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sexta-feira, 9 de abril de 2010
A tragédia anunciada: as mortes nas favelas do Rio - Nilo Sérgio S. Gomes
A tarde avança, com a chuva indo e voltando, causando os mesmos temores das últimas horas. As horas mais dramáticas e trágicas de muita gente dali da comunidade do Morro dos Prazeres, no alto de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. O barulho intermitente das máquinas que removem montanhas de terra, escombros, restos de casas, concretos ainda tão armados quanto antes, mas fora do lugar, arrastados pelo turbilhão do deslizamento que matou dezenas de pessoas, quase que impede ouvir qualquer fala.
Numa casa de interior escuro, devido à falta de energia elétrica, a penumbra do luto e da tristeza tomava de assalto cada canto da morada, cada gesto. Os corpos movimentam-se em meio ao breu, mas sem errarem os passos. O pai da menina Janaína, sentado a um sofá, ainda parece ter nos lábios a pergunta sobre por que tudo aquilo acontecera. As lágrimas são como a chuva, intermitentes.
Em poucos minutos, a filha de quase dois anos se fora desta vida, com a esposa, a avó, a sobrinha e outros parentes, mortos em um dos tantos deslizamentos que jogaram por terra inúmeras casas construídas nas encostas íngremes da cidade tão maravilhosa. Em poucos minutos, ele tornara-se viúvo, órfão, e que teria de sepultar os corpos da família, da qual fora o único sobrevivente. Os olhos vagam no entorno da escuridão.
Nos últimos 20 anos, a comunidade do Morro dos Prazeres teve uma verdadeira “explosão demográfica”. As poucas casas e barracos que ocupavam o morro, até meados dos anos 80, com pouco mais de mil habitantes, estavam agora multiplicadas em uma proporção assustadora, quase gigantesca. Especialmente, a partir dos anos 90, inúmeras favelas passaram a ocupar as encostas do Rio de Janeiro, em particular, as dos morros do bairro histórico de Santa Teresa: Morro da Coroa, Fallet, Escondidinho, Prazeres, Cerro Corá, Guararapes e, mais recentemente, surgida nos últimos três anos, a favela do Morro do Chico, logo abaixo do quartel do Corpo de Bombeiros do bairro.
Em muitos desses morros, nos anos de 1970 e 1980, eram comuns reuniões de associações de moradores, grupos de jovens, cineclubes, grupos de discussão política… A partir dos 90, com o aumento do poder do tráfico de drogas, tais grupos esmaeceram-se, surgindo em seu lugar os soldados do tráfico, os gerentes de boca-de-fumo, as associações fantasmas, quase todas controladas pelos chefes do tráfico. Em vez de discussão política aberta e democrática, formadora de consciências, passaram a surgir lideranças de aluguel, a serviço dos negócios do tráfico. Todo e qualquer estranho ao mundo do tráfico passou a ser considerado persona non grata.
Em época de eleições, apenas cabos eleitorais de determinados partidos políticos e, especialmente, de determinados candidatos passaram a ser admitidos nas favelas. Um deles, em particular, um ex-prefeito por alguns mandatos no Rio de Janeiro, não por mera coincidência aquele em cujas gestões as “comunidades” mais do que triplicaram na cidade. Quaisquer outros partidos e/ou candidatos diferentes deste eram proibidos de levar campanha nas favelas, ainda mais os declaradamente de esquerda. O controle e a ordem de entrada eram e são sempre assumidos pelos chefes do tráfico de drogas.
A chuva volta a cair com mais intensidade. No Guararapes, cuja população e número de habitações também mais do que triplicou, o deslizamento deixou outras tantas habitações em situação mais do que de risco. Nos anos 70, o Morro do Guararapes foi como uma espécie de laboratório-modelo para as políticas de urbanização das favelas. Mas isto, em tempos muito passados. Neste início do XXI, a favela cresceu, mas não tanto quanto a do Cerro Corá, que se expandiu de tal modo que hoje as janelas dos barracos encostam naquelas do Hospital Silvestre. Não por outro motivo, nas fortes chuvas de três anos atrás, o deslizamento de terra provocou o fechamento do túnel Rebouças.
Um jovem de pouco mais de 20 anos, com suas calças e calçados enlameados, diz que ainda falta muita gente, que muitas pessoas permanecem desaparecidas. Pelas contas de Rafael, passam de 20. A chuva se intensifica, tornando mais difícil o trabalho de busca e resgate. Em uma casa próxima, os traficantes garantem a posse do território, indiferentes às dores que moram ao lado. Há bombeiros, escavadeiras, jornalistas, fotógrafos, muita gente estranha, mas não há polícia. E o fato não é uma mera coincidência.
O corpo de Janaína foi localizado no início da tarde. O sepultamento será amanhã. Na casa escura, sem energia elétrica, a penumbra do luto não apaga a intensidade do brilho nos olhos de Júlio, o pai viúvo e agora sem a filha, e que também está órfão da mãe, que morreu junto com o restante da família. Toda a comunidade está mobilizada, na ajuda às buscas. Menos os traficantes. Mas eles não são da comunidade. Apenas, a exploram.
A luz do dia se esvai, logo a penumbra será completa escuridão. Ninguém sabe o que será do amanhã. A noite caminha a passos largos, como a dor que atrai solidariedade de toda espécie. Nos telejornais, as autoridades prometem agir, pedem recursos federais e anunciam medidas. Nenhuma delas, contudo, trará as vidas de volta. E amanhã, tudo poderá se repetir mais uma vez. E alguns jornais sensacionalistas, escrevem em suas manchetes sobre a “tempestade assassina”. Mas de quem será o crime?
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FONTE : Nilo Sergio S. Gomes, articulista do EcoDebate, é Jornalista e Pesquisador
EcoDebate, 09/04/2010
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