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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

CARRANCAS


Os céticos que nos perdoem, mas há em um rio, algo de divino, de supranatural. Aliás, em tudo que gere vida há algo muito acima do que nossa humana limitação pode alcançar.

A essa coisa supranatural, cada um dê o nome que lhe aprouver.

Logicamente, com os rios tal acontece. Brotando das profundezas da Terra, respirando o ar da liberdade esparrama-se, espalhando e carregando vida por onde passa. O meio que usa é a água e em tal meio nasceram quase todos os seres vivos existentes no planeta e é também elemento essencial para a conservação da vida.

Como o homem, o rio vai tomando forma, ganhando vida e conquistando espaço. Mas, infelizmente, pela ação deletéria do próprio homem, o rio perde a pureza, a inocência, polui-se, deteriora-se e não poucas vezes, morre.

O rio São Francisco não pode ser considerado uma exceção a esse quadro. “Opará”, como era conhecido pelos índios, “Velho Chico” como é carinhosamente chamado pelos ribeirinhos ou “rio da integração nacional” pelos eruditos, vem sofrendo no decorrer dos anos um violento processo de degradação, fruto da erosão causada pelo desflorestamento e pela ocupação desordenada de suas margens e pela descarga de dejetos urbanos lançados “in natura” pelas dezenas de cidades que banha em seu percurso.

Com 2.830 quilômetros de extensão, percorrendo cinco Estados brasileiros (Minas Gerais, onde nasce na Serra da Canastra, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas), com cinco hidrelétricas (Paulo Afonso é a mais importante) o rio é fator de união nacional, pois liga o sudeste ao nordeste transportando mercadorias e riquezas. Essa exuberância toda provocou o superpovoamento de suas margens que sofrem com a ocupação predatória, sem nenhum planejamento ou critério como soe acontecer no Brasil.

A causa imediata disto é que o rio definha, exigindo providências inadiáveis para sua revitalização, como obras de saneamento básico e de recuperação de suas erodidas margens. Obras, que no entanto, não rendem dividendos para quem as realiza, nem eleitorais e nem outros de qualquer ordem.

Como o Governo sempre se move por razões não muito transparentes, optou-se então, por uma terceira via, que jamais foi vista como viável e que dormia esquecida nos arquivos do governo desde os tempos do Império: a construção de um canalão, uma bica grande, que levaria água para os grandes projetos de irrigação tocados por latifundiários (os antigos coronéis), que a séculos dominam o Nordeste. Prato cheio para as empreiteiras, que desviam gordas importâncias para campanhas eleitorais e propinas.

Haveria barreiras a serem superadas: o custo absurdo para resultados tão medíocres (menos de cinco por cento da região será beneficiada), a licença ambiental, Dom Cappio e sua silenciosa greve de fome e os milhares de técnicos radicalmente contra. Mas isto não se constituiu em empecilhos para quem por interesses pessoais e eleitoreiros desconhece obstáculos.

Assim, com o nome pomposo de “transposição” do Rio São Francisco iniciou-se um verdadeiro e bilionário desastre ambiental, um canalão, que pode representar tudo, menos a solução para a seca e para a pobreza do semi-árido nordestino. Uma verdadeira aventura megalomaníaca de resultado pífio e duvidoso. Se não forem tomadas medidas urgentes para a salvação do velho Chico, a grande obra eleitoreira do governo Lula poderá tornar-se num esgotão a céu aberto.

Peça ao ribeirinho que asculte o rio e que decifre o seu lamentar choroso, que observe as carrancas na proa dos barcos ainda mais assustadoras, tentando espantar os algozes, que teimam em desafiar a natureza e os deuses que o protegem, pouco se importando com o destino e o futuro dos que irão pagar essa conta: os meus, os nossos e os filhos “deles”.
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AUTOR : Luiz Bosco Sardinha Machado

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