“O desperdício se refere aos alimentos que foram descartados por serem mantidos além do prazo de validade, por terem estragado ou simplesmente por não terem sido consumidos”, pontua o economista agrícola, Paulo Waquil.
“No Brasil, há estimativas da produção de mais de 180 mil toneladas de resíduos sólidos por dia, dos quais mais da metade é de resíduos orgânicos, compreendendo principalmente as perdas e desperdícios de alimentos. Estes resíduos, além dos aspectos econômicos envolvidos, causam sérios danos ambientais e, portanto, requerem maior atenção”, alerta o economista agrícola Paulo Waquil nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Na entrevista, ele aborda o consumo sustentável de alimentos, a necessidade de redução destes resíduos gerados por perdas ou desperdício, a adoção de políticas públicas capazes de impor restrições a estas práticas e facilitar a distribuição de alimentos que seriam descartados, o papel do Estado como regulador de mercados e ente garantidor de preços e qualidade dos produtos consumidos, entre outros pontos.
Waquil ressalta que a adoção de uma postura ecológica e economicamente sustentável que privilegie o aproveitamento dos alimentos por seus aspectos nutricionais, e não apenas estéticos, pressupõe uma mudança comportamental significativa. “As mudanças no comportamento dos consumidores não são rápidas, e geralmente requerem incentivos. A maior conscientização dos consumidores e a adoção de metas por alguns governos já têm trazido alguns resultados. Por exemplo, o Reino Unido já possui regulamentação com este propósito desde o ano 2000. Outros países europeus, como a Holanda, a França, a Áustria e a Suécia, e asiáticos, como o Japão e a Coreia do Sul, também seguiram o mesmo exemplo. Além do estímulo ao consumo consciente e sustentável, regras punitivas à geração de resíduos também têm sido adotadas, como um sistema de pagamentos progressivos, através da elevação do valor pago pela maior geração de resíduos.”
Paulo Dabdab Waquil é graduado em Agronomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, possui mestrado em Economia Rural pela mesma instituição e doutorado em Economia Agrícola pela University of Wisconsin, Madison – Estados Unidos. Atualmente é professor associado da UFRGS. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia Agrária, e pesquisa principalmente os temas desenvolvimento rural, política agrícola, mercados agrícolas, comercialização agrícola e cadeias agroindustriais.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – A partir dos resultados constatados pela pesquisa em conjunto realizada entre o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural – PGDR da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, o que pode ser dito sobre a agroindústria no Brasil?
Paulo Waquil - O projeto que realizamos através de um acordo de cooperação técnica entre IPEA, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e UFRGS teve como objetivo geral um conjunto de análises aprofundadas sobre os dados do último Censo Agropecuário e culminou com a publicação do livro Aspectos Multidimensionais da Agricultura Brasileira: diferentes visões do Censo Agropecuário 2006, editado pelo IPEA neste ano de 2014. Um dos estudos realizados tratou do perfil da agroindústria rural no país, e aqui é fundamental compreender o conceito de agroindústria rural adotado pelo IBGE: refere-se “às atividades de transformação e beneficiamento de produtos de origem animal ou vegetal, em instalações próprias, comunitárias ou de terceiros, com matérias-primas produzidas no próprio estabelecimento ou adquiridas de terceiros, desde que a destinação final seja dada pelo próprio produtor”.
Portanto, o projeto não tratou da agroindústria como um todo, das grandes cadeias ou das empresas que atuam no setor, não focou nas relações setoriais entre agricultura, indústria e distribuição, em seus encadeamentos e relações de coordenação. O projeto tratou especificamente da análise das atividades de transformação e beneficiamento realizadas nas unidades de produção, geralmente em pequena escala, com a finalidade de conservar alimentos, reduzir perdas, agregar valor, gerar renda complementar, ou até mesmo criar mercados alternativos.
Sobre o perfil desta agroindústria rural, percebe-se uma grande diversidade de situações, com diferenciações regionais, de produtos, de escala, além de diferenças marcantes entre os estabelecimentos familiares e não familiares. A maioria destas atividades ocorre inicialmente na informalidade, com a transformação e beneficiamento de pequenos excedentes de produção e o armazenamento para consumo pela família ao longo do ano ou a colocação em mercados locais. Em vários casos, na medida em que estes produtos beneficiados são reconhecidos e valorizados, a produção é ampliada e passa a atender outros mercados. Um exemplo é a utilização de frutas colhidas no período de safra, processadas na forma de doces e geleias, para conservação e utilização por um período mais longo, seja pela própria família ou através da comercialização nos mercados próximos.
Assim, o perfil traçado é de um número bastante significativo compondo uma grande diversidade de situações, já que o Censo oferece informações sobre 32 produtos beneficiados nos estabelecimentos rurais que apresentam expressão nas cinco grandes regiões brasileiras. De acordo com os dados censitários, 16,7% dos aproximadamente 5,1 milhões de estabelecimentos rurais no Brasil transformaram ou beneficiaram alguma matéria-prima. Entretanto, estas atividades predominam nas Regiões Sul e Nordeste, onde a agricultura familiar tem maior importância.
IHU On-Line – Que diferenças regionais podem ser apontadas neste perfil?
Paulo Waquil - As variações regionais podem estar ligadas às diferenças na oferta de matérias-primas, influenciadas por condições de solo e clima, mas principalmente são compreendidas por diferenças de hábitos alimentares, cultura e tradição. Por exemplo, produtos derivados da cana-de-açúcar, como cachaça e rapadura, e da mandioca, como a farinha e a tapioca, são muito mais presentes na Região Nordeste; 67% dos estabelecimentos rurais que elaboraram farinha de mandioca são do Nordeste do Brasil. Por outro lado, produtos como doces e geleias elaborados a partir de frutas e embutidos, como linguiças, copas e salames, são muito mais presentes na Região Sul; nestes casos, 78% dos estabelecimentos que produziram doces e geleias e 98% dos estabelecimentos que produziram embutidos estão na Região Sul. Já a produção de queijos também tem grande importância, mas ocorre de forma mais desconcentrada, em todas as regiões do país.
Um ponto comum é a predominância da utilização de matérias-primas próprias, com pouca utilização de matérias-primas adquiridas de terceiros. Além disso, a produção ocorre em pequena escala e o direcionamento da produção se dá principalmente para o consumo da família ou venda direta ao consumidor, eliminando ou reduzindo a presença de intermediários no processo de comercialização. Entretanto, em alguns casos onde ocorre maior concentração da produção, como no caso da farinha de mandioca no Norte e Nordeste, a participação de intermediários ainda é marcante, fazendo o escoamento para outras regiões do país.
Outro aspecto importante a destacar, e que tem sido foco de estudo por parte de alguns pesquisadores, é a valorização da tradição, do “saber-fazer”, mas que ocorre paralelo a um processo de inovação neste segmento, processo este que leva a uma maior diferenciação de produtos regionais ou coloniais que chegam aos mercados.
IHU On-Line – Como o pequeno produtor e a agricultura familiar se inserem na agroindústria brasileira?
Paulo Waquil – Nas últimas décadas se consolidou um forte sistema agroindustrial, passando por vários elos desde o fornecimento de insumos, a produção de matérias-primas, o processamento ou industrialização, a distribuição no atacado e no varejo, até chegar ao consumidor final. Neste sistema, existem cadeias que se caracterizam por forte concentração, dominadas por grandes empresas, geralmente nos elos da industrialização e do varejo, que criam relações de dependência e de subordinação dos agricultores familiares. Exemplos dessa situação são as cadeias de aves, suínos e tabaco na Região Sul, que estabelecem relações contratuais com os agricultores, os quais recebem os insumos, seguem pacotes tecnológicos, têm acompanhamento técnico e garantia para colocação de seus produtos no mercado. Por estas relações contratuais, as incertezas são reduzidas, mas as margens de ganho dos agricultores são pequenas, o que é apresentado na literatura como o “squezze” da agricultura.
Outra situação é a de cadeias menos consolidadas, onde as relações contratuais são mais frágeis ou inexistentes, e as transações ocorrem através de relações de mercado. Aqui as relações não são de longo prazo, e as incertezas são maiores. Mas os agricultores podem ter mais opções, reduzindo a condição de dependência. Exemplos dessa outra situação podem ser tomados nas cadeias de grãos ou de frutas.
Mas, retomando o foco do nosso projeto citado na primeira pergunta, existem as cadeias curtas, que reassumem importância maior, como alternativa de comercialização. Estas cadeias envolvem a maior aproximação entre produtores e consumidores, diferentemente das situações apontadas acima, o que não é algo novo, mas que tem sido revalorizado. Devido à pressão que muitos agricultores têm sofrido, particularmente através dos elevados custos de produção e dos reduzidos preços recebidos pelos seus produtos, a busca por alternativas tem sido de grande importância. O papel das agroindústrias rurais familiares, visando à agregação de valor aos produtos, à geração de emprego e renda e à criação de novos mercados é uma tendência percebida em todas as regiões.
Em cada situação, o papel do Estado deve ser pensado para atender tais peculiaridades, seja na regulação dos mercados e das relações contratuais, no acompanhamento e garantia de preços satisfatórios, no estabelecimento de normas sanitárias e ambientais compatíveis com a realidade destes agricultores, no fomento e apoio técnico ou financeiro, ou mesmo na criação de mercados institucionais. Podemos citar alguns programas implementados no Brasil que visam atender este público, como o PRONAF Agroindústria , o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE.
IHU On-Line – Que informações a pesquisa revela sobre perdas e desperdício de alimentos no Brasil?
Paulo Waquil – A pesquisa não tratou especificamente do tema das perdas e desperdícios de alimentos, mas sem dúvida alguma está relacionada a ele. Atualmente estou orientando um trabalho de mestrado sobre estas perdas e desperdícios, e há evidências de uma situação preocupante em todo o mundo. Em primeiro lugar, é importante distinguir os dois termos. Perdas se referem à diminuição da massa (quantidade) ou do valor nutricional (qualidade) dos alimentos, causadas por ineficiências ao longo das cadeias de produção e distribuição. Já o desperdício se refere àqueles alimentos que estavam apropriados para o consumo, mas que foram descartados por serem mantidos além do prazo de validade, por terem estragado após o preparo, ou simplesmente por não terem sido consumidos.
No Brasil, há estimativas da produção de mais de 180 mil toneladas de resíduos sólidos por dia, dos quais mais da metade é de resíduos orgânicos, compreendendo principalmente estas perdas e desperdícios de alimentos. Estes resíduos, além dos aspectos econômicos envolvidos, causam sérios danos ambientais e, portanto, requerem maior atenção.
Em geral, os trabalhos que abordam o tema das perdas e desperdícios de alimentos enfatizam, em ordem decrescente de importância: a necessidade de redução da geração de resíduos; a facilitação da distribuição de alimentos descartados que ainda sejam comestíveis, por exemplo, por meio de bancos de alimentos; a destinação para a alimentação animal; a utilização como adubo ou fonte para a geração de energia; e, finalmente, a destinação final em aterros sanitários.
Então o nosso projeto sobre as agroindústrias rurais, possibilitando aos produtores a transformação e beneficiamento de produtos de origem animal ou vegetal nos estabelecimentos rurais e particularmente a conservação dos produtos para consumo ao longo de um período mais extenso, pode ter impacto relevante já no primeiro aspecto citado acima, reduzindo as perdas de matérias-primas agrícolas e a geração de resíduos orgânicos, além dos pontos já abordados anteriormente como a agregação de valor, geração de renda e criação de mercados.
IHU On-Line – Há, em termos mundiais, um crescimento no movimento de compra de alimentos que seriam descartados devido à sua aparência ou tamanho, baseado no consumo sustentável? Em que regiões este movimento mais se destaca?
Paulo Waquil – Os dados sobre a produção de resíduos orgânicos e seus impactos econômicos e ambientais são alarmantes em todo o mundo, mas as estimativas são muito variáveis. Em geral, nos países mais desenvolvidos, os desperdícios de alimentos são maiores, mas é justamente nestes países onde iniciativas como estas têm sido adotadas.
Tais iniciativas se enquadram no segundo aspecto citado na questão anterior, referente à facilitação da distribuição de alimentos descartados. São iniciativas de grande importância, que requerem mudanças comportamentais. São iniciativas que consideram a valorização dos aspectos nutricionais e da sanidade dos produtos, em vez de dar maior importância à aparência ou tamanho. Só que as mudanças no comportamento dos consumidores não são rápidas, e geralmente requerem incentivos.
A maior conscientização dos consumidores e a adoção de metas por alguns governos já têm trazido alguns resultados. Por exemplo, o Reino Unido já possui regulamentação com este propósito desde o ano 2000. Outros países europeus, como a Holanda, a França, a Áustria e a Suécia, e asiáticos, como o Japão e a Coreia do Sul, também seguiram o mesmo exemplo. Além do estímulo ao consumo consciente e sustentável, regras punitivas à geração de resíduos também têm sido adotadas, como um sistema de pagamentos progressivos, através da elevação do valor pago pela maior geração de resíduos.
IHU On-Line – O atual modelo de agricultura industrial desperdiça anualmente um terço dos alimentos produzidos para consumo humano, algo em torno de 1,3 bilhão de toneladas anuais, conforme a FAO. O relatório Alimentos e mudança climática: o elo esquecido, da organização Grain, estima que entre 44% e 55% dos gases de efeito estufa são provocados pelo sistema agroalimentar global, com a soma das emissões decorrentes do desmatamento, da produção agrícola em si, do processamento, transporte e empacotamento dos alimentos e dos desperdícios gerados pela cadeia. O que pode ser dito sobre estes dados?
Paulo Waquil – Eu não gosto destes rótulos que contrapõem dois tipos de agricultura, uma boa e outra má, uma focada nos mercados locais e outra globalizada. Eu considero que sempre tivemos uma grande heterogeneidade na agricultura, que se mantém. E os distintos sistemas produtivos, as diferentes escalas de produção, os diversos canais de comercialização, todos são importantes e necessários para atender as demandas hoje existentes, mas todos têm seus problemas e desafios.
São muitos os agricultores familiares que operam em pequena escala, mas também fazem parte de grandes cadeias com inserção global. São muitos os agricultores familiares que demandam práticas e tecnologias apropriadas para um novo contexto de maior escassez de mão de obra no campo e de restrições ambientais.
Cada situação merece análise, um bom diagnóstico e recomendações específicas. Há estudos que demonstram que uma agricultura em maior escala, ou mais tecnificada, utiliza agrotóxicos de forma mais intensiva; por outro lado, uma agricultura desenvolvida em áreas marginais pode provocar maior desmatamento, erosão e perda de solo, ou deterioração da qualidade da água. Uma série de estudos demonstra estas relações ambíguas entre tecnificação e degradação ou entre escala e degradação. Por isso, considero fundamental compreender os problemas e desafios que cada situação nos impõe. Avanços tecnológicos que permitem a redução no uso de insumos, como, por exemplo, o controle biológico de pragas e a fixação de nitrogênio pela inoculação de bactérias fixadoras em leguminosas são recomendações já amplamente utilizadas no Brasil, possibilitando a redução no uso de agrotóxicos e fertilizantes.
Por isso, não considero que a escolha seja simplesmente um modelo ou outro; nos mais diversos modelos é imprescindível pensar nas diversas dimensões da sustentabilidade, o que pode começar pela redução das perdas e desperdícios — como vínhamos discutindo nas questões anteriores.
IHU On-Line – A ONU tem publicado relatórios em que reconhece, em determinadas situações, a maior produtividade de uma agricultura ecológica estruturada na proximidade entre os locais de produção e de consumo na comparação com a agricultura industrial intensiva, devido, justamente, à diminuição em termos de perdas de alimentos. Como interpretar essa informação?
Paulo Waquil – Novamente, estes dados são muito controversos. Há estudos que validam tais diferenças, outros que as refutam. Há estudos que mostram maior produtividade da produção orgânica, outros que apontam que, mesmo com menor produtividade, o que está em jogo é o menor impacto ambiental. Outro ponto importante é que maior produtividade não é, necessariamente, indicação de maior rentabilidade. Portanto, acho que não devemos tomar friamente alguns números, sem entender dimensões mais amplas destes processos.
Não se deve comparar a produtividade da terra ou da mão de obra simplesmente em termos da produção ou da renda gerada por hectare ou por trabalhador, pois os sistemas de produção e os produtos gerados podem diferir substancialmente. Mais do que a simples comparação, o importante é ressaltar que os sistemas de produção orgânica vêm se consolidando, vêm recebendo maior atenção das políticas públicas, vêm sendo cada vez mais valorizados pelos consumidores. Atualmente, há produtores que convertem seus sistemas produtivos para sistemas orgânicos pelas mais variadas motivações, seja pela redução de custos, pela menor dependência na aquisição de insumos, pela ampliação do mercado, pela possibilidade de obtenção de renda satisfatória ou pela consciência ambiental.
IHU On-Line – Qual é a relação entre qualidade do alimento e distância percorrida do campo até a mesa?
Paulo Waquil – Quanto menor a distância, menor a necessidade de pontos de controle e monitoramento. Geralmente, nas cadeias curtas citadas no início desta entrevista, que se inserem nos chamados mercados de proximidade, as relações são do tipo “face-to-face” entre produtores e consumidores. Isso implica em conhecimento e confiança construídos ao longo do tempo. São relações recorrentes, mas cada vez menos frequentes nos grandes centros urbanos. Algumas feiras de produtores ainda ilustram a importância destes mercados de proximidade.
Nos grandes centros, em vista das mudanças no ritmo de vida e nos padrões de consumo, cada vez mais são demandados produtos prontos, ou pré-prontos para o consumo, produtos práticos e convenientes, produtos que passam por longas cadeias de produção. Por exemplo, nestes centros urbanos, o consumo de laranjas in natura tem mostrado sinais de redução em contraposição com o aumento no consumo de sucos prontos (ou na verdade néctar, para usar o termo correto, já que são reconstituídos a partir de suco concentrado e adicionados de estabilizantes, corantes e aromatizantes).
Os exemplos de fraudes no setor leiteiro, amplamente divulgados no Rio Grande do Sul nos últimos anos, reforçam a importância dos pontos de controle e monitoramento. Aqui é muito importante destacar o papel do Estado não apenas no fomento ao setor produtivo, através do crédito, da pesquisa e da assistência técnica, como tradicionalmente atuava. É fundamental compreender os novos papéis do Estado, na regulação dos mercados, na garantia de preços e, principalmente, da qualidade dos produtos.
IHU On-Line – A produção ecológica destinada a mercados locais é a alternativa econômica mais apropriada para o pequeno produtor rural?
Paulo Waquil – É certo que uma produção de base ecológica pode ser mais adequada, não apenas como alternativa econômica, mas também ambiental. E digo que não somente para os pequenos, mas também para médios e, porque não, para os grandes produtores. Se o produtor puder evitar o uso de inseticidas, aplicando armadilhas luminosas ou o controle biológico para reduzir danos causados por insetos, será ótimo do ponto de vista ambiental e de redução de custos; mas é necessário informação e recursos para sua implementação.
Entretanto, não considero como um modelo único e generalizável para todos os produtores. E alguns cuidados temos de ter, no sentido de evitar rotulagens sobre o que é bom ou ruim.
Enquanto na produção convencional a contaminação pode ocorrer pelo uso excessivo de agrotóxicos ou pelo desrespeito dos prazos de carência, na produção orgânica há situações de contaminação, por exemplo, por uso excessivo de cama de aviário. Eu entendo que o problema não está num modelo ou noutro, mas nas condições em que eles são implementados. Aspectos como os recursos disponíveis, acesso à informação e acompanhamento técnico, impactos ambientais, custos incorridos, a renda gerada e a acesso a mercados, são de grande importância. E, fundamentalmente, os produtores precisam ter direito à escolha.
IHU On-Line – Em que medida o desperdício de alimentos está relacionado com as preferências e o comportamento individual dos consumidores? Que ações os consumidores podem adotar para reduzir o desperdício?
Paulo Waquil – Como conceituado antes, as perdas ocorrem ao longo dos processos de produção e comercialização, e não dependem do comportamento dos consumidores. Mas o desperdício sim, pois ocorre a partir dos alimentos descartados após estarem prontos para o consumo. Mudanças no comportamento não são fáceis, nem rápidas. A redução no desperdício pode ocorrer através do planejamento mais ajustado das compras feitas pela família, de acordo com suas necessidades, evitando excessos que poderiam provocar desperdícios de produtos que perdem a validade ou que se tornam impróprios para o consumo. A valorização dos aspectos nutricionais e da sanidade, em vez da aparência, também é uma medida a ser lembrada, já citada antes. Nem sempre a fruta mais bonita é a mais saborosa. Ainda o aproveitamento das sobras na elaboração de novos pratos é um hábito a ser, cada vez mais, incentivado.
Finalmente, agora não mais relacionado ao comportamento individual dos consumidores, convém retomar a importância de políticas de estímulo à redução na geração de resíduos e ao manejo adequado dos mesmos. Se os alimentos não forem mais próprios para o consumo humano, a destinação para o consumo animal e para a produção de energia certamente ajuda a reduzir os impactos ambientais.
Em Porto Alegre, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana – DMLU coordena um projeto que aproxima restaurantes e suinocultores para a utilização de resíduos alimentares na alimentação animal. É um projeto vantajoso para todos, no sentido de reduzir o desperdício, a taxa de coleta de resíduos para os restaurantes, os custos de produção (particularmente de alimentação) para os suinocultores, a quantidade de resíduos coletada pelo DMLU e os impactos ambientais. Ações como estas podem ser vistas como exemplares na gestão de resíduos alimentares, mesmo com as dificuldades e desafios para o bom funcionamento do projeto. Este é o tema da dissertação que citei no início da entrevista.
IHU On-Line – Gostaria de adicionar algo?
Paulo Waquil – Que este tema seja, cada vez mais, de interesse e motivação dos jovens, em todas as áreas do conhecimento, em trabalhos multi ou interdisciplinares, conduzindo a trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses que promovam cada vez mais a ampliação do debate e a busca por alternativas para enfrentar os desafios, que são enormes, seja na produção ou agroindustrialização de alimentos, na redução de perdas e desperdícios ou na compreensão do funcionamento dos mercados agroalimentares.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
(IHU On-Line)
“No Brasil, há estimativas da produção de mais de 180 mil toneladas de resíduos sólidos por dia, dos quais mais da metade é de resíduos orgânicos, compreendendo principalmente as perdas e desperdícios de alimentos. Estes resíduos, além dos aspectos econômicos envolvidos, causam sérios danos ambientais e, portanto, requerem maior atenção”, alerta o economista agrícola Paulo Waquil nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Na entrevista, ele aborda o consumo sustentável de alimentos, a necessidade de redução destes resíduos gerados por perdas ou desperdício, a adoção de políticas públicas capazes de impor restrições a estas práticas e facilitar a distribuição de alimentos que seriam descartados, o papel do Estado como regulador de mercados e ente garantidor de preços e qualidade dos produtos consumidos, entre outros pontos.
Waquil ressalta que a adoção de uma postura ecológica e economicamente sustentável que privilegie o aproveitamento dos alimentos por seus aspectos nutricionais, e não apenas estéticos, pressupõe uma mudança comportamental significativa. “As mudanças no comportamento dos consumidores não são rápidas, e geralmente requerem incentivos. A maior conscientização dos consumidores e a adoção de metas por alguns governos já têm trazido alguns resultados. Por exemplo, o Reino Unido já possui regulamentação com este propósito desde o ano 2000. Outros países europeus, como a Holanda, a França, a Áustria e a Suécia, e asiáticos, como o Japão e a Coreia do Sul, também seguiram o mesmo exemplo. Além do estímulo ao consumo consciente e sustentável, regras punitivas à geração de resíduos também têm sido adotadas, como um sistema de pagamentos progressivos, através da elevação do valor pago pela maior geração de resíduos.”
Paulo Dabdab Waquil é graduado em Agronomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, possui mestrado em Economia Rural pela mesma instituição e doutorado em Economia Agrícola pela University of Wisconsin, Madison – Estados Unidos. Atualmente é professor associado da UFRGS. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia Agrária, e pesquisa principalmente os temas desenvolvimento rural, política agrícola, mercados agrícolas, comercialização agrícola e cadeias agroindustriais.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – A partir dos resultados constatados pela pesquisa em conjunto realizada entre o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural – PGDR da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, o que pode ser dito sobre a agroindústria no Brasil?
Paulo Waquil - O projeto que realizamos através de um acordo de cooperação técnica entre IPEA, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e UFRGS teve como objetivo geral um conjunto de análises aprofundadas sobre os dados do último Censo Agropecuário e culminou com a publicação do livro Aspectos Multidimensionais da Agricultura Brasileira: diferentes visões do Censo Agropecuário 2006, editado pelo IPEA neste ano de 2014. Um dos estudos realizados tratou do perfil da agroindústria rural no país, e aqui é fundamental compreender o conceito de agroindústria rural adotado pelo IBGE: refere-se “às atividades de transformação e beneficiamento de produtos de origem animal ou vegetal, em instalações próprias, comunitárias ou de terceiros, com matérias-primas produzidas no próprio estabelecimento ou adquiridas de terceiros, desde que a destinação final seja dada pelo próprio produtor”.
Portanto, o projeto não tratou da agroindústria como um todo, das grandes cadeias ou das empresas que atuam no setor, não focou nas relações setoriais entre agricultura, indústria e distribuição, em seus encadeamentos e relações de coordenação. O projeto tratou especificamente da análise das atividades de transformação e beneficiamento realizadas nas unidades de produção, geralmente em pequena escala, com a finalidade de conservar alimentos, reduzir perdas, agregar valor, gerar renda complementar, ou até mesmo criar mercados alternativos.
Sobre o perfil desta agroindústria rural, percebe-se uma grande diversidade de situações, com diferenciações regionais, de produtos, de escala, além de diferenças marcantes entre os estabelecimentos familiares e não familiares. A maioria destas atividades ocorre inicialmente na informalidade, com a transformação e beneficiamento de pequenos excedentes de produção e o armazenamento para consumo pela família ao longo do ano ou a colocação em mercados locais. Em vários casos, na medida em que estes produtos beneficiados são reconhecidos e valorizados, a produção é ampliada e passa a atender outros mercados. Um exemplo é a utilização de frutas colhidas no período de safra, processadas na forma de doces e geleias, para conservação e utilização por um período mais longo, seja pela própria família ou através da comercialização nos mercados próximos.
Assim, o perfil traçado é de um número bastante significativo compondo uma grande diversidade de situações, já que o Censo oferece informações sobre 32 produtos beneficiados nos estabelecimentos rurais que apresentam expressão nas cinco grandes regiões brasileiras. De acordo com os dados censitários, 16,7% dos aproximadamente 5,1 milhões de estabelecimentos rurais no Brasil transformaram ou beneficiaram alguma matéria-prima. Entretanto, estas atividades predominam nas Regiões Sul e Nordeste, onde a agricultura familiar tem maior importância.
IHU On-Line – Que diferenças regionais podem ser apontadas neste perfil?
Paulo Waquil - As variações regionais podem estar ligadas às diferenças na oferta de matérias-primas, influenciadas por condições de solo e clima, mas principalmente são compreendidas por diferenças de hábitos alimentares, cultura e tradição. Por exemplo, produtos derivados da cana-de-açúcar, como cachaça e rapadura, e da mandioca, como a farinha e a tapioca, são muito mais presentes na Região Nordeste; 67% dos estabelecimentos rurais que elaboraram farinha de mandioca são do Nordeste do Brasil. Por outro lado, produtos como doces e geleias elaborados a partir de frutas e embutidos, como linguiças, copas e salames, são muito mais presentes na Região Sul; nestes casos, 78% dos estabelecimentos que produziram doces e geleias e 98% dos estabelecimentos que produziram embutidos estão na Região Sul. Já a produção de queijos também tem grande importância, mas ocorre de forma mais desconcentrada, em todas as regiões do país.
Um ponto comum é a predominância da utilização de matérias-primas próprias, com pouca utilização de matérias-primas adquiridas de terceiros. Além disso, a produção ocorre em pequena escala e o direcionamento da produção se dá principalmente para o consumo da família ou venda direta ao consumidor, eliminando ou reduzindo a presença de intermediários no processo de comercialização. Entretanto, em alguns casos onde ocorre maior concentração da produção, como no caso da farinha de mandioca no Norte e Nordeste, a participação de intermediários ainda é marcante, fazendo o escoamento para outras regiões do país.
Outro aspecto importante a destacar, e que tem sido foco de estudo por parte de alguns pesquisadores, é a valorização da tradição, do “saber-fazer”, mas que ocorre paralelo a um processo de inovação neste segmento, processo este que leva a uma maior diferenciação de produtos regionais ou coloniais que chegam aos mercados.
IHU On-Line – Como o pequeno produtor e a agricultura familiar se inserem na agroindústria brasileira?
Paulo Waquil – Nas últimas décadas se consolidou um forte sistema agroindustrial, passando por vários elos desde o fornecimento de insumos, a produção de matérias-primas, o processamento ou industrialização, a distribuição no atacado e no varejo, até chegar ao consumidor final. Neste sistema, existem cadeias que se caracterizam por forte concentração, dominadas por grandes empresas, geralmente nos elos da industrialização e do varejo, que criam relações de dependência e de subordinação dos agricultores familiares. Exemplos dessa situação são as cadeias de aves, suínos e tabaco na Região Sul, que estabelecem relações contratuais com os agricultores, os quais recebem os insumos, seguem pacotes tecnológicos, têm acompanhamento técnico e garantia para colocação de seus produtos no mercado. Por estas relações contratuais, as incertezas são reduzidas, mas as margens de ganho dos agricultores são pequenas, o que é apresentado na literatura como o “squezze” da agricultura.
Outra situação é a de cadeias menos consolidadas, onde as relações contratuais são mais frágeis ou inexistentes, e as transações ocorrem através de relações de mercado. Aqui as relações não são de longo prazo, e as incertezas são maiores. Mas os agricultores podem ter mais opções, reduzindo a condição de dependência. Exemplos dessa outra situação podem ser tomados nas cadeias de grãos ou de frutas.
Mas, retomando o foco do nosso projeto citado na primeira pergunta, existem as cadeias curtas, que reassumem importância maior, como alternativa de comercialização. Estas cadeias envolvem a maior aproximação entre produtores e consumidores, diferentemente das situações apontadas acima, o que não é algo novo, mas que tem sido revalorizado. Devido à pressão que muitos agricultores têm sofrido, particularmente através dos elevados custos de produção e dos reduzidos preços recebidos pelos seus produtos, a busca por alternativas tem sido de grande importância. O papel das agroindústrias rurais familiares, visando à agregação de valor aos produtos, à geração de emprego e renda e à criação de novos mercados é uma tendência percebida em todas as regiões.
Em cada situação, o papel do Estado deve ser pensado para atender tais peculiaridades, seja na regulação dos mercados e das relações contratuais, no acompanhamento e garantia de preços satisfatórios, no estabelecimento de normas sanitárias e ambientais compatíveis com a realidade destes agricultores, no fomento e apoio técnico ou financeiro, ou mesmo na criação de mercados institucionais. Podemos citar alguns programas implementados no Brasil que visam atender este público, como o PRONAF Agroindústria , o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE.
IHU On-Line – Que informações a pesquisa revela sobre perdas e desperdício de alimentos no Brasil?
Paulo Waquil – A pesquisa não tratou especificamente do tema das perdas e desperdícios de alimentos, mas sem dúvida alguma está relacionada a ele. Atualmente estou orientando um trabalho de mestrado sobre estas perdas e desperdícios, e há evidências de uma situação preocupante em todo o mundo. Em primeiro lugar, é importante distinguir os dois termos. Perdas se referem à diminuição da massa (quantidade) ou do valor nutricional (qualidade) dos alimentos, causadas por ineficiências ao longo das cadeias de produção e distribuição. Já o desperdício se refere àqueles alimentos que estavam apropriados para o consumo, mas que foram descartados por serem mantidos além do prazo de validade, por terem estragado após o preparo, ou simplesmente por não terem sido consumidos.
No Brasil, há estimativas da produção de mais de 180 mil toneladas de resíduos sólidos por dia, dos quais mais da metade é de resíduos orgânicos, compreendendo principalmente estas perdas e desperdícios de alimentos. Estes resíduos, além dos aspectos econômicos envolvidos, causam sérios danos ambientais e, portanto, requerem maior atenção.
Em geral, os trabalhos que abordam o tema das perdas e desperdícios de alimentos enfatizam, em ordem decrescente de importância: a necessidade de redução da geração de resíduos; a facilitação da distribuição de alimentos descartados que ainda sejam comestíveis, por exemplo, por meio de bancos de alimentos; a destinação para a alimentação animal; a utilização como adubo ou fonte para a geração de energia; e, finalmente, a destinação final em aterros sanitários.
Então o nosso projeto sobre as agroindústrias rurais, possibilitando aos produtores a transformação e beneficiamento de produtos de origem animal ou vegetal nos estabelecimentos rurais e particularmente a conservação dos produtos para consumo ao longo de um período mais extenso, pode ter impacto relevante já no primeiro aspecto citado acima, reduzindo as perdas de matérias-primas agrícolas e a geração de resíduos orgânicos, além dos pontos já abordados anteriormente como a agregação de valor, geração de renda e criação de mercados.
IHU On-Line – Há, em termos mundiais, um crescimento no movimento de compra de alimentos que seriam descartados devido à sua aparência ou tamanho, baseado no consumo sustentável? Em que regiões este movimento mais se destaca?
Paulo Waquil – Os dados sobre a produção de resíduos orgânicos e seus impactos econômicos e ambientais são alarmantes em todo o mundo, mas as estimativas são muito variáveis. Em geral, nos países mais desenvolvidos, os desperdícios de alimentos são maiores, mas é justamente nestes países onde iniciativas como estas têm sido adotadas.
Tais iniciativas se enquadram no segundo aspecto citado na questão anterior, referente à facilitação da distribuição de alimentos descartados. São iniciativas de grande importância, que requerem mudanças comportamentais. São iniciativas que consideram a valorização dos aspectos nutricionais e da sanidade dos produtos, em vez de dar maior importância à aparência ou tamanho. Só que as mudanças no comportamento dos consumidores não são rápidas, e geralmente requerem incentivos.
A maior conscientização dos consumidores e a adoção de metas por alguns governos já têm trazido alguns resultados. Por exemplo, o Reino Unido já possui regulamentação com este propósito desde o ano 2000. Outros países europeus, como a Holanda, a França, a Áustria e a Suécia, e asiáticos, como o Japão e a Coreia do Sul, também seguiram o mesmo exemplo. Além do estímulo ao consumo consciente e sustentável, regras punitivas à geração de resíduos também têm sido adotadas, como um sistema de pagamentos progressivos, através da elevação do valor pago pela maior geração de resíduos.
IHU On-Line – O atual modelo de agricultura industrial desperdiça anualmente um terço dos alimentos produzidos para consumo humano, algo em torno de 1,3 bilhão de toneladas anuais, conforme a FAO. O relatório Alimentos e mudança climática: o elo esquecido, da organização Grain, estima que entre 44% e 55% dos gases de efeito estufa são provocados pelo sistema agroalimentar global, com a soma das emissões decorrentes do desmatamento, da produção agrícola em si, do processamento, transporte e empacotamento dos alimentos e dos desperdícios gerados pela cadeia. O que pode ser dito sobre estes dados?
Paulo Waquil – Eu não gosto destes rótulos que contrapõem dois tipos de agricultura, uma boa e outra má, uma focada nos mercados locais e outra globalizada. Eu considero que sempre tivemos uma grande heterogeneidade na agricultura, que se mantém. E os distintos sistemas produtivos, as diferentes escalas de produção, os diversos canais de comercialização, todos são importantes e necessários para atender as demandas hoje existentes, mas todos têm seus problemas e desafios.
São muitos os agricultores familiares que operam em pequena escala, mas também fazem parte de grandes cadeias com inserção global. São muitos os agricultores familiares que demandam práticas e tecnologias apropriadas para um novo contexto de maior escassez de mão de obra no campo e de restrições ambientais.
Cada situação merece análise, um bom diagnóstico e recomendações específicas. Há estudos que demonstram que uma agricultura em maior escala, ou mais tecnificada, utiliza agrotóxicos de forma mais intensiva; por outro lado, uma agricultura desenvolvida em áreas marginais pode provocar maior desmatamento, erosão e perda de solo, ou deterioração da qualidade da água. Uma série de estudos demonstra estas relações ambíguas entre tecnificação e degradação ou entre escala e degradação. Por isso, considero fundamental compreender os problemas e desafios que cada situação nos impõe. Avanços tecnológicos que permitem a redução no uso de insumos, como, por exemplo, o controle biológico de pragas e a fixação de nitrogênio pela inoculação de bactérias fixadoras em leguminosas são recomendações já amplamente utilizadas no Brasil, possibilitando a redução no uso de agrotóxicos e fertilizantes.
Por isso, não considero que a escolha seja simplesmente um modelo ou outro; nos mais diversos modelos é imprescindível pensar nas diversas dimensões da sustentabilidade, o que pode começar pela redução das perdas e desperdícios — como vínhamos discutindo nas questões anteriores.
IHU On-Line – A ONU tem publicado relatórios em que reconhece, em determinadas situações, a maior produtividade de uma agricultura ecológica estruturada na proximidade entre os locais de produção e de consumo na comparação com a agricultura industrial intensiva, devido, justamente, à diminuição em termos de perdas de alimentos. Como interpretar essa informação?
Paulo Waquil – Novamente, estes dados são muito controversos. Há estudos que validam tais diferenças, outros que as refutam. Há estudos que mostram maior produtividade da produção orgânica, outros que apontam que, mesmo com menor produtividade, o que está em jogo é o menor impacto ambiental. Outro ponto importante é que maior produtividade não é, necessariamente, indicação de maior rentabilidade. Portanto, acho que não devemos tomar friamente alguns números, sem entender dimensões mais amplas destes processos.
Não se deve comparar a produtividade da terra ou da mão de obra simplesmente em termos da produção ou da renda gerada por hectare ou por trabalhador, pois os sistemas de produção e os produtos gerados podem diferir substancialmente. Mais do que a simples comparação, o importante é ressaltar que os sistemas de produção orgânica vêm se consolidando, vêm recebendo maior atenção das políticas públicas, vêm sendo cada vez mais valorizados pelos consumidores. Atualmente, há produtores que convertem seus sistemas produtivos para sistemas orgânicos pelas mais variadas motivações, seja pela redução de custos, pela menor dependência na aquisição de insumos, pela ampliação do mercado, pela possibilidade de obtenção de renda satisfatória ou pela consciência ambiental.
IHU On-Line – Qual é a relação entre qualidade do alimento e distância percorrida do campo até a mesa?
Paulo Waquil – Quanto menor a distância, menor a necessidade de pontos de controle e monitoramento. Geralmente, nas cadeias curtas citadas no início desta entrevista, que se inserem nos chamados mercados de proximidade, as relações são do tipo “face-to-face” entre produtores e consumidores. Isso implica em conhecimento e confiança construídos ao longo do tempo. São relações recorrentes, mas cada vez menos frequentes nos grandes centros urbanos. Algumas feiras de produtores ainda ilustram a importância destes mercados de proximidade.
Nos grandes centros, em vista das mudanças no ritmo de vida e nos padrões de consumo, cada vez mais são demandados produtos prontos, ou pré-prontos para o consumo, produtos práticos e convenientes, produtos que passam por longas cadeias de produção. Por exemplo, nestes centros urbanos, o consumo de laranjas in natura tem mostrado sinais de redução em contraposição com o aumento no consumo de sucos prontos (ou na verdade néctar, para usar o termo correto, já que são reconstituídos a partir de suco concentrado e adicionados de estabilizantes, corantes e aromatizantes).
Os exemplos de fraudes no setor leiteiro, amplamente divulgados no Rio Grande do Sul nos últimos anos, reforçam a importância dos pontos de controle e monitoramento. Aqui é muito importante destacar o papel do Estado não apenas no fomento ao setor produtivo, através do crédito, da pesquisa e da assistência técnica, como tradicionalmente atuava. É fundamental compreender os novos papéis do Estado, na regulação dos mercados, na garantia de preços e, principalmente, da qualidade dos produtos.
IHU On-Line – A produção ecológica destinada a mercados locais é a alternativa econômica mais apropriada para o pequeno produtor rural?
Paulo Waquil – É certo que uma produção de base ecológica pode ser mais adequada, não apenas como alternativa econômica, mas também ambiental. E digo que não somente para os pequenos, mas também para médios e, porque não, para os grandes produtores. Se o produtor puder evitar o uso de inseticidas, aplicando armadilhas luminosas ou o controle biológico para reduzir danos causados por insetos, será ótimo do ponto de vista ambiental e de redução de custos; mas é necessário informação e recursos para sua implementação.
Entretanto, não considero como um modelo único e generalizável para todos os produtores. E alguns cuidados temos de ter, no sentido de evitar rotulagens sobre o que é bom ou ruim.
Enquanto na produção convencional a contaminação pode ocorrer pelo uso excessivo de agrotóxicos ou pelo desrespeito dos prazos de carência, na produção orgânica há situações de contaminação, por exemplo, por uso excessivo de cama de aviário. Eu entendo que o problema não está num modelo ou noutro, mas nas condições em que eles são implementados. Aspectos como os recursos disponíveis, acesso à informação e acompanhamento técnico, impactos ambientais, custos incorridos, a renda gerada e a acesso a mercados, são de grande importância. E, fundamentalmente, os produtores precisam ter direito à escolha.
IHU On-Line – Em que medida o desperdício de alimentos está relacionado com as preferências e o comportamento individual dos consumidores? Que ações os consumidores podem adotar para reduzir o desperdício?
Paulo Waquil – Como conceituado antes, as perdas ocorrem ao longo dos processos de produção e comercialização, e não dependem do comportamento dos consumidores. Mas o desperdício sim, pois ocorre a partir dos alimentos descartados após estarem prontos para o consumo. Mudanças no comportamento não são fáceis, nem rápidas. A redução no desperdício pode ocorrer através do planejamento mais ajustado das compras feitas pela família, de acordo com suas necessidades, evitando excessos que poderiam provocar desperdícios de produtos que perdem a validade ou que se tornam impróprios para o consumo. A valorização dos aspectos nutricionais e da sanidade, em vez da aparência, também é uma medida a ser lembrada, já citada antes. Nem sempre a fruta mais bonita é a mais saborosa. Ainda o aproveitamento das sobras na elaboração de novos pratos é um hábito a ser, cada vez mais, incentivado.
Finalmente, agora não mais relacionado ao comportamento individual dos consumidores, convém retomar a importância de políticas de estímulo à redução na geração de resíduos e ao manejo adequado dos mesmos. Se os alimentos não forem mais próprios para o consumo humano, a destinação para o consumo animal e para a produção de energia certamente ajuda a reduzir os impactos ambientais.
Em Porto Alegre, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana – DMLU coordena um projeto que aproxima restaurantes e suinocultores para a utilização de resíduos alimentares na alimentação animal. É um projeto vantajoso para todos, no sentido de reduzir o desperdício, a taxa de coleta de resíduos para os restaurantes, os custos de produção (particularmente de alimentação) para os suinocultores, a quantidade de resíduos coletada pelo DMLU e os impactos ambientais. Ações como estas podem ser vistas como exemplares na gestão de resíduos alimentares, mesmo com as dificuldades e desafios para o bom funcionamento do projeto. Este é o tema da dissertação que citei no início da entrevista.
IHU On-Line – Gostaria de adicionar algo?
Paulo Waquil – Que este tema seja, cada vez mais, de interesse e motivação dos jovens, em todas as áreas do conhecimento, em trabalhos multi ou interdisciplinares, conduzindo a trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses que promovam cada vez mais a ampliação do debate e a busca por alternativas para enfrentar os desafios, que são enormes, seja na produção ou agroindustrialização de alimentos, na redução de perdas e desperdícios ou na compreensão do funcionamento dos mercados agroalimentares.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
(IHU On-Line)
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