Para muitos ribeirinhos, é do roçado que vem o que comer. Como as várzeas – terras periodicamente inundadas pelos rios – são muito férteis, é comum que a roça ganhe maiores dimensões e o que seria para subsistência vira também fonte de renda.
Parte dos ribeirinhos que conseguem se estabelecer como produtores encontram dificuldades para escoar seus produtos pelos rios ou estradas da Amazônia. É nesse cenário que surgem os atravessadores: com mais facilidades de logística, eles pagam barato e vendem caro os produtos obtidos com o suor dos ribeirinhos.
A fertilidade da várzea traz muita fartura para os agricultores das comunidades vizinhas Nossa Senhora de Fátima, São João Batista e São Raimundo, a cerca de duas horas de Manaus, em lancha rápida. “Aqui, todos vivem da agricultura. A terra é muito fértil, mas devido às enchentes, a gente tem apenas seis meses para plantar e colher. Sempre correndo o risco de perder o que plantou, caso a cheia venha antes da hora”, disse à Agência Brasil o produtor Elson Lopes, 55 anos.
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O agricultor Raimundo Luciano Menezes mostra o fruto do seu trabalho durante os meses de seca na comunidade de São João Batista. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O tesouro das comunidades é o mamão. Segundo o produtor Raimundo Menezes, 37 anos, da Associação Comunitária Rural de São João Batista, um pé de mamão poderia durar quatro anos. Mas quando vem a enchente, ele “murcha igual papelão, e tudo recomeça do zero”. Quando a seca volta, porém, a terra está fértil e no ponto para plantar. No caso de Raimundo Menezes, pepino, feijão, maracujá, pimenta de cheiro, cebola e cebolinha, além do mamão.
“Para sobreviver temos de nos acostumar com a natureza. Não podemos brigar com ela, mas aproveitá-la. Uma coisa boa da cheia é a pesca. Portanto, nossa alimentação muda de acordo com a época do ano. Na seca, comemos as verduras produzidas aqui. E, na cheia, comemos peixe com farinha e arroz. Quem pode, guarda a produção”, explica Menezes.
A dificuldade com as cheias associada à falta de infraestrutura aumentam os custos dos ribeirinhos. E a falta de uma logística que ajude a escoar os produtos acaba favorecendo os atravessadores – pessoas ligadas aos feirantes das cidades, que pagam preços muito baixos aos produtores.
“Nós chamamos os atravessadores de aproveitadores. Vendem tudo pelo dobro do que pagam. E, quando levamos os produtos às feiras somos boicotados, porque já existe um acordo entre eles e os feirantes”, denuncia Lopes.
“O que eu faço é comprar aqui e vender em Manaus”, disse Jocélio Pereira da Cruz, 42 anos, que chegou à comunidade no momento em que a Agência Brasil conversava com os ribeirinhos.
“É fácil negociar. Para uma boa compra basta uma boa conversa. Se não baixam o preço, compro do vizinho. E para vender [na feira], basta evitar preços muito baixos. Dá para tirar um bom lucro porque o que compro a R$ 10 vendo com facilidade a R$ 20. É chegar e entregar”, disse o atravessador que faz duas viagens semanais para comprar e vender produtos como maracujá, macaxeira, feijão, abóbora e mamão. “É um trabalho bom porque sou o meu patrão.”
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Escoar a produção é também desafio na comunidade Vila Alencar, localizada a cerca de 600 quilômetros de Manaus, onde as plantações são mais destinadas ao próprio consumo. “Apenas uma parte é vendida, mas temos muitas dificuldades para levá-la até as cidades. Há alguns anos a situação era pior, porque não tínhamos barco e a viagem era feita em uma canoinha sem motor”, disse à Agência Brasil a tesoureira de Vila Alencar Ivone Brasil Carvalho, 28 anos.
“Demorava umas cinco horas para chegar. Era muito cansativo porque, como a canoa era pequena, tínhamos de fazer pelo menos três viagens de ida, a remo. E quando chegávamos, a venda acabava não valendo a pena porque, como havia os mesmos produtos sendo vendidos por outros agricultores, o preço não compensava”, recorda Ivone.
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A socióloga Olga D´Arc Pimentel saiu da cidade grande e largou tudo para viver às margens do Rio Negro, como uma ribeirinha. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Apesar das incertezas e das dificuldades características da vida ribeirinha, ela exerce fascínio a ponto de se tornar opção de vida para muitos que viviam na cidade grande. É o caso da socióloga formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e aposentada pela Fundação Oswaldo Cruz, Olga D’Arc Pimentel, 66 anos. Ela largou tudo, inclusive a família, para viver às margens do Rio Negro, tal qual uma ribeirinha.
“Sempre tive minhas ideias e sempre tentei colocá-las em prática. Com isso, acabo sendo objeto dos meus experimentos: o cientista e o rato do meu próprio laboratório. Trata-se de um projeto anarquista que tem como propósito voltar para trás a roda da sociedade e também da minha vida”, disse.
“Esse meu desejo de retorno é porque sei que todos amam a natureza, mas houve um rompimento provocado pelas cidades. Só que as pessoas adoecem por causa da vida na cidade e por causa do trabalho. Se der, voltarei ao sistema de trocas [escambo], sem a interferência do dinheiro. Compro apenas mantimentos, como arroz, feijão, cebola, açúcar e farinha”, completou a socióloga que atua como professora voluntária em uma escola pública da região.
Olga só bebe a água do Rio Negro, onde vive em uma casa flutuante. Curiosamente, nunca aprendeu a nadar. “É uma espécie de amor platônico que tenho por este rio. Já decidi que vou morrer aqui. Meus filhos acham que eu gosto mais de índios do que deles, mas eu tenho um ambiente aqui. Adoro as crianças e os idosos ribeirinhos. São pessoas tão corajosas.”
Hoje, Olga já se considera uma ribeirinha. “Vivi até os 12 anos em cidades pequenas do interior de Goiás. Isso me fez conviver com o fogão de lenha, as águas, as pessoas e a natureza do Cerrado. E o que vivo hoje não deixa de ser um retorno também para as minhas origens”. Perguntada sobre o que sente falta nas cidades, ela não tem dúvidas: “sinto muita falta dos blocos de carnaval e dos botecos onde tomava chope”.
A vida ribeirinha atrai também gente do outro lado do mundo, como a chinesa Min Yu He. Depois de largar o emprego para conhecer o mundo, ela se identificou com um grupo de ribeirinhos que promove experiências entre turistas e botos no Rio Negro. Ainda que nunca tivesse dormido em uma rede, decidiu abandonar o grupo de turistas com quem excursionava e, junto com o namorado, resolveu passar uns dias em meio aos ribeirinhos.
“Foi a primeira vez que dormimos em uma rede, mas achamos bastante confortável. A noite aqui é muito tranquila e silenciosa. Escutamos apenas os sons dos bichos. Sons muito diferentes. É realmente uma experiência bastante exótica e apaixonante estar nesse ambiente, com essas pessoas”, disse ela à Agência Brasil. Min Yu He diz ter sentido “identificação especial” com os ribeirinhos. “No começo eram fechados, mas com pouco contato já se tornaram grandes amigos. Nos demos bem com as crianças e com o jeito simples de eles viverem”, disse.
O apreço pelos ribeirinhos foi recíproco, segundo o guia nativo Damião Barão, um dos donos do flutuante onde o casal chinês passava as noites. A comunicação com o casal chinês não foi tão fácil. “Mas deu para ver no olhar deles que são boa gente. Simples que nem o povo daqui, mas de um jeito diferente. Acabamos nos dando muito bem e resolvemos recebê-los em nosso flutuante. No início eu achava que eles não iam dar conta, mas pelo que se vê eles não só estão dando conta como estão gostando muito de passar uns dias aqui, no meio do rio, convivendo com minha família e com meus amigos”, disse Barão.
Já o que levou Anicélia Barbosa Mendes, 21 anos, a trocar a cidade de Tefé (AM), cidade com 61,5 mil habitantes, por uma vida ribeirinha na Comunidade São Francisco – com cerca de 200 habitantes, localizada na Reserva Mamirauá – foi o amor despertado por um ribeirinho. “Casei, mudei e estou aqui há quatro anos plantando tudo o que como”, disse.
Há dois anos foi a vez de Alison Boaventura de Souza, 22 anos, fazer o mesmo. “Eu trabalhava como eletricista. Quando perdi o emprego decidi vir para ficar perto da namorada. Colaboro fazendo instalações elétricas, mas me tornei agricultor. Prefiro a vida ribeirinha porque é mais fácil plantar do que comprar comida. Temos fartura de melancia, enquanto na cidade só come quem tem dinheiro”, disse.
Por onze dias, no mês de fevereiro, a equipe de reportagem da Agência Brasil viajou pela Amazônia para conhecer o dia a dia dessas comunidades. A vida dos ribeirinhos também será destaque no programa Caminhos da Reportagem, que será exibido pela TV Brasil hoje (17), às 22h.
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A socióloga Olga D´Arc Pimentel saiu da cidade grande e largou tudo para viver às margens do Rio Negro, como uma ribeirinha. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

* Edição: Lílian Beraldo.
** Publicado originalmente no site Agência Brasil.
(Agência Brasil)