Modelo econômico em xeque
Matrizes energéticas no centro do debate
Belo Monte. Símbolo de um modelo ultrapassado
Alternativas e protagonistas
Crise ecológica. Manifestação da crise civilizacional
O paradoxo é sempre mais evidente: por um lado, uma sensibilidade cada vez maior quando o assunto é crise ecológica entre muitos cidadãos; por outro, uma inércia quando se trata de partir para ações concretas ou envolve interesses econômicos.
Esta seção da conjuntura global de 2010, procura reunir as principais questões referentes à temática ambiental, com especial atenção à análise dos limites do modelo neodesenvolvimentista e às alternativas, quer pessoais, quer comunitárias, quer institucionais para fazer frente à crise ecológica e na proposição de um outro estilo de vida.
A crise ecológica é, possivelmente, a manifestação por excelência de uma crise bem maior, mais vasta, mais profunda e mais aguda, denominada crise civilizacional ou epocal, que reverbera nas crises econômico-financeira, ecológica, alimentar, energética e do trabalho. Acrescente-se ainda que o conjunto dessas crises vem acompanhado de uma crise ético-cultural, ou seja, não se trata apenas de uma crise ancorada nas relações de produção, mas também e sobretudo de uma crise do sentido humano que emerge nessa transição de século.
A crise civilizacional exige uma interpretação sistêmica. As várias crises estão interrelacionadas e requerem uma abordagem a partir do paradigma da complexidade, como propõe Edgar Morin. Trata-se de perceber que “não só a parte está no todo, mas também que o todo está na parte”. Tudo está interligado, entrelaçado, e há uma interdependência entre as crises. Nossos problemas não podem mais ser concebidos como separados uns dos outros.
O planeta Terra dá sinais cada vez mais evidentes de esgotamento. Os sistemas físicos e biológicos alteram-se rapidamente como nunca antes aconteceu na história da civilização humana. Desde a publicação do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), em fevereiro de 2007, já não há mais contestação de que o responsável pela evolução acelerada da tragédia ambiental seja a ação antropogênica sobre a Terra. À época, o informe dos pesquisadores e cientistas foi categórico e não deixou espaço para dúvidas ao afirmar de forma contundente – o relatório utilizou a expressão “inequívoca” – que o aquecimento global se deve à intervenção humana sobre o planeta.
As pesquisas e os estudos avançaram desde a publicação do relatório do IPCC, e a situação do mundo daquela época já está claramente defasada. Estudo recente apresentado por pesquisadores afirma que alguns limites planetários já foram ultrapassados. Segundo o estudo, três dos limites já foram transgredidos: o aquecimento global, a extinção de espécies e o ciclo do nitrogênio. Outros quatro estão próximos: uso da água doce, conversão de florestas em plantações, acidificação dos oceanos e ciclo do fósforo.
Segundo o relatório Planeta Vivo 2008, divulgado pelo WWF, nosso consumo dos recursos naturais já excede em 30% a capacidade de o planeta se regenerar. Com outras palavras, a espécie humana já necessita hoje de 1,3 planeta para satisfazer suas necessidades e desejos de consumo. A “pegada ecológica” – indicador da pressão exercida sobre o ambiente está muito forte. A média é 2,2 hectares, mas o espaço disponível para regeneração (biocapacidade) é de apenas 1,8 hectare. Avançamos o sinal. Há quem diga que o estrago já foi feito e o ponto de retorno já passou. Na análise do ambientalista James Lovelock, Gaia – o organismo vivo que é a Terra – está com febre e se nada, e urgentemente, for feito esse quadro poderá evoluir para o estado de coma, ou seja, o equilíbrio planetário entrará em colapso.
É o tipo de desenvolvimento econômico implantado, especialmente, ao longo dos últimos dois séculos, baseado no paradigma do crescimento econômico ilimitado, na ideia de progresso infinito e na concepção de que os recursos naturais seriam inesgotáveis e de que a nossa intervenção sobre a natureza se daria de maneira neutra, que se encontra a razão do impasse que vivemos. Na origem da crise ecológica está o consumo desenfreado. O estilo de vida americano e ocidental – reproduzido em grande parte do continente latino-americano – não é compatível com as possibilidades do nosso Planeta. Veja-se, a título de exemplo, o paradoxo que representa o crescimento da classe média brasileira, tão festejado, mas que é ávida por consumir mais e mais, caminhando, dessa maneira, na contramão da história.
“Essa crise ambiental não veio do nada. Não foi desastre natural, foi causada por homens”, diz Nicholas Stern. Quando se pensa que uma sociedade sustentável é aquela que satisfaz suas necessidades sem diminuir as perspectivas futuras, como define Lester Brown, percebe-se que o nosso modo de produção e de consumo está comprometendo a vida das futuras gerações, ou seja, estamos decidindo a sorte de quem virá depois de nós, deixando-lhes um mundo árido, poluído e feio. Emerge com intensidade crescente a consciência de que qualquer projeto radicalmente alternativo de sociedade não pode desconsiderar a questão ecológica.
Modelo econômico em xeque
No entanto, parece haver uma crônica dissociação entre a consciência planetária que vem se adquirindo acerca da problemática ambiental e o mundo dos políticos e, consequentemente, as políticas que deveriam ser implementadas. Isso se verifica, particularmente, no caso brasileiro.
Mais de uma vez temos chamado a atenção para o descompasso entre as potencialidades brasileiras em termos de implementação de um modelo de desenvolvimento econômico alternativo e as práticas políticas vigentes – mantidas e implementadas por convicção dos governantes de plantão e por pressão de poderosos interesses econômicos, com ramificações no governo e no congresso.
O modelo econômico brasileiro continua referenciado no modelo industrial clássico, que ainda não consegue incorporar o elemento ecológico ou ecossustentável. Esse não parece ser um limite apenas dos políticos, mas também de boa parte da intelectualidade brasileira.
O atual modelo pode ser descrito como neodesenvolvimentista ,e este modelo, evidentemente pela situação em que o Brasil se encontra hoje, tem vantagens que não podem ser negadas, como veremos mais adiante nesta análise. Entretanto, é cego – ou ao menos caolho – em relação à temática ambiental. E nisso reside o limite.
Uma manifestação disso foi o debate público eleitoral. Os projetos e os debates políticos sobre o Brasil que queremos ainda prescindem este aspecto da realidade nacional. O fato é que foi um tema esquecido. A temática ambiental ficou relegada e subordinada à agenda econômica. Pior ainda, a uma agenda dependente de um padrão de desenvolvimento fordista. O modelo de desenvolvimento, tão discutido em termos de seu crescimento econômico, não o foi em termos dos impactos ambientais e sociais, salvo exceções. Estudiosos insistem em ver tremendas potencialidades na questão ecológica e que serão a ponta de lança para uma sociedade sustentável. Ou seja, defendem que o Brasil poderia aproveitar os recursos naturais disponíveis para começar a sentar as bases para uma ecoeconomia. Mas, o desenvolvimento ganhou do meio ambiente nestas eleições.
O debate sobre a reforma do Código Florestal é outro sintoma da preponderância da visão economicista. O novo Código Florestal, se aprovado, pode representar um desastre ecológico, pois ameaça florestas e espécies. Além disso, prejudica os agricultores familiares, incentiva o desmatamento e amplia as anistias a produtores rurais. O parecer do deputado Aldo Rebelo, que inclui as modificações sugeridas, é tão favorável ao agronegócio, que este tem toda a pressa para aprová-lo o mais rapidamente possível. Por outro lado, tem a oposição de ambientalistas, cientistas e movimentos da sociedade. Como não foi aprovado em 2010, certamente a ‘bancada da motosserra’ retorna à carga em 2011.
Matrizes energéticas no centro do debate
Os atuais modos de produzir e de consumir são vorazes em termos energéticos. A civilização moderna é insaciável por energia. A necessidade de energia impostou-se no centro do desenvolvimento neste início do século XXI. Não há país no mundo hoje que não esteja às voltas com a questão energética, que tem hoje o potencial de estrangular qualquer economia. O mundo necessita sempre mais de petróleo, carvão, gás, eletricidade, energia nuclear e agora biocombustíveis.
As matrizes energéticas, via-de-regra, se produzem a partir de uma lógica concentrada e concentradora, além de serem reféns do gigantismo. Basta pensar aqui nas gigantescas estruturas para extração e refino de petróleo, nas hidrelétricas e usinas nucleares.
As matrizes energéticas centralizadoras, poluidoras e devastadoras do meio ambiente – tributárias da sociedade industrial –, apresentam enormes ameaças à biodiversidade e perigos à civilização humana, particularmente no caso da energia nuclear. Cabe alertar que essas matrizes energéticas pertencem cada vez mais ao passado, e o século XXI exigirá outras fontes de energia, renováveis e mais limpas.
A matriz energética brasileira apóia-se largamente no petróleo – e a depender das recentes descobertas do pré-sal esse uso perdurará ainda por muito tempo e contribuem para desviar o foco das atenções – e também sobre a eletricidade, proveniente das mega-hidrelétricas. Ainda que seja uma matriz energética menos poluente que o petróleo e o carvão e renovável, o modelo adotado em nosso país causa enormes impactos ambientais e sociais, com consequências que podem ser irreversíveis.
Neste aspecto, o Brasil, em vez de assumir a vanguarda no processo de descarbonização da economia, investe em matrizes energéticas já superadas. No afã de garantir energia para sustentar o crescimento econômico e o consumo – interno e para exportação dos produtos – o governo brasileiro passou a investir pesadamente na construção de novas hidrelétricas e na retomada do projeto nuclear.
Assim, as atenções se voltam para a nova fronteira energética – a Amazônia – ainda não explorada, mas que ao mesmo tempo se constitui em um paraíso e mina em termos de biodiversidade, cuja floresta é fundamental também para o equilíbrio das chuvas no centro-oeste, sudeste e sul do Brasil, entre outras coisas.
Uma série de usinas hidrelétricas já está em construção ou em fase de licitação ou apenas sendo projetada para a região. Destacam-se as usinas dos Complexos Madeira (Santo Antonio e Jirau), Tapajós e Teles Pires.
Belo Monte. Símbolo de um modelo ultrapassado
Entretanto, a obra mais emblemática está projetada para o rio Xingu, no Pará: a Usina de Belo Monte, cujo início das obras está previsto para abril de 2011, um ano após o seu leilão. Ela é a maior obra de infraestrutura já realizada no país desde a construção da Itaipu Binacional e o terceiro maior empreendimento hidrelétrico do planeta, atrás apenas do projeto chinês de Três Gargantas e da própria Itaipu. O projeto impactará 11 municípios, nove territórios indígenas, desalojará milhares de pessoas e desmatará grandes áreas de floresta e secará parte do rio Xingu. Ela é considerada uma obra autoritária e perfeitamente dispensável por parte da sociedade civil.
Belo Monte é uma obra emblemática exatamente porque revela concepções de mundo diferentes. Como afirma o sociólogo Cândido Grzybowski, “o debate sobre a Usina Hidrelétrica de Belo Monte é, antes de tudo, um debate sobre o Brasil que queremos”. Por um lado, insere-se no movimento do neodesenvolvimentismo, para quem, na melhor das hipóteses, a destruição da natureza é um mal não desejado, mas necessário para garantir crescimento, consumo e geração de empregos. Por outro lado, as reações de resistência, como veremos logo abaixo, se dão justamente em defesa de outro modelo de desenvolvimento, menos agressivo com o meio ambiente e mais respeitoso dos povos originários. Em última instância, é um debate sobre o Brasil que se quer.
Alternativas e protagonistas
Um amplo movimento – esparso, difuso, pessoal, comunitário ou institucional, ora mais descentralizado, ora mais coeso ou se articulando em rede – faz erguer mundo afora sua voz em defesa da consciência ecológica, de um outro modo de produzir e de consumir, que passa por um estilo de vida mais austero.
Há pessoas e campanhas que se dispõem e propõem dispensar o carro (Dia Mundial sem Carro), comer menos ou nada de carne (vegetarianismo, veganismo, Campanha Segunda-feira sem Carne…), ter hábitos mais saudáveis de alimentação (Slow Food), produzir alimentos agroecológicos, transformar o mundo pelas atitudes (ecoblogueiros), ter um estilo de vida baseado no Bem Viver e não no viver melhor. Há campanhas apelam à mudança pessoal de atitudes (faça a sua parte) e outras que buscam comprometer as lideranças mundiais.
Em 2010, houve a confluência inédita de três grandes campanhas mundiais em torno da chamada Campanha 10:10:10: a Campanha 10:10 Global (www.1010global.org), que surgiu em 2009 na Inglaterra com a Franny Armstrong, diretora do filme A Era da Estupidez, sucesso de bilheteria sobre as mudanças climáticas; o Dia Global de Soluções Climáticas ou “350”; e o Tempo para a Criação, uma iniciativa de oração e reflexão das Igrejas Cristãs.
Essa Campanha parte da constatação de que a aproximação do perigo que a mudança climática pode representar para a vida na Terra é momento propício – o kairós – para a ação. A vida tem o instinto de se manter viva. E há “instrumentos” que podem ser aproveitados para a “salvação” da vida. Evitar que isso aconteça é sinal de responsabilidade para com toda a criação. “Ali onde cresce o perigo também cresce a luta pela salvação”, no dizer de Edgar Morin.
Há ainda um outro tipo de manifestação, de resistência à implantação das mega-hidrelétricas na região amazônica, empunhado especialmente pelos povos indígenas, que veem seus direitos fundamentais sendo violados. São eles os mais diretamente atingidos por essas obras e que, além disso, encarnam uma outra relação com a natureza. Para eles, preservar a floresta e sua biodiversidade é promessa da manutenção da suas vidas. Por isso se opuseram energicamente a esses projetos, que atendem especialmente interesses alheios a eles. Essa luta é travada juntamente com os povos amazônicos, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, pescadores contra hidrelétricas que estão em fase de construção ou anunciadas nos rios Madeira, Xingu, Tapajós, Teles Pires.
Também um religioso, especialmente, tem se destacado na oposição à proliferação das hidrelétricas na região: dom Erwin Kräutler, bispo de Altamira, no Pará. Referindo-se a Belo Monte, qualifica a de “monstruosidade” e indaga diante do tamanho da destruição: “O sangue derramado desse povo clama aos céus. O projeto desenvolvimentista do governo está sendo construído sobre os cadáveres dos indígenas. O que tem mais valor, as grandes obras ou a vida humana, a família?”, pergunta Kräutler.
Prospectivamente, em 2011, a Igreja católica do Brasil propõe como tema para a reflexão e a oração, no contexto da Campanha da Fraternidade, as mudanças climáticas. Poderá ser uma ótima oportunidade para continuar o debate e a ação sobre este tema crucial para o futuro da humanidade e do planeta.
Conjuntura Especial. Uma síntese dos grandes temas abordados em 2010
O Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ao longo de 2010 produziu análises da conjuntura semanais a partir da (re)leitura das ‘Notícias do Dia’ publicadas, diariamente, no sítio do IHU e da revista IHU On-Line publicada semanalmente. Como fecho do trabalho desse ano, apresentamos uma Conjuntura Especial que retoma os grandes conteúdos abordados pelas conjunturas semanais no ano de 2010.
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FONTE : (Ecodebate, 23/12/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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