O Brasil mantém uma posição privilegiada no cenário mundial: detém cerca de 12% da água doce superficial do planeta, enquanto regiões da Europa, como Portugal e Espanha, além de Oriente Médio e grande parte da África, lutam contra a escassez crônica do produto. A distribuição pelo território brasileiro é, porém, desigual. A Amazônia derrama no mar 78% da água superficial do Brasil, com um excedente hídrico que atrai a cobiça global. O Sudeste fica com apenas 6%, o que representa um grande déficit, pois tem de irrigar quase metade da produção agrícola do País e dar de beber a cerca da metade dos 190 milhões de brasileiros, além de fornecer água para mover 50% do Produto Interno Bruto industrial. Isso coloca a região em um patamar crítico, com menos de 10% do volume de água por habitante preconizado pelas Nações Unidas, ou apenas 200 metros cúbicos por segundo/ano.
O cenário coloca algumas áreas de São Paulo sob o risco de perder investimentos industriais e pressiona as empresas de saneamento e distribuição a lançar mão de criatividade. Um exemplo é o Polo Petroquímico de Capuava, na região de Mauá, que vai receber mil litros de água de reúso por segundo para manter sua capacidade operacional, pois não há mais disponibilidade de água tratada potável no entorno. É um volume suficiente para abastecer a população de uma cidade de cerca de meio milhão de habitantes como a de Santos.
Com as alterações no clima a provocar um grande desequilíbrio na distribuição das chuvas, a capacidade dos ecossistemas em recompor suas reservas tem sido prejudicada. Cresce o risco de aumentar a desertificação no Nordeste, enquanto no Sul, regiões tradicionalmente ricas para a agricultura, como os pampas gaúchos, não conseguem mais manter uma produção estável.
A divisão da água no Brasil é ainda desigual em relação aos usos e às responsabilidades de cada setor. A agricultura fica com cerca de 70% da água captada em mananciais, usada muitas vezes sem o devido cuidado em relação às técnicas de irrigação, além de deixar escorrer novamente para os cursos d’água uma grande quantidade de produtos utilizados como fertilizantes e defensivos agrícolas. Na verdade, venenos que precisarão ser retirados em seu próximo uso, em estações de tratamento que vão enviar água encanada às residências e indústrias.
A cadeia de uso da água é pouco comprometida com a qualidade nos mananciais e rios, onde a preocupação se dá mais em relação à infraestrutura de escoamento do que com foco na qualidade física da água. Rios assoreados provocam enchentes e comprometem, por exemplo, a capacidade de geração de energia elétrica em seus cursos.
O descaso com a qualidade das águas de rios e costeiras, que absorvem a maior parte da carga de resíduos e esgotos das cidades brasileiras, e na maior parte do mundo, prejudica também a capacidade dos ecossistemas em sustentar as áreas de reprodução e pesca de grande parte das espécies de peixes de uso comercial e na alimentação humana. Mesmo com um volume de consumo considerado pequeno, com 6,4 quilos por habitante/ano, ante 13,3 quilos da média mundial, o Brasil tem uma produção pesqueira de 1,05 milhão de toneladas, das quais mais da metade são extrativistas e dependem da qualidade dos ecossistemas para manter a produtividade.
A fragilidade dos biomas aquáticos coloca em risco o crescimento da exploração pesqueira. Entre 1961 e 2001, o consumo mundial de pescado mais do que triplicou – de 28 milhões para 96 milhões de toneladas–, levando os cientistas a alertarem para o iminente esgotamento desses recursos. O alerta feito em 2006 por um grupo de pesquisadores da Universidade Dalhousie, no Canadá, estimou um prazo de 40 anos para que “os estoques de peixes e frutos do mar pescados para a alimentação humana entrem em colapso se nada for feito para conter a perda da biodiversidade marinha”.
Como se pode ver, a complexidade da gestão de recursos hídricos não é apenas um problema local, relacionado ao abastecimento e à saúde pública. Seus reflexos são diversos e globais. Na área de saúde existe um número considerad-o mágico pelas autoridades, de que cada dólar aplicado em saneamento se reflete em uma economia de 5 dólares em tratamentos posteriores. A comparação estimulou uma grande campanha do Programa Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, lançado pelas Nações Unidas em 2000, no qual se propõe que até 2015 o acesso à água potável esteja praticamente universalizado no mundo. Segundo a Unicef, quase 40% da população mundial, ou 2,6 bilhões de seres humanos, continuam sem acesso à coleta e ao tratamento de esgotos.
No Brasil os números do saneamento básico deixam muito a desejar. Cerca de 87% dos brasileiros têm acesso à água tratada, mas menos de 70% podem comemorar o luxo de ter seu esgoto coletado. Só 25% podem ver seus dejetos diluí-dos em estações de tratamento antes de ser lançados nos rios, lagos e mares. É a média nacional. No Sudeste, o índice de coleta é de 91,4%. No Norte, não chega a 9% das habitações. Para o secretário de Recursos Hídricos e Meio Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente, Luciano Zica, o desequilíbrio vem da falta de definições de prioridades para o setor ao longo de diversos governos.
O governo federal lançou, em 2006, o Plano Nacional de Recursos Hídricos, que tem metas definidas até 2011 e propôs compromissos com a qualidade da água no Brasil até 2020. Os principais objetivos são melhorar a disponibilidade, a qualidade e a quantidade de água dos mananciais superficiais e subterrâneos; reduzir os conflitos reais e potenciais em relação ao uso e trabalhar para reduzir os impactos de eventos climáticos extremos causados pela água e buscar a conservação da água como um valor socioambiental relevante. Muitos desses objetivos estão contemplados em obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que prevê investimentos de 40 bilhões de reais.
Segundo a ONG Trata Brasil, que acompanha os investimentos em Sanea-mento no País por meio do Projeto De Olho no PAC, após três anos, menos de 20% dos recursos contratados foram realmente investidos. O De Olho no PAC monitorou, durante um ano, uma amostra representativa das obras – 101 contratos de saneamento nos municípios com mais de 500 mil habitantes. Em termos de recursos, a amostra selecionada pelo Trata Brasil totaliza 2,8 bilhões de reais de investimentos.
Para Raul Pinho, presidente do Instituto Trata Brasil, os diversos entraves identificados pelo acompanhamento estão relacionados à falta de cumprimento efetivo da legislação, necessidade de aumento da eficiência dos processos, maior valorização da etapa de projeto, melhor coordenação das ações da administração pública entre os níveis municipal/estadual e federal, além de incentivos à qualificação/atualização dos profissionais envolvidos. A retomada dos investimentos é fundamental para garantir a oferta de água de qualidade a um custo menor nos investimentos das empresas para a produção industrial ou para o abastecimento doméstico.
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FONTE : (Envolverde/Carta Capital)
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