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domingo, 9 de novembro de 2008
FREIO NA EUFORIA DOS BIOCOMBUSTÍVEIS
Desde a assinatura do Protocolo de Quioto e da advertência dada pelos pesquisadores do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) acerca dos riscos do aquecimento global, começou a corrida para reduzir a emissão de gases. Biocombustíveis como o etanol transformaram-se em solução promissora de complementação da matriz energética de combustíveis fósseis, adicionado à gasolina, nos motores a álcool ou no chamado flex fuel, que permite a mistura com o derivado do petróleo em qualquer proporção.
Os resultados do uso do álcool no mercado interno levaram o Governo Federal a defender a posição do Brasil como exportador de biocombustíveis, capaz de suprir a demanda externa, pela quantidade de terras agricultáveis disponíveis. Entretanto, pesquisas da UFMG fazem ressalvas que precisam ser consideradas antes de se acreditar na capacidade do etanol de reduzir a emissão de poluentes e aliar sustentabilidade ambiental, crescimento econômico e inclusão social.
A começar pela liberação de dióxido de carbono (CO²), um dos gases do chamado efeito estufa. Projeção feita pelo professor Britaldo Silveira, do IGC, indica que a redução da emissão de carbono provocada pelo etanol em dez anos é inferior ao seu potencial de absorção nas áreas desmatadas para cultivos agrícolas, anualmente, no Brasil. Hoje, o plantio da cana ocupa cerca de sete milhões de hectares (7 Mha), segundo dados da Embrapa e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. “Temos uma estimativa de que a área para expansão da cana estaria abaixo de 100 Mha, incluindo as áreas desmatadas da Amazônia”, afirma o professor do IGC. Relatórios do Ministério das Minas e Energia apontam 140 Mha.
Segundo Silveira, sua pesquisa, financiada pelo Banco Mundial e desenvolvida em parceria com outras instituições brasileiras, entre elas o Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Estratégico da Universidade de Campinas (Nipe/Unicamp), analisará se essa quantidade de terras é suficiente para atender a demanda do mercado externo. O objetivo do estudo é identificar perdas e ganhos dos biocombustíveis tomando como parâmetro a redução de CO².
Segundo projeção do Nipe, o Brasil exportará, em 2025, 205 bilhões de litros de etanol, quantidade suficiente para substituir 10% do consumo de gasolina projetado para aquele ano. A área da cana necessária à produção de combustível para o mercado interno e externo seria de 45 Mha, considerada, pelo Núcleo, viável às condições brasileiras.
Expansão
Além das áreas tradicionais de cultivo no Nordeste, a expansão da cana ocorre no Oeste Paulista, Triângulo Mineiro e Sul de Goiás. O plantio nessas regiões provoca o desmatamento do cerrado e das matas ciliares. “O cerrado virou a bola da vez, apesar de sua importância para a biodiversidade e para a recarga hídrica das bacias”, explica o pesquisador Marcos Zucarelli, do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta) da UFMG. A partir de uma expedição de oito mil quilômetros, ele mapeou as novas fronteiras do cultivo da cana. A pesquisa deu origem ao livro Despoluindo incertezas, publicado em 2007, com recursos da fundação alemã Heinrich Boell.
Outra frente de expansão canavieira, de acordo com o estudo do Gesta, compreende o Norte do Paraná, o Mato Grosso do Sul e o Mato Grosso, ao redor da Floresta Amazônica. Segundo Britaldo Silveira, 10% da floresta seriam aptos para agricultura mecanizada. “Entretanto, a cana tem mais facilidade de se adaptar ao solo amazônico porque não precisa mecanizar o cultivo”, explica Silveira. Ele afirma que só o trabalhador consegue cortar rente ao solo. Isso garante a produtividade do usineiro, já que a ponta da cana é a parte mais rentável na extração do álcool.
Ainda que não seja diretamente responsável pelo desmatamento da floresta, Zucarelli diz que a cana “empurra” a criação de gado para o Norte do Brasil. Ele aponta que a criação de gado no país cresce a uma taxa de 5,5%, enquanto nos estados da região Norte ultrapassa 40%.
A redução dos recursos hídricos e o desgaste da terra são problemas ambientais provocados pelo cultivo da cana também apontados pela pesquisa do Gesta. Zucarelli explica que não há propostas de criação de usinas no Nordeste porque o solo da tradicional região canavieira desgastou-se. “O cultivo da cana está ocupando as melhores terras do país”, afirma o pesquisador, referindo-se à expansão do modelo baseado na monocultura e nas grandes propriedades para o Sudeste. Esse modelo levou os pesquisadores a cunharem um neologismo: “agrocombustíveis”. “É um alerta para mostrar que a produção vem da terra. Bio é vida, e a produção em regime de monocultora não tem nada de vida”, comenta Zucarelli.
Em termos socioeconômicos, se a cana gera empregos porque privilegia o corte manual, por outro lado, o trabalho é degradante, conforme comprovou a pesquisa do Gesta. São 12 horas de jornada e ganho por produtividade. A cota diária mínima de corte está em torno de dez toneladas. O chamado “facão de ouro” chega a cortar 19 toneladas por dia. Cada tonelada custa R$3,40. Os relatos de trabalhadores entrevistados no estudo revelam a falta de segurança, a recorrência de acidentes de trabalho e o consumo excessivo de água. O período de vida útil é de apenas 15 anos.
Alimentos mais caros
Impedir que a expansão dos biocombustíveis afete a produção de alimentos é uma das diretrizes da política de agroenergia do Governo Federal. Segundo Britaldo Silveira, a expansão do cultivo da cana sobre as áreas de alimentos ainda não ocorre no Brasil, como aconteceu nos Estados Unidos, com a produção de etanol a partir de mais de um terço da safra do milho. Estudo do Banco Mundial divulgado pelo jornal britânico The Guardian aponta que os biocombustíveis norte-americanos foram os maiores responsáveis pela alta mundial dos preços dos alimentos, em maio deste ano. De acordo com o estudo, o etanol brasileiro não provocou impactos dramáticos nos gêneros alimentícios.
Professor do Departamento de Engenharia Nuclear e pesquisador de biocombustíveis na UFMG, Inácio Loiola Campos interpreta a alta dos alimentos, em parte, como conseqüência dos subsídios agrícolas de países desenvolvidos, que inibem a expansão da agricultura exportadora dos países subdesenvolvidos. Segundo Loiola, uma planta na zona equatorial e tropical cresce, em média, seis vezes mais rápido do que em região temperada, o que significa que o mercado mundial não estaria explorando esse potencial, para manter agriculturas pouco competitivas como a européia e a norte-americana.
Nos últimos tempos, a União Européia (UE) tem se mostrado mais receptiva ao etanol brasileiro. Depois de questionar, em conferência da ONU, a procedência, capacidade de produção e pressões ambientais provocadas pelo etanol, a UE tenta agora negociar acordos de exportação do produto brasileiro condicionados à importação de artigos europeus. No encontro, realizado em maio, o presidente Lula afirmou que a área de cultivo da cana está a dois mil quilômetros da Amazônia e que o Brasil possui terras agricultáveis suficientes para atender a demanda mundial.
Ainda que o Banco Mundial não tenha identificado pressões no cultivo de alimentos no Brasil, a expedição do Gesta encontrou zonas de expansão canavieira sobre fazendas de soja e de criação de gado. A pesquisa também atenta para as propriedades familiares que sofrem pressões de mercado para serem arrendadas a usineiros e abandonam o cultivo de alimentos para consumo próprio.
Como alternativa ao plantio monocultor com exploração de mão-de-obra, os pesquisadores do Gesta apontam a Cooperbio, no Rio Grande do Sul, que combina cultura de alimentos com a de matéria-prima para biocombustíveis. Na cooperativa, os agricultores participam de toda a produção, desde as sementes até o combustível final, utilizado para consumo próprio.
Pequeno produtor deve recorrer à tecnologia
Nem todo biodiesel reduz a emissão de poluentes. Isso depende da qualidade do óleo, alcançada por tecnologia que exige equipamentos caros, esclarece o professor Inácio Loiola Campos, do Departamento de Engenharia Nuclear da UFMG. Segundo ele, para fabricar um biodiesel capaz de atender as exigências da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e que ao mesmo tempo emita menos CO², o pequeno produtor rural deve recorrer a uma tecnologia incompatível com o seu capital. “Esse acesso só será possível caso ele se associe a cooperativas ou a arranjos produtivos locais”, explica.
A fabricação de biodiesel ocorre por batelada ou por produção contínua. Na batelada, o óleo de oleaginosas é adicionado a um álcool e a um catalisador, em uma panela aquecida, para formar biodiesel, glicerina e triglicerídeo. “A qualidade do biodiesel é fundamental porque, com o tempo, pode haver formação de goma no motor”, esclarece Loiola. Isso acontece se o combustível tiver alto percentual dos outros dois produtos da reação química. O excesso de glicerina e de triglicerídio também provoca a formação da fumaça preta. Neste caso, o biodiesel seria tão poluente quanto o diesel mineral. Segundo Loiola, a separação dos produtos no regime de batelada é difícil.
“Isso não significa que o pequeno produtor não possa fabricar biodiesel, mas leva mais tempo por causa da decantação. Conseqüentemente, a escala de produção não será compatível com o preço de venda”, analisa. O mercado externo quase não usa a batelada, ainda muito comum no Brasil, e vale-se do método da produção contínua, que usa uma centrífuga para separar os resíduos gerados pela reação.
De acordo com Loiola, o cultivo de matérias-primas para o biodiesel deve combinar o produto de grandes propriedades ao da agricultura familiar, que depende bastante das condições de solo e clima para obter sucesso na safra. O equilíbrio da produção impede a escassez de oleaginosas e garante a participação de pequenos produtores na renda dos biocombustíveis.
A produção combinada influi no valor final do combustível. No Brasil, existe a tendência de se comparar o preço do biodiesel ao do diesel mineral, parâmetro que não agrada Inácio Loiola. Ele prefere considerar o ganho social advindo do biodiesel. “Quando o pequeno agricultor produz oleaginosas, existe mais dinheiro circulando na região, aumento da renda e do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)", conclui.
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FONTE : "Freio na euforia" - Glauciene Lara
Boletim da UFMG - Nº 1619 - Ano 34 - 04.08.2008
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