiá.
Esta é apenas uma, entre as muitas leis naturais há que estamos subordinados. Mesmo assim, tem sido comum nesses tempos modernos, que a ganância ilógica dos poderosos busque colocar o homo sapiens aquém e além do óbvio. Só assim poderemos entender a inversão de prioridades ao colocar em risco a produção dos alimentos, tal como temos visto com certa frequência e cada vez com situações mais graves e alarmantes.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS E PANDEMIA
Se já não bastasse o cenário de fome crescente no mundo em função das mudanças climáticas, a pandemia do coronavírus ampliou os desafios. Segundo informações divulgadas pela FAO, o órgão das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, este ano cerca de 49 milhões de pessoas podem cair na pobreza extrema devido à crise da COVID-19. “O número de pessoas expostas a uma grave insegurança alimentar e nutricional vai crescer rapidamente. A queda de um ponto percentual no Produto Interno Bruto global significa mais 700 mil crianças raquíticas”, afirmou Antonio Guterres, Secretário Geral da ONU.
A FAO também alerta que mesmo em países com abundância de alimentos, há riscos de interrupções na cadeia de abastecimento alimentar, ou seja, problemas na produção e na distribuição que ainda agravam esse cenário.
NOVOS E VELHOS PROBLEMAS
Mas sempre é bom lembrar que não foi a crise sanitária que criou determinados problemas, eles de certa maneira foram potencializados, já que o contexto da fome no mundo já era suficientemente crítico.
A ONU lembra que centenas de milhões de pessoas já viviam esse quadro de crise alimentar muito antes dessa pandemia, lutando diariamente contra a fome e a desnutrição.
“Há alimentos mais do que suficientes no mundo para alimentar a nossa população de 7,8 bilhões de pessoas. No entanto, hoje, mais de 820 milhões de pessoas passam fome. E cerca de 144 milhões de crianças com menos de 5 anos são raquíticas, mais do que uma em cada 5 crianças em todo o mundo”, complementou Guterres.
Outro problema apontado por economistas da FAO é a especulação orquestrada pelos mercados futuros. “A financeirização por meio de manobras especulativas contribue para elevar os preços dos alimentos”, afirma a entidade.
Especulação, fenômenos climáticos extremos e desvio da função primordial de dar de comer as pessoas, já seriam razões suficientes para desequilibrar toda a oferta de alimentos mundial. Mas ainda tem mais: a má distribuição!
Estudos feitos pelas Nações Unidas já concluíram que existem alimentos suficientes para alimentar toda a população do planeta, o problema é que ela não chega onde mais se precisa. E, claro não poderia ser diferente, 98% dos que passam fome, vivem em países subdesenvolvidos.
AQUI, O PROBLEMA É O DESPERDÍCIO
Segundo maior produtor mundial de alimentos, o Brasil produz comida suficiente para alimentar toda a sua população e ainda exportar excedentes. Mas além da má distribuição, um dos maiores problemas do país é o desperdício. Dados da Embrapa estimam em uma perda diária de alimentos na casa das 40 mil toneladas. Uma quantidade suficiente para alimentar em torno de 19 milhões de pessoas com três refeições por dia.
Estudo do Instituto Akatu divulgado no caderno temático “A nutrição e o consumo consciente” nas diversas etapas pelas quais o alimento passa antes de ser adquirido pelo consumidor ocorrem perdas que perfazem essas milhares de toneladas de comida boa que vai parar no lixo, sendo 20% na colheita; 8% no transporte e armazenamento; 15% na indústria de processamento e 1% no varejo. Além disso, devem-se levar em conta todos os recursos naturais que foram utilizados para a produção desperdiçada desses alimentos.
É POSSÍVEL MUDAR, MAS É PRECISO RAPIDEZ
Basear os investimentos em uma agricultura sustentável com o incentivo aos pequenos produtores, consumir mais produtos locais, melhorar a infraestrutura do transporte e armazenamento para reduzir o desperdício e garantir o acesso da população aos alimentos são ações que deveriam estar presentes em qualquer plano estratégico de um país. Neste momento pelo qual ainda estamos passando de enfrentamento da pandemia, um planejamento eficiente é mais do que necessário ainda mais se esse país for pobre ou em desenvolvimento. Colocar todos os esforços e todos os setores na busca desse equilíbrio é, antes de mais nada, questão de governabilidade e respeito às pessoas.
#Envolverde
Corrida contra o relógio: é preciso semear água agora
Por Andrea Pupo*, IPÊ –
“Lavar as mãos com água e sabão”. Com certeza você ouviu essa frase como uma das medidas mais importantes no combate à Covid-19. Isso pode ser simples, claro, mas para quem tem água disponível. Uma realidade que não é a de todos nós, infelizmente. De acordo com dados do IBGE, 16% da população brasileira, 31 milhões de pessoas, não têm acesso à água fornecida por meio da rede de abastecimento. Ou seja, para elas, não existe abrir a torneira e lavar as mãos com água limpa.
Quando o problema não está no tratamento e no fornecimento, está na produção de água e qualidade da água dos rios. A cada ano, o Brasil tem sofrido cada vez mais com a escassez de água, de suas nascentes aos reservatórios. Mudanças do clima e desmatamento de áreas florestais, em ritmo crescente no País, são as principais razões. Seja na Amazônia, com nossos “rios voadores” – termo criado pelo pesquisador Antônio Nobre para demonstrar como a floresta amazônica ajuda a levar chuva para várias partes do Brasil e regular o clima – seja no Cerrado ou na Mata Atlântica, com suas nascentes que, de um fiozinho d’água, dão origem a rios que matam a sede na floresta e nas cidades.
Como educadora ambiental, atuando em cidades do Sistema Cantareira de abastecimento, a água é o tema que permeia todas as minhas conversas junto com os mais diferentes públicos com os quais eu tenho contato. De professores a produtores rurais, todos já enxergam como o recurso tem se tornado precioso em nossas vidas. Mas no decorrer de mais de 10 anos atuando com o tema, já é possível perceber que as medidas de uso consciente que aprendemos e ensinamos não são mais suficientes para garantir o “uso sustentável” desse recurso. Se antes pensávamos em proteger florestas para as futuras gerações, isso não vale mais. Precisamos proteger e semear novas florestas não apenas para as gerações futuras, como costuma-se dizer, mas para a nossa geração.
Vivemos um momento em que é preciso (re)pensar de forma sistêmica sobre a água. Afinal, sem ela não há vida e os nossos hábitos e meios de produção têm impactos gigantescos no ambiente onde a água é produzida. Para além de cobrarmos políticas públicas eficazes e ações que consigam levar água a todos os brasileiros, bem como ficar atentos sempre à responsabilidade das empresas detentoras do direito de uso desse recurso, precisamos repensar a água também lá onde ela tem origem, na floresta.
A água não nasce na torneira. Para chegar até as cidades, a água faz um longo percurso, desde as nascentes dos rios, nas florestas, onde as árvores têm papel fundamental no seu ciclo. A água da chuva bate primeiro nas folhas das árvores chegando ao chão com menos força, evitando o desprendimento de partículas do solo. A camada de folhas e galhos que cobre o chão dentro das matas age como se fosse uma esponja que retém a chuva, permitindo que ela infiltre aos poucos, guiada pelas raízes das árvores, até alcançar o lençol freático.
Ainda há quem acredite ser necessário derrubar florestas para produzir alimentos e criar rebanhos, mas basta observar a natureza para encontrar soluções inteligentes que sejam ambientalmente corretas, socialmente justas e economicamente viáveis.
Os sistemas agroflorestais são exemplos de que é possível produzir alimentos em meio às árvores, gerando um equilíbrio do ecossistema muito parecido com o que existe nas florestas nativas. Bom para a conservação e fertilidade do solo, a recarga do lençol freático, a diversidade de espécies, a segurança alimentar do agricultor entre outras vantagens. Para os rebanhos existem alternativas como as pastagens ecológicas, que também tem árvores e o pasto é dividido em parcelas. Nesse sistema, os animais se alimentam apenas um dia em cada parcela, enquanto isso, nas outras, o capim cresce, o solo não fica exposto, os carrapatos morrem porque não encontram um hospedeiro e a chuva encontra as condições necessárias para infiltrar em vez de levar o solo embora com a enxurrada, provocando erosão. As árvores proporcionam conforto térmico para os animais e também contribuem para a oferta de nutrientes para eles e para o solo.
Mas a responsabilidade pela produção rural sustentável não está só nas mãos dos produtores e dos técnicos extensionistas. Quem vive nos centros urbanos também precisa contribuir para o uso sustentável e não apenas consciente da água. O acesso à água em quantidade e qualidade está relacionado aos nossos hábitos de consumo e às nossas escolhas no cotidiano e isso não tem a ver só com economia de água.
Ao comprar alimentos da produção local ou bem próxima de onde se vive, estamos contribuindo para fortalecer o trabalho do produtor rural que protege o solo, a água e a biodiversidade, proporcionando qualidade de vida para a família dele e para a nossa. Isso sem falar das toneladas de gases de efeito estufa que deixarão de ser lançadas na atmosfera, porque esse alimento não precisou viajar muitos quilômetros para chegar até a à mesa.
Importar-se com questões como água, alimentos e mudanças climáticas é fundamental para a necessária transição para sociedades mais justas e sustentáveis. Esses temas precisam estar nas escolas, nas universidades, nas igrejas, no comércio, na indústria, em todos os lugares, e não apenas nas datas comemorativas. Precisamos explicar às crianças (e aos adultos) de onde vem a água, o que é polinização, o papel das florestas na nossa saúde – e a pandemia é um ótimo ponto de partida – e no nosso bem-estar.
Esse é o nosso segundo Dia Mundial da Água celebrado enquanto atravessamos (ainda e infelizmente) a pandemia de Covid-19. Se eu pudesse desejar algo para esse dia, como educadora, é que cada um de nós, ao abrir a torneira e lavar as mãos com água e sabão evitando esta e tantas outras doenças, pudéssemos nos lembrar como somos privilegiados em poder acessar esse recurso.
*Andrea Pupo, coordenadora de Educação Ambiental do Projeto Semeando Água, uma iniciativa do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, que busca contribuir com o aumento da segurança hídrica do Sistema Cantareira.
#Envolverde
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