As muitas poluições inerentes às cidades grandes e ao mercado de consumo distraem os sentidos. De repente, as coisas simples da vida se tornaram um luxo só.
Qual será o xampu mais adequado entre a miríade de detergentes capilares enfileirados nas prateleiras dos supermercados? Aquele que ajuda a “ancorar o cabelo”, pois contém “pronutrium ginseng”? Ou aquele outro da fórmula refrescante com “bio nutrium” e mentol? Devo abastecer o carro com álcool ou com gasolina? Comum ou aditivada? Pagar no crédito ou no débito? CPF na nota? Sabia que os ovos e a manteiga já regressaram ao rol de alimentos saudáveis? O óleo de coco e de linhaça também são bons para a saúde, assim como o azeite de oliva. Mas o glúten e a lactose são os novos vilões, pelo menos até o fechamento desta edição. Pilates ou musculação? Para os filhos, educação tradicional, construtivista ou ensino público? Tem plano de saúde? Em caso de emergência, qual o hospital de sua preferência? Gostaria de ver a carta de vinhos? São mais de 300 opções. Gelo e limão na Coca? Suas definições de vírus foram atualizadas. Esqueci o carregador, e agora? Senha inválida. Digite novamente, por favor…
Parafraseando Raul Seixas: “Motorista! Pare o mundo que eu quero descer!”
O roteirista e editor de documentários Adolfo Borges optou por uma vida mais simples. Deixou de integrar o corpo docente da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, comprou um trailer e um terreno arborizado na zona rural de Itapevi, município na Grande São Paulo, e se mudou de mala e cuia. O estilo urbano de viver – que, além dessas incontáveis microdecisões funcionais cotidianas, inclui mais uma infinidade de estímulos sensoriais ininterruptos, como barulho, iluminação artificial, conectividade, insegurança –, para Borges, ficou no passado.
Agora ele dispõe de quietude, ar puro, silêncio, noites estreladas, wi-fi free e tempo para a reflexão e projetos. Planeja encontrar três ou quatro parceiros para, juntos, fundarem nessa propriedade uma ecovila.
Algo na linha dos dragon dreamers, um movimento já bem difundido pelo mundo que adota apenas três princípios básicos: crescimento interior, viver em pequenas comunidades e respeitar o planeta. Uma espécie de versão contemporânea do movimento hippie dos anos 1960-70, que, em repúdio às guerras e às armas nucleares, buscou um modo de vida comunitário, libertário e em comunhão com a natureza, sob o lema “paz e amor”.
Para viver na maioria das grandes cidades, quase sempre é preciso abdicar das sensações prazerosas que no passado estavam postas no mundo para quem quisesse delas usufruir. Tomar um banho nas águas limpas de um rio. Olhar para o céu e enxergar as estrelas. Respirar ar puro. Ter tempo para saborear o “sal da vida”, expressão que a antropóloga e escritora francesa Françoise Héritier usou para definir os melhores momentos da existência. Aqueles que se experimentam com todos os sentidos, e graças aos quais a vida vale a pena. O crescimento desordenado das grandes cidades eliminou boa parte dos valores que além de dar prazer não custavam nada. Em troca, ofereceu um estilo de vida ditado pelo ritmo do mercado de trabalho, que consome das pessoas todo o tempo que pode. O capital, que não dorme no ponto, percebeu que todos esses bens, mesmo os imateriais, têm valor e, portanto, dão lucro.
Quem quiser alguns desses “artigos”, ora de luxo, pode comprá-los. O mercado vem se sofisticando nessa área. Oferece perfumes com aroma de terra molhada, de chuva e até de biscoitos que eventualmente podem lembrar a infância. Oferece moradias em ruas com segurança, onde o ambiente é mais adequado para as crianças e onde ainda dá para enxergar as estrelas no céu. Oferece caminhadas em meio a natureza, com direito a banhos em rios de água cristalina. Basta procurar agentes intermediários no comércio ou na internet.
Antes, porém, trabalhe bastante, pois para usufruir desses “luxos” é preciso muito dinheiro. Bens que um dia foram públicos hoje estão empacotados e prontos para a venda (ver Reportagem “Vida empacotada”). A previsão do autor de O Capital, Karl Marx, de que o mercado se apropriaria dos bens públicos, feita no século XIX, confirmou-se. E não se acomodou: tem emplacado até a venda de smartphones placebo para quem sofre de transtorno do vício de internet.
O que tem valor hoje?
O propósito aqui não é defender um estilo de vida retrógrado, mas apenas lançar um olhar crítico para a vida cotidiana e tentar entender como se deu essa mudança na percepção do que é realmente valioso em uma existência. “Quando tentamos identificar qual é a melhor forma de viver, logo encontramos uma primeira dificuldade”, adverte o filósofo Clóvis de Barros Filho, professor de Ética da Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP). “Diferentemente da prova aplicada pelo professor em sala de aula que só tem um gabarito, a vida possui muitos”, assinala.
Por exemplo, no Exército o valor primeiro é a disciplina, enquanto em uma casa de repouso é o descanso. “Daí, percebe-se que o que é valor para o Exército é menos valioso para a casa de repouso e vice-versa. Em outras palavras, não existe uma grade de valores que se imponha universalmente”, atesta. É o que o antropólogo, sociólogo e filósofo francês Edgar Morin chamou de valores complexos. Graças a essa complexidade dos valores, as pessoas são livres para decidir que tipo de vida querem levar, e tentam ser fiel à vida que escolheram.
“E a isso, por sua vez, chamamos moral”, explica Barros Filho, que faz uma espécie de passeio pela história do pensamento, desde os filósofos gregos até o modernismo, para mostrar que tipo de referência o homem vem usando para poder decidir o que é e o que não é bom. A íntegra da entrevista disponível aqui.
Atualmente, segundo Barros Filho, prevalece uma fragmentação das formas de atribuição de valor que aumenta a aparência de autonomia. Ou seja, a antiga pretensão de universalidade deu lugar ao surgimento de pequenos espaços de convivência, onde as pessoas interagem como se fossem orbitais, com regras e critérios próprios de valoração. “Poderíamos entender os campos sociais [1] como pequenas tribos que têm uma relativa autonomia na hora de decidir quais são as formas de atribuir valor às coisas do mundo”, resume o filósofo.
Essa “superindividualização dos valores” não deixa de ser um paradoxo, afinal, quanto mais o mundo se globaliza, mais visíveis são as particularidades tribais na definição de critérios de valor. “A proposta identitária procura algum tipo de distinção, além de pertencimento. Eu sou aquilo que ninguém mais é”, observa.
Construa-te a ti mesmo
O fordismo, o pós-fordismo e o pós-pós- -fordismo são o pano de fundo dessa construção dos valores. Na segunda semana de setembro, o professor titular de Teoria da Arte da Universidade de Barcelona Martí Peran proferiu uma palestra na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) intitulada “Como converter a fadiga em uma exposição?”
Sua tese é de que, enquanto o modelo fordista de capitalismo gerava valor e mais-valia mediante mercadorias originadas em uma cadeia de produção, o pós-fordismo situou a mais-valia na produção de subjetividade, no valor imaterial, o que acabou gerando uma fadiga, ou um estado de ânimo ferido. Enquanto o fordismo se caracterizou pela produção em massa, o pós- fordismo adotou métodos de produção flexível, marcada pela inovação tecnológica (leia mais na Entrevista).
O filósofo e jornalista austro-francês, André Gorz, no livro O Imaterial, de 2003, conforme resenha da pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília Valdenize Tiziani, reconhece que até a ciência e as artes de que os indivíduos usufruem em seu tempo livre foram postas a serviço da produção no pós-fordismo. O essencial deixou de ser a competência profissional. As habilidades sociais adquiridas fora do ambiente de trabalho se tornaram mais valiosas. De acordo com Gorz, esse é mais um recurso gratuito, do qual as empresas se apropriaram. “Não é mais o sujeito que adere ao trabalho, mas o trabalho que adere ao sujeito”, assinalou.
Essa tendência das pessoas de explorar as suas capacidades fora do trabalho, em uma autoafirmação de que podem mais do que realizam profissionalmente, pode estar pavimentando um modelo de capitalismo para além do pós-fordismo, denominado por Martí Peran de “capitalismo afterpop”. Ao contrário do “pós-fordismo pop”, que favoreceu o espetáculo, o ócio e uma suposta liberdade, o afterpop se distingue pela autoexploração. Ou seja, o capitalismo já não é só uma máquina que produz valores subjetivos e imateriais, mas pressupõe um convite a que essa produção de subjetividade seja assumida por nós mesmos.
Pela perspectiva europeia de Peran, a crise econômico-financeira de 2008, sobretudo na Espanha, lançou um vaticínio: botar a vida inteira a trabalhar. É uma apologia ao empreendedorismo que está na ordem do dia nos países que vivenciam mais fortemente o impacto da crise. “Empreenda. Construa-te a ti mesmo. Toma a iniciativa. Busca-te a vida. Invente algo. Crie mercado. Descubra em que flanco poderá se posicionar. Essa responsabilidade está em tuas mãos”, enfatizou Peran na conferência. Com isso, todos estão obrigados a jogar lenha no fogo para garantir que a máquina continue funcionando.
Em sua opinião, a cultura emergente denominada do it yourself é um tipo de autoajuda que subliminarmente está dizendo: descanse um pouco e em seguida reconduza essa sua fadiga, ou essa sua hiperatividade, para o empreendedorismo. Em última análise, é uma proposta de cura para a ferida que, segundo Peran, deveria permanecer aberta. “Se existe dor, é para despertar a consciência. Nesse caso, devemos otimizar a dor como possibilidade para o despertar da consciência. Somente assim voltaremos a ver o mundo”, analisa o professor.
Essa visão converge com a do filósofo e arquiteto Luiz Fuganti, fundador da Escola Nômade de Filosofia, para quem há, de fato, uma tendência de acomodação para não se ver além do próprio estado de corpo e seus respectivos desejos. Somente nesse “além” se enxergaria o que realmente é valioso.
Portanto, para Fuganti, somos todos cúmplices desse mundo que está aí. A conclusão de Barros Filho também segue esse trilho. A construção de uma vida urbana repleta de estímulos, poluições e distrações é resultado de uma espécie de complô de todos e por todos. Quanto mais perturbação menos tempo para perceber a falta de sentido, ou as imperfeições da vida.
Em Paris, no lançamento do filme Magia ao Luar, um jornalista perguntou a Woody Allen por que rodava filmes às dezenas se estes não lhe ajudavam a dar sentido à vida. Conforme reportagem do jornal Folha de S.Paulo, publicada em 29 de agosto, o cineasta respondeu: “Pensar se terei Emma Stone no meu filme é trivial, mas ocupa a cabeça. Se você acordar um dia às 3 horas da manhã e não houver filme, trânsito, barulho, nada, vai refletir sobre a condição humana e sentirá medo”.
De acordo com Barros Filho, não há filósofo sério no mundo que não tenha refletido sobre isso. O homem entope a mente com preocupações inscritas em uma cadeia de utilidade para não ter tempo de se perguntar para que serve o todo. A utilidade de uma coisa está ligada à outra, mas quando nos perguntamos qual é a utilidade do todo, não encontramos a resposta. “Você decide pôr o casaco. Para quê? Para comprar cigarro. Para quê? Para fumar. Para quê? Para perceber que nada tem sentido, que a vida está em suspensão. É a ‘náusea’ de (Jean-Paul) Sartre e a ‘angústia’ de (Martin) Heidegger”, afirma o professor.
Pode ser que o roteirista Adolfo Borges, livre das poluições e do burburinho da grande cidade, tenha encontrado um caminho para a vida que vale a pena. Mas pode ser também que, tendo agora tempo para refletir, se depare com a “náusea” ou com a “angústia” percebida pelos grandes filósofos da humanidade. Como está muito isolado, longe inclusive da poluição das ondas eletromagnéticas das antenas de telefonia, por via das dúvidas o roteirista adquiriu três linhas de celular, uma de cada operadora. “É para garantir que pelo menos uma funcione quando precisar”, respondeu.
Leia entrevista com Clóvis de Barros Filho.
[1] Espaços de relações sociais ocupados por agentes que participam do jogo social – um conceito do fim dos anos 1970, proposto pelo filósofo francês Pierre Bourdieu
* Publicado originalmente no site Página 22.
(Página 22)
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