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quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Brasil que não verá a Copa – Histórias de brasileiros que não sabem o que é energia elétrica

PUBLICADO . EM ECOLOGIA HUMANA
242 mil famílias do país ainda não contam com energia elétrica em casa (Foto: Rafael Luis Azevedo)
Pelo menos 242 mil famílias brasileiras (cerca de 960 mil pessoas) ainda não têm energia elétrica em casa. Percorremos 1.300 quilômetros no sertão do Ceará para contar a rotina sofrida de algumas pessoas que não vão assistir à Copa do Mundo
Rafael Luis Azevedo, da Agência Pública.
Fortunato da Silva parece viver em outro planeta. Quando vê a camisa da seleção brasileira, mostra-se indiferente. Para ele, é um “pano qualquer”. O desconhecimento sobre o manto mais famoso do futebol mundial justifica-se. O agricultor nunca teve energia elétrica em casa. Sem opção, mantém distância de tudo o que cerca a Copa do Mundo, o maior evento da Terra, prestes a ocorrer a 450 quilômetros dali, em Fortaleza.
A rotina de Fortunato, que vive em Serra da Estrela, comunidade localizada no município de Saboeiro, no sertão do Ceará, assemelha-se à de pelo menos 242 mil famílias brasileiras sem acesso à eletricidade (correspondentes a 960 mil pessoas, segundo o Ministério de Minas e Energia). Essa parcela da população, espalhada pelo país, dificilmente participará da Copa do Mundo mais cara da história, com custo oficial previsto em R$ 25,7 bilhões, segundo o Portal da Transparência.
Fortunato da Silva parece viver em outro planeta. Quando vê a camisa da seleção brasileira, mostra-se indiferente. Para ele, é um “pano qualquer”.
Entrar em estádios será privilégio de poucos. Mas, para Fortunato e seus vizinhos, nem mesmo ver os jogos pela TV será possível. Dentre os 184 municípios do Ceará, Saboeiro é o que tem maior proporção de habitantes sem energia elétrica. Ao todo, 8,9% dos moradores da região não sabem o que é isso. É um índice alto, levando-se em conta que 1% da população do estado não possui o serviço.
Prazeres simples, como beber água gelada ou refrescar-se com a brisa de um ventilador, são desconhecidos para eles. “Na verdade, a gente se contentaria com muito menos, como ter condições de ligar uma bomba para puxar água da cisterna para a plantação”, sonha Fortunato, cearense de 45 anos. Sem desfrutar de energia elétrica, a saída é fazer a irrigação de forma manual, quebra-galho sem o mesmo resultado. É do plantio de milho, feijão e fava, cultivo comum a todos os agricultores da região, que sai o prato de cada dia.
Distância de Fortaleza a Serra da Estrela, em Saboeiro-CE: 450 km (Foto: Google Maps)
Qualquer outro acompanhamento nem sempre disponível, como frango, peixe ou carne vermelha, precisa ser todo consumido no mesmo dia, pois não há geladeira. “Se a gente mata um carneiro, tem que chamar os vizinhos para comer junto, senão estraga”, explica Fortunato. A solução, para alguns, é salgar a carne e lavá-la antes do consumo. Isso não impede que o cheiro forte nas casas atraia toda sorte de insetos.
A família de Fortunato é uma das onze de Serra da Estrela, a cerca de 35 quilômetros da sede de Saboeiro. Para chegar à comunidade, é necessário percorrer 10 quilômetros de estrada carroçável. Os seis últimos quilômetros são uma subida íngreme, com acesso somente de moto. E, ainda assim, se não estiver chovendo forte. “Nossa vida já foi muito pior. Imagine quando não havia moto: subir com carga, só no lombo de jumento”, descreve Fortunato.
“Beber água gelada é luxo. A gente se contentaria com muito menos”.
Fortunato da Silva, agricultor de Saboeiro.
Além das motos, que se popularizaram na zona rural do Nordeste, outra novidade amenizou o sofrimento na comunidade: o Bolsa Família, instituído pelo governo Lula em 2003. Todas as famílias de Serra da Estrela recebem o benefício. No caso de Fortunato, são R$ 352 mensais, desde que mantenha na escola seus três filhos. Eles estudam no distrito de Barrinha e caminham os seis quilômetros serra abaixo para chegar ao colégio.
A renda certa é questão de sobrevivência onde não há emprego além da agricultura de subsistência. “Sem esse dinheiro, enfrentar as dificuldades de se viver sem energia elétrica seria ainda mais difícil”, expõe Fortunato. Outro programa federal, o Luz para Todos, nutriu a esperança de que o benefício mais sonhado também chegaria a suas casas. Mas, até aqui, tudo não passou de um desejo frustrado.
Ao lado da casa de Fortunato da Silva, na Serra da Estrela, em Saboeiro, passa uma linha de alta tensão que liga os municípios de Jucás e Catarina (Foto: Rafael Luis Azevedo)
Parte da política governamental de oferecer melhores condições de vida a populações isoladas, o Luz para Todos levou torres de transmissão de energia a rincões de norte a sul do país. Uma dessas linhas passa literalmente sobre os moradores de Serra da Estrela. Instalada em 2006, ela transporta energia entre os municípios de Jucás e Catarina. Porém, não foi possível iluminar a comunidade de Saboeiro.
“A energia passa em cima das nossas casas, mas não pode chegar às nossas casas. Quando instalaram as torres, explicaram que a alta tensão impedia que um ramal descesse para cá”, relata o agricultor Valdir de Oliveira, de 48 anos. Por ironia, a luz passa tão perto e, ao mesmo tempo, está tão longe. “Já pedimos muitas vezes energia para a Coelce [Companhia Energética do Ceará], mas a desculpa é sempre a mesma.”
“Se a gente mata um carneiro, tem que chamar os vizinhos para comer junto, senão estraga”. Fortunato da Silva, agricultor de Saboeiro.
A Coelce opera o Luz para Todos no estado e, no fim de 2013, tinha como meta instalar energia elétrica em 30 pontos de Saboeiro durante 2014 – até março, sete obras foram finalizadas. Porém, os moradores de Serra da Estrela terão que usar por mais um tempo velas e lampiões a gás ou querosene durante a noite, pois a companhia não sabe onde fica a comunidade, nem tem registro de solicitação do serviço.
Desde seu surgimento, o programa garantiu energia elétrica a 3,1 milhões de famílias, num total de 15,1 milhões de pessoas, segundo o Ministério de Minas e Energia. Passados 11 anos, contudo, o acesso ao serviço ainda não foi universalizado. Até 2000, 10,8% da população do Ceará não tinha eletricidade, aponta o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece). Hoje, o número está reduzido a menos de 80 mil pessoas, que vivem em comunidades isoladas como as de Saboeiro.
SAIBA MAIS:
10 maiores proporções de famílias com energia elétrica no Ceará, em 2010: Fortaleza (99,70%), Baixio (99,65%), São Benedito (99,63%), Brejo Santo (99,55%), Groaíras (99,53%), Iguatu (99,53%), Guaraciaba do Norte (99,53%), Jaguaribe (99,53%), Barreira (99,51%) e Horizonte (99,51%).
10 menores proporções de famílias com energia elétrica no Ceará, em 2010: Choró (95,97%), Irauçuba (95,89%), Acaraú (95,75%), Itarema (95,59%), Salitre (95,42%), Amontada (94,96%), Aiuaba (94,86%), Catarina (94%), Granja (92,77%) e Saboeiro (91,10%). Fonte: IBGE/Ipece.
Na casa de quem não tem energia, a água é armazenada em potes (Foto: Rafael Luis Azevedo)
Poucos municípios como esse sofrem tanto com o problema. Ao todo, existem lá sete comunidades sem energia elétrica, incluindo ainda Passo Fundo, Ninador, Queimadas, Logrador, Paraná e Serra do Papagaio. “Em pleno século 21, isso não podia acontecer. Esse é um serviço básico para a sobrevivência humana”, opina Francisco Bezerra, agente administrativo da Secretaria de Agricultura de Saboeiro.
O cenário já foi pior. Antes do surgimento do Luz para Todos, quase a metade da população de Saboeiro não desfrutava de energia elétrica. Como explica o gestor, cabe à prefeitura fazer o levantamento das comunidades sem o serviço e encaminhá-lo à Coelce, que realiza um estudo topográfico da região. Dependendo da verba fornecida pelo programa, a solicitação é atendida de imediato ou futuramente.
“A energia passa em cima das nossas casas, mas não pode chegar às nossas casas”. Valdir de Oliveira, agricultor de Saboeiro.
“O custo médio [para eletrificação] é relativo, pois deve-se, entre outras questões, conhecer a distância física entre o solicitante e o sistema elétrico da distribuidora”, pontua a assessoria de imprensa da Coelce. “Não é uma obra barata, é fato. Mas é um custo que impede outros gastos lá na frente. Afinal, como se combate o êxodo rural sem oferecer condições dignas de vida no campo?”, questiona Bezerra.
Em 11 anos, já foram investidos R$ 16 bilhões no Luz para Todos. A meta do governo federal é universalizar o fornecimento de energia elétrica no Brasil. Para isso, após a conclusão da 3ª etapa do programa, em dezembro deste ano, será feito um novo estudo para descobrir quem ainda ficou de fora.
Entrevista com Fortunato da Silva:

Francimar de Oliveira era o único de Serra da Estrela que assistia ao jogo do Brasil com a África do Sul, em março, após ter instalado por conta própria placas de energia solar (Foto: Rafael Luis Azevedo)
Cansados de esperar, alguns cidadãos vão dando seu próprio jeitinho, algo comum aos brasileiros. Francimar de Oliveira conheceu a energia elétrica numa de suas viagens a São Paulo, onde trabalhou em algumas temporadas na construção civil. Desde 2007, ele não arredou mais o pé de Serra da Estrela, graças ao Bolsa Família. Com suas economias, o agricultor investiu numa tecnologia que a filha ouvira falar na escola. Por R$ 2 mil, o cearense instalou duas placas de energia solar no telhado, em janeiro.
O sistema funciona na base do improviso. A energia passa por fios pela parede e alimenta uma bateria de caminhão. A carga acumulada liga a TV, que a família possuía em casa já havia dois anos, para o dia em que chegassem os postes por tanto tempo esperados. “A gente ainda não tem uma geladeira para realizar o sonho de beber água gelada, mas já dá pra ter um contato com o resto do mundo”, festeja Francimar.
“Em pleno século 21, isso não podia acontecer. Energia elétrica é um serviço básico para a sobrevivência humana”. Francisco Bezerra, agente da prefeitura de Saboeiro.
Torcedor do Fortaleza, sua casa era a única da região que podia assistir ao amistoso do Brasil contra a África do Sul, que ocorreu no dia 5 de março, em preparação para a Copa do Mundo. Na vizinhança, ainda sem saber da novidade pertinho de casa, quem mantém algum contato com futebol precisou se contentar com a narração via rádio de pilha. Francimar, a esposa e os três filhos tiveram o privilégio de ver além de ouvir.
“O dinheiro que gastei é muito para gente pobre como eu, mas não é nada para um governo. Colocar placas dessas aqui na comunidade sairia mais barato do que trazer postes até aqui em cima”, compara o agricultor. Diferentemente de Fortunato, ele sabe o que significa a camisa amarelinha. E poderá vê-la em sua casa pela primeira vez numa Copa do Mundo. Graças à sua própria iniciativa.
(Arte: Tiago Leite)




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