Os Acordos de Cancún representam continuidade e avanço em relação ao Acordo de Copenhague. Demos passos importantes na COP16, na direção certa, mas ficamos ainda longe de um tratado global sobre mudança climática.
O primeiro benefício das decisões da COP16 foi paradoxal: as delegações oficializaram o Acordo de Copenhague no que ele tinha de essencial e positivo, embora a maioria absoluta o continuasse a rejeitar com retórica carregada. Mas o Acordo de Copenhague era uma condição para que se pudesse ter avanço em Cancún. Afinal, as metas voluntárias de redução de emissões de grandes emissores fora do Protocolo de Quioto, o Fundo Verde, o mecanismo de transparência para ações financiadas com recursos próprios, entre outras provisões importantes, faziam parte dele. Foram incorporadas ao documento do grupo de trabalho que negocia um novo tratado dentro da Convenção do Clima, o AWG-LCA, e aprovadas formalmente pelo plenário da COP16.
O segundo passo importante foi evitar o colapso do Protocolo de Quioto, por “default”, ou por abandono de países do seu Anexo I, como Japão, Rússia, Nova Zelândia e Austrália. A saída desses países representaria, para todos os efeitos, a denúncia do tratado, que não teria um segundo período de compromissos. A partir de 2012, o Protocolo se tornaria inaplicável. Tenho dito que não compartilho a defesa que países e ONGs fazem do Protocolo de Quioto. Estou convencido que o Protocolo de Quioto não tem relevância nem em comparação ao Acordo de Copenhague, que era voluntário. Ele deve ser abandonado para bem do futuro da política global para mudança climática, mas no quadro da negociação de um novo tratado global, que inclua a todos os países, com metas compulsórias, porém diferenciadas. O seu colapso produziria um vazio legal e uma crise que poderiam afetar de forma muito negativa o quadro multilateral de negociação da política global do clima.
A decisão evitou a rejeição formal de um segundo período de compromisso e propôs que que se tenha uma solução em tempo suficiente para que não haja defasagem nas metas de redução de emissões a partir de 2012, quando vence o primeiro período de compromisso. Vamos ser claros, essa prorrogação pode tanto significar a manutenção do Protocolo, quanto sua superação. Os países que quase provocaram o seu colapso em Cancún, não vão mudar de ideia. Aceitarão um segundo período de compromisso, se for aprovado um acordo comparável para os países que não estão cobertos por ele e são grandes emissores presentes ou potenciais: EUA, China, índia, Brasil, Coréia do Sul, Indonésia, México, África do Sul, entre outros. Se for mesmo comparável, o Protocolo seria redundante. Países que jamais aceitaram discutir a superação do Protocolo de Quioto, como China e Brasil, passaram a admitir que, no futuro, haverá apenas um tratado válido para todos. O negociador oficial do Brasil, embaixador Luiz Alberto Figueiredo me disse, em Cancún, que está claro para todas as Partes da Convenção do Clima que, no futuro haverá só um tratado que inclua a todos, com obrigações diferenciadas. Mas ninguém se arrisca a dizer quando essa decisão será tomada. Pode ser em Durban, África do Sul, no ano que vem? Pode, mas à luz da conjuntura atual, não é provável.
O Acordo de Cancún foi além. Superou alguns impasses técnicos e políticos em temas cuja discussão havia progredido Copenhague, mas não chegou a uma decisão final satisfatória: REDD+, adaptação, financiamento e transparência (monitoramento, relatório e verificação).
No caso do REDD+, o texto aprovado em Cancún foi apoiado pela maioria dos especialistas no tema. Não é, ainda, um mecanismo operacional. Mas as principais linhas mestras desejadas por aqueles que defendem esse tipo de financiamento ficaram acertadas. Foi criado formalmente o Fundo Verde, cuja meta é atingir US$ 100 bilhões ao ano, em 2020. Uma proposta bem recebida em Copenhague, mas que acabou não sendo formalizada.
No tema da adaptação, pendências de financiamento e institucionalização foram resolvidas no plano geral. O problema de governança no Fundo de Adaptação foi encaminhado, embora não tenha sido resolvido em definitivo. O Banco Mundial ficará como responsável (trustee) interino, por três anos. Nesse período espera-se que se defina uma instituição responsável em definitivo. Foi aprovado o termo de referência para avaliação do Fundo a cada três anos. A reivindicação dos países mais vulneráveis de se criar uma instituição internacional para tratar de perdas e danos foi bem encaminhada. Definiu-se um quadro de referências e um Conselho executivo para Adaptação. Em tecnologia e transferência de tecnologia, também se decidiu criar um Comitê Executivo de Tecnologia, que cuidará de implementar o quadro de referências para transferência de tecnologia e uma Rede e Centro de Tecnologia do Clima, uma espécie de redes de redes, que avaliará as necessidades tecnológicas dos países, ajudará na capacitação e articulará a cooperação tecnológica. Falta negociar e aprovar uma série de detalhes que criem uma política com elementos institucionais para sua implementação. Mas politicamente se avançou muito.
Em Copenhague, EUA e China haviam concordado, com a mediação do Brasil e da Índia, numa histórica reunião do BASIC, que seria adotado um sistema de Consulta Internacional e Análise – ICA, paralelo ao MRV, para medição, relatório e verificação das metas do Acordo de Copenhague. Mas ninguém seria capaz de dizer o que era essa ICA. Em Cancún, negociaram uma definição mais precisa e que permite operacionalizá-la como mecanismo de transferência. A operacionalização pode ainda render alguns embates, mas avançou-se mais da metade do caminho para se chegar a um desfecho para dessa discussão. Uma das mais sensíveis do ponto de vista político.
A chave para se entender Cancún e depois de Cancún: a COP16 deu continuidade a um novo estágio, mais avançado, de progresso político nas negociações globais do clima, que teve início em Copenhague. Na COP15, o Acordo de Copenhague, com todos os seus problemas, representou uma mudança de paradigma nas negociações. Deu-se lá a transição de uma fase de negociações com polaridade negativa, em que as decisões sofriam o bloqueio de um grupo crítico de veto, representado pelos maiores emissores fora do Protocolo de Quioto – EUA, China, Brasil e Índia – para uma fase de polaridade positiva, com a remoção desses vetos.
O fim do veto permitiu que, pela primeira vez, todos os grandes emissores apresentassem metas quantificadas de redução de emissões. Metas voluntárias e insuficientes, mas as primeiras jamais admitidas por EUA, China, Brasil e Índia. Como as expectativas eram muito altas e se queria sair de Copenhague com um impossível acordo legalmente vinculante, com todas as questões substantivas resolvidas, criou-se um clima de tudo ou nada. Este clima foi agravado por uma crise de confiança criada pela atitude conspiratória do primeiro-ministro Lars Locke Rasmussen, que negociou uma saída para Copenhague por fora e pelo alto. Nesse ambiente envenenado por desconfianças e incertezas, em nada ajudou os chefes de governo que negociaram o Acordo de Copenhague terem abandonado a reunião antes do final e sem darem instrução política adequada a suas delegações. Numa sessão convulsionada e sob presidência muito inepta, o Acordo acabou ficando num vazio institucional. Não foi oficialmente rejeitado, nem aprovado. A plenária apenas tomou nota dele. Com esse status de informalidade, ele não tinha função nas negociações formais da Convenção do Clima, a UNFCC. Ao longo deste ano, negociações conduzidas com habilidade permitiram que os termos do Acordo de Copenhague fossem inseridos no documento central da Convenção, chamado de LCA.
Chega-se, então a Cancún, com uma base para avançar mais nos entendimentos sobre os componentes do LCA, que haviam sido negociados quase a contento em Copenhague, mas o ambiente de desconfiança acabou levando novamente a impasses. A presidência mexicana, cuja estratégia começou a ser imaginada pelo presidente Felipe Calderón ainda no calor dos embates na gélida Copenhague, fez uma diferença política crucial. Habilmente conduzida com cautelosa firmeza pela chanceler Patricia Espinosa, conseguiu o essencial para que houvesse avanços em Cancún: restaurar a confiança e regenerar o compromisso dos atores-chave com o processo multilateral de negociações.
A cautela, permitiu que todas as desconfianças e impasses fossem processadas politicamente e que tudo fosse negociado informalmente, sem que um só documento fosse produzido. Regras estritas para o papel dos ministros permitiam que, no plano técnico, grupos de redação fossem trabalhando, porém sem finalizar qualquer documento, sempre à espera da decisão política. Os documentos foram redigidos na forma final só na tarde da sexta-feira. Ao serem divulgados, no final da tarde, surpreenderam os delegados positivamente, por considerarem, no limite, as posições mais importantes de cada grupo de países. Eram claramente um compromisso, a melhor alternativa possível, não a ótima, mas conformavam um grau de consenso que permitiria eliminar qualquer veto relevante.
A restauração da confiança, a participação aberta a todas as delegações em todas as fases da negociação e a transparência com eram tratadas pela presidência propostas e objeções, criou um ambiente inédito de cooperação. A informalidade permitiu incrementar a convivência entre países com interesses opostos e aumentou a disposição de ouvir as posições uns dos outros. A estratégia de negociações informais até a última hora colocou a reunião em uma zona de perigo. Ela podia fracassar por falta de qualquer resultado concreto. Mas terminou viabilizando um acordo sobre textos completos, ao invés de apenas avanços focalizados.
A firmeza da presidente salvou Cancún de um desfecho melancólico como o de Copenhague, onde um punhado de pequenos países vetou a vontade de mais de 100 delegações entre elas as representantes dos maiores emissores de carbono. Diante do pedido da Bolívia de que não fossem adotados os documentos por falta de consenso, a presidente Patricia Espinosa tomou talvez a mais importante decisão política de toda uma geração de COPs: a de que a regra do consenso não significa dar a uns poucos o direito de veto da mais ampla maioria. Não é a regra da maioria simples, de 50% mais um, nem a regra de uma maioria qualificada definida por uma percentual maior que 51% dos votos. Também não é mais a regra da unanimidade. É uma regra de bom senso, dos grandes números: se mais de uma centena de países está a favor e entre eles estão os mais decisivos para o processo de mitigação e de apoio financeiro e técnico às ações de mitigação, somados aos mais vulneráveis na sua grande maioria, há consenso, mesmo quando uns poucos façam objeção aos resultados. Combina grau absoluto de concordância e representatividade dessa concordância.
Política é assim: caminha passo a passo, eliminando vetos, propiciando maior clareza dos interesses envolvidos, criando consensos parciais, em busca do consenso geral. A decisão política sempre começa pelo mais geral, enquanto se continua a divergir em cada questão em particular, nos detalhes de operação e implementação. A adoção de uma política por completo, passível de obediência e implementação, requer um processo de amadurecimento e aproximações sucessivas. Pode levar mais tempo do que a ciência nos dá. Esperemos que não. Está andando mais lentamente que os sinais de mudança climática. Isso pode acabar por acelerar a política. Requer que antes se decida cada novo passo domesticamente. Nisso o processo de negociação multilateral ajuda muito, é um elemento propiciador de mudanças domésticas.
A COP17, em Durban, África do Sul, será o terceiro estágio desta nova fase da política global do clima. Como Cancún precisou de Copenhague para ter o resultado que teve, Durban será alavancada pelos progressos de Copenhague e Cancún. Pode ser a etapa final no longo e penoso caminho rumo a um acordo abrangente, inclusivo e cientificamente substantivo sobre mudança climática? Pode. Mas não é provável. Principalmente se a crise econômica persistir no EUA e na Europa. Menos ainda se ela atingir a economia da China. Mas pode haver bastante avanço nessa direção. Cancún andou devagar na direção certa e deu uma acelerada no final. Dificilmente se perderá a direção em Durban e, provavelmente, andaremos mais rápido, uma vez que a confiança foi restaurada. Várias definições que removem obstáculos no caminho de um novo tratado foram adotadas. Pode não dar para chegar a ele, mas ficaremos bem mais perto desse objetivo.
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FONTE : Sérgio Abranches, do Ecopolítica.(Envolverde/Ecopolítica).
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