“Somente a aplicação da lei poderá mostrar se os órgãos ambientais irão compreender quais são as regras que estão dispostas”, afirma o advogado.
Confira a entrevista.
Ao analisar o texto substitutivo do Código Florestal, aprovado na semana passada na Câmara dos Deputados, Gustavo Trindade diz que ele é juridicamente “contraditório” e “de difícil interpretação”. Regras que estão determinadas no Código vigente foram reformuladas e perdem importância no novo texto. Segundo o advogado, o documento aprovado “isenta e anistia penalidades em áreas mais sensíveis ambientalmente, mantendo essas penalidades em áreas não tão relevantes para a questão ambiental”.
A proteção das áreas urbanas também não foi contemplada pelo novo texto. Conforme esclarece o advogado, “não há mais necessidade de respeitar as faixas mínimas de proteção no entorno de cursos d’água, nascentes, áreas de encostas, e topos de morros sujeitos a deslizamentos de rochas, ou aos intemperes de enchentes”.
Trindade também compartilha da percepção de muitos ambientalistas, que dizem ser o novo Código Florestal é um código agrícola. Para ele, a legislação está sendo alterada para beneficiar corporações e bancos que estão adquirindo terras no Cerrado e na Amazônia. “Essas áreas foram adquiridas com valores ínfimos, tendo em vista a impossibilidade de uso econômico das propriedades rurais. Com a aprovação do novo Código Florestal, essas áreas terão ampliado dez vezes os seus valores em razão da possibilidade de uso econômico”, adverte em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.
Gustavo Trindade (foto) é formado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, e mestre em Direito Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Leciona no curso de Especialização em Direito Ambiental da Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Depois de tantos debates acerca do novo texto do Código Florestal, como o senhor avalia a sua aprovação na Câmara dos Deputados? O texto foi aprovado por 90 votos de diferença. O que esse dado representa?
Gustavo Trindade – O processo de discussão do Código Florestal privilegiou um único setor. Ou seja, durante o período em que o Código tramitou na Câmara dos Deputados, especialmente na condução dada pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB), ele teve um viés excessivamente ruralista, voltado para os interesses dos grandes produtores rurais.
Já na discussão do Senado, buscaram-se retomar alguns pontos importantes para a legislação florestal, mas, quando o processo retornou para a Câmara dos Deputados, os setores ligados aos grandes proprietários de terra venceram novamente. Entendo que a aprovação deste texto significa um grande retrocesso na legislação ambiental do país, o qual está fundado em um discurso de proteção aos pequenos agricultores.
IHU On-Line – Então o senhor também concorda que o novo Código Florestal parece mais com um código agrícola?
Gustavo Trindade – Sim, porque esse foi um código desenhado para o setor rural e para os grandes produtores. Os grandes beneficiados com a nova legislação serão os grandes nomes do sistema financeiro, ou seja, corporações e bancos que, historicamente, vêm adquirindo enormes áreas rurais na região do Cerrado e da Amazônia. Essas áreas foram adquiridas com valores ínfimos, tendo em vista a impossibilidade de uso econômico das propriedades rurais. Com a aprovação do novo Código Florestal, essas áreas terão ampliado dez vezes os seus valores em razão da possibilidade de uso econômico.
IHU On-Line – Quais as principais mudanças do texto do deputado Paulo Piau (PMDB-MG) em relação ao anterior, que havia sido aprovado no senado?
Gustavo Trindade – O texto do Senado tinha buscado, de alguma maneira, preservar as Áreas de Preservação Permanentes – APPs, ou seja, estipulava regras mínimas de proteção em torno de nascentes, margens de cursos d’água etc. O texto aprovado na Câmara só determina um tipo de proteção. O texto é incongruente, porque só os cursos d’água de menor tamanho, ou seja, de até 10 metros, possuiriam a necessidade de recuperar 15 metros de cada lado. Aqueles cursos d’água de maior dimensão estariam dispensados desse tipo de recuperação. O que importa dizer é que nenhum dos textos, a meu ver, é adequado.
IHU On-Line – Então o Código Florestal não define como deverá ser feita a proteção, preservação e recuperação das margens de rios?
Gustavo Trindade – A legislação atual já definia distâncias mínimas a serem protegidas nas margens dos rios. O Código mantém essas margens, mas, no texto atual, diferencia a forma de petição. Pela legislação vigente, a medição se dá no nível máximo de cheia e, pelo novo Código, a medição começa a se dar a partir da área regular do rio.
Outra grande alteração feita, e que foi uma surpresa no texto aprovado pela Câmara, diz respeito às áreas urbanas. Agora, não há mais necessidade de respeitar as faixas mínimas de proteção no entorno de cursos d’água, nascentes, áreas de encostas, e topos de morros sujeitos a deslizamentos de rochas, ou aos intemperes de enchentes. Então, não se têm mais parâmetros mínimos para regular as APPs, que passarão a ser disciplinadas unicamente pelos planos diretores e leis municipais de desocupação do solo.
IHU On-Line – O senhor sempre defendeu que o novo texto do Código Florestal contivesse dispositivos para a recuperação florestal urbana. Quais as implicações quanto a essas questões terem ficado de fora do novo texto?
Gustavo Trindade – Não posso afirmar que a legislação atual é adequada, porque ela é de difícil cumprimento. Existem regras similares para as zonas rurais e urbanas, mas é necessário, sim, uma regra que disponha de limites e padrões mínimos para as APPs e zonas urbanas, haja vista a série de tragédias que ocorreram em Santa Catarina nos anos 1980 e, mais recentemente, o que aconteceu na zona serrana do Rio de Janeiro.
Estudos do Ministério do Meio Ambiente demonstram que grande parte da população afetada pelas enchentes estava irregularmente instalada em margens de cursos d’água, em áreas inclinadas e topos de morros, as quais são consideradas APPs e, portanto, proibidas de serem ocupadas por moradia.
O Código vigente delimita o que é considerado APPs em zona urbana e delimita 30 metros para cada lado de curso d’água, e 50 metros no entorno de uma nascente. No novo texto do Código Florestal, essas questões não estão mais determinadas.
IHU On-Line – Um dos pontos polêmicos do novo texto diz respeito à anistia aos desmatamentos cometidos até 2008. O novo texto prevê como serão fiscalizados e julgados os novos casos de desmatamento?
Gustavo Trindade – Os desmatamentos e crimes realizados até 2008 foram anistiados. Por mais contraditório que pareça, o novo texto do Código Florestal anistiou só as infrações e os crimes cometidos em áreas de maior relevância ambiental: APPs e as áreas de Reserva Legal. Se alguém desmatou uma área sensível, como APP, a penalidade administrativa (multa) será anistiada e, em caso de crime ambiental em uma área não tão importante ambientalmente, a penalidade continuará valendo. Então, o novo texto é contraditório porque isenta e anistia penalidades em áreas mais sensíveis ambientalmente, mantendo essas penalidades em áreas não tão relevantes para a questão ambiental.
O novo texto estipula regras e sansões para que as infrações sejam penalizadas. Entretanto, existe uma tradição de anistia no que se refere a penalidades por desmatamento. Até 1999, uma série de multas e penalidades aplicadas foram declaradas nulas pelo poder Judiciário, tendo em vista a ilegalidade da sua aplicação.
IHU On-Line – Como será feita a recuperação das áreas desmatadas, conforme o texto aprovado?
Gustavo Trindade – Para recuperar a área, a pessoa precisa apresentar um projeto para o órgão ambiental. Só que, em razão de uma série de exceções e possibilidades abertas pelo novo texto do Código Florestal, essa é uma recuperação de “papel” e, em meu entender, não será obrigatório fazer qualquer plantio de árvores para obter anistia e considerar a propriedade regular junto ao órgão ambiental.
IHU On-Line – Juridicamente, como avalia o novo texto do Código Florestal?
Gustavo Trindade – Analisando o texto juridicamente, é possível dizer que ele é contraditório, justamente porque foi modificado muitas vezes, e ainda pode sofrer vetos da presidente da República. Além disso, é um texto de difícil interpretação. Somente a aplicação da lei poderá mostrar se os órgãos ambientais irão compreender quais são as regras que estão dispostas. De todo modo, é um texto contraditório porque, na maioria das vezes, permite que toda e qualquer atividade seja mantida em APPs, e em outros locais exige uma recuperação mínima das APPS, como os cursos d’água.
IHU On-Line – O que a aprovação do novo texto representa em termos do direito ambiental e da legislação ambiental brasileira aprovada até o momento?
Gustavo Trindade – A meu ver, há um retrocesso na legislação ambiental, premendo aqueles que historicamente apostaram na ação do poder público no combate aos grandes desmatamentos.
É importante dizer que legislação atual possui regras que protegem o pequeno agricultor, tratando-o de maneira diferenciada seja na questão da reserva legal, que é um local onde é possível desenvolver atividades econômicas, seja na possibilidade de ocupação e utilização de APPs para plantio. Essas diferenças entre pequenos e grandes agricultores existe na legislação atual e, com a aprovação do novo texto, passa-se a tratar de maneira igualitária questões diferentes entre o pequeno e o grande produtor rural.
O Código, nesse sentido, legitima o desmatamento, traz uma crença de futuras anistias para aqueles que desmatarem, e é um retrocesso às legislações ambientais. Especialmente quando o Brasil, voluntariamente, perante o mundo, assumiu uma série de compromissos buscando reduzir as emissões de gás carbônico. Diferente de outros países, em que a emissão de gás carbônico se dá em razão de atividades produtivas, no Brasil 75% das emissões vem do desmatamento de queimadas. O plano apresentado pelo Brasil a todo o mundo em relação à redução das emissões vinha do combate ao desmatamento, que parece impraticável com a aprovação do novo Código Florestal.
IHU On-Line – Qual sua expectativa em relação a Rio+20 depois da aprovação do Código Florestal na Câmara dos Deputados?
Gustavo Trindade – Independentemente da posição a ser tomada pela presidente Dilma, o Brasil deve receber algumas críticas em relação à sua posição. Porém, isso é normal em um ambiente no qual se busca discutir ou criticar uma série de países pelas suas posições internas a respeito das questões ambientais. É uma pena que aspectos da Política Nacional de Mudanças Climáticas enfraqueça por causa da ampliação do desmatamento. Mas isso é consequência das ideias retrógradas que estão no Congresso Nacional.
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(Ecodebate, 08/05/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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