
Vista
do lago General Carrera, o segundo maior da América do Sul situado na
região de Aysén, na Patagônia chilena, um indômito território que é
considerado o paraíso hídrico do país. Foto: Marianela Jarroud/IPS
A aprovação pelo governo do Chile de uma central hidrelétrica na
Patagônia reavivou novamente a discussão sobre a sustentabilidade dessa
fonte em sua forma tradicional e sua eficiência na construção de uma
matriz energética limpa.
Por Marianela Jarroud, da IPS –
Santiago, Chile, 29/1/2016 – “A hidroeletricidade como processo para
obter energia pode ser limpa e viável, mas, para nós, todo tipo de
energia deve ser desenvolvida em escala humana, e isso deve responder ao
tamanho e potencial das comunidades”, ressaltou à IPS a porta-voz do
movimento Patagônia Sem Represas, Claudia Torres.
Segundo a ativista, “ha vários fatores pelos quais os movimentos
socioambientais estão contra as megarrepresas: pelos enormes impactos e
pelo objetivo dessa eletricidade, destinada a saciar as necessidades da
megamineração, que é outro descalabro (ambiental) no norte do país”.A
luta desses movimentos contra as represas na região patagônia de Aysén
teve uma importante derrota no dia 18 deste mês, quando foi aprovado o
projeto da central do Cuervo nesse indômito ecossistema, destinado a
gerar 640 megawatts (MW).
O Chile possui 17,6 milhões de habitantes e capacidade total
instalada de 20.203 MW, distribuídos majoritariamente nos sistemas
interligados Central (78,38%) e do Norte Grande (20,98%). A matriz
energética chilena é composta por 58,4% de geração a diesel, carvão e
gás natural, com dependência dos hidrocarbonos importados, que o país
busca reduzir drasticamente por razões financeiras e por seus
compromissos para mitigar a mudança climática. A mega-hidroeletricidade
fornece 19,97% ao total da matriz, enquanto as fontes renováveis não
convencionais somam 13,5%.
O país conta com enorme potencial de energias renováveis não
convencionais, que permitiram ao governo da presidente Michelle Bachelet
estabelecer,em 2014,uma agenda para o setor, que projeta para 2050 que
70% da geração de energia será fornecida por fontes renováveis.Em
matéria de recursos hídricos, o país dispõe de aproximadamente 6.500
quilômetros de costa, 11.452 quilômetros quadrados de lagos e lagoas, 97
bacias hidrográficas e 34 rios transfronteiriços, segundo dados
oficiais.
Aysén, no extremo sul do país, é considerada o paraíso hídrico do
Chile por seus caudalosos rios, numerosos lagos e suas características
lagoas. Seu território abriga o lago General Carrera, o segundo maior da
América do Sul, atrás do Titicaca, na Bolívia.É para essa pouco povoada
região que se volta o olhar para a exploração da hidroeletricidade, uma
energia amplamente rechaçada por numerosos setores da sociedade civil,
que a consideram obsoleta e uma ameaça ao bem-estar socioambiental da
população.
Por outro lado, o professor Matías Peredo, especialista em energia
hidráulica da pública Universidade de Santiago do Chile, assegurou que o
potencial hídrico do país permite que a hidráulica seja “uma das fontes
de energia que mais podemos desenvolver”. Peredo afirmou à IPS que
“sempre é bom diversificar a matriz energética e a energia hidrelétrica,
bem operada, é bastante sustentável”.
O professor acrescentou que um projeto hidrelétrico grande, mas bem
administrado, “é melhor do ponto de vista ambiental e social do que
vários projetos pequenos que somados conseguem a mesma quantidade de
megawatts”. Peredo explicou que, para uma hidrelétrica ser operada como
deve ser, é preciso conseguir um bom uso do recurso para evitar
flutuações.
O especialista também disse que “a geração hidrelétrica no Chile
depende da demanda e do fator de carga da central. Em outras palavras, a
usina só pode operar com prévia autorização da Superintendência de
Eletricidade e Combustíveis e dependendo da disponibilidade de água”.
Peredo pontuou que “essa combinação faz com que a central hidrelétrica
opere um tempo, depois deixe de operar, volte a funcionar e novamente
pare. Então, gera flutuações importantes de caudal e isso produz um
estresse muito grande no ecossistema”.
A lei que reforma e fomenta o setor das energias renováveis não
convencionais agrupa nessa denominação a energia hidrelétrica de até 20
MW de potência, ou seja, as minicentrais hidráulicas. Organizações
ambientalistas, como a Ecossistemas, consideram que as grandes centrais
hidrelétricas geram comprovados impactos sociais e ecológicos muito
negativos.Entre esses impactos estão inundação de grandes extensões de
terra que destroem a flora e a fauna, e alteraçõesnos rios, o que
provoca sua degradação bioecológica, entre outros problemas
multidimensionais.
Junto a isso, as consequências sociais negativas das grandes represas
são proporcionais aos seus múltiplos impactos ambientais, e por causa
delas milhões de pessoas foram reassentadas ou deslocadas: entre 40
milhões e 80 milhões em nível mundial em 2000, segundo dados da Comissão
Mundial de Represas.
“É importante diversificar a matriz energética para uso local, com um
bom apoio, energias limpas, impactos bem menores e potencialização do
consumo e do desenvolvimento dos territórios”, destacou a ativista
Torres, de Coyhaique, capital da região de Aysén. “A geração
descentralizada é fundamental” para avançar em matéria de energia limpa e
sustentável, acrescentou, ressaltando que a população de Aysén busca
sustentar sua matriz energética com base na energia eólica, solar e
maremotriz (energia das marés), entre outras.
Peredo concordou com a importância estratégica da descentralização
energética.“A geração distribuída é uma discussão que, sem dúvida, deve
ser feita. Ganha muito sentido o fato de a geração elétrica ser
fornecida de locais mais próximos”, acrescentou.
O movimento Patagônia Sem Represas obteve em 2014 um sucesso
histórico, quando o governo rejeitou definitivamente o projeto da
HidroAysén, que pretendia construir cinco centrais hidrelétricas para
gerar globalmente 2.700 MW. Mas agora enfrenta o revés da aprovação da
construção da central do Cuervo por um especial Comitê de Ministros, que
é uma decisão inapelável no campo administrativo, deixando apenas a via
judicial para impedir sua concretização.
Desenvolvida pela Energia Austral, uma empresa mista dos grupos
Glencore (Suíça) e Origin Energy (Austrália), o projeto contempla
investimento de US$ 733 milhões e será construído na nascente do rio
Cuervo, a 45 quilômetros de Puerto Aysén, a segunda cidade da região.
Para a linha de transmissão que levará a produção até o sistema
interligado são estudadas opções de um traçado submarino e outro
aéreo-submarino.
A polêmica sobre a central aumenta porque sua construção está
projetada sobre a falha geológica Liquiñe-Ofqui, uma região formada por
cones vulcânicos ativos, alertam especialistas no assunto. “É um risco
iminente para a população”, afirmou Torres. Peredo ressaltou que “não se
trata de um projeto bem operado” e que “desde sua concepção esteve mal
desenhado. Deixaram de considerar aspectos relevantes, como a mescla dos
rios Yulton e Meullin, que em algum ponto ocorre e que poderia ter
consequências desastrosas para o ecossistema”.
Os opositores ao projeto já anteciparam que recorrerão à justiça e
pressionarão social e politicamente, em um ano de eleições municipais no
Chile. “Nosso objetivo é apenas um: que não se construa nenhuma represa
na Patagônia, e assim será”, enfatizou Torres. Envolverde/IPS