São Paulo – SP, Brasil – Vista aérea Avenida Paulista, Avenida Brigadeiro Luis Antonio – Jardins. Foto: Rafael Neddermeyer/ Fotos Públicas
São Paulo – SP, Brasil – Vista aérea Avenida Paulista, Avenida Brigadeiro Luis Antonio – Jardins. Foto: Rafael Neddermeyer/ Fotos Públicas

Os cenários catastrofistas são afastados, mas não rejeitados, pelos analistas que se debruçam sobre o tema do abastecimento. A consequência mais provável seria o esvaziamento econômico da cidade
Quando a perspectiva do esgotamento total no fornecimento de água em São Paulo se tornou possível, começaram a ser formuladas as mais diversas hipóteses sobre o que aconteceria então. Além das respostas práticas sugeridas pelo poder público, como o uso da Represa Billings e o drástico racionamento de 4 (ou 5) dias sem água para cada 2 de torneiras cheias, surgiram imagens como a “diáspora paulista”, uma campanha intensiva de distribuição de cisternas e até mesmo um cenário de disputas encarniçadas pelos caminhões-pipa que viessem abastecer a cidade sedenta.
São todos cenários difíceis de imaginar na prática: um êxodo urbano de milhões de pessoas exigiria mais estradas, meios de transporte e locais para abrigá-las do que existem de fato, suscitando questões como: “Para onde iria toda essa gente?” Tampouco existem caminhões-pipa suficientes para trazer água para uma cidade tão grande. Quanto aos poços, a demanda poderia fazê-los secar rapidamente e as cisternas, por sua vez, só enchem na época chuvosa.
Êxodo?
Os cenários mais catastrofistas são afastados, mas não rejeitados, pelos analistas que se debruçam sobre o tema do abastecimento de água. Afinal, um racionamento rigoroso, que se limitasse a captar a quantidade de água que entra nos reservatórios seria profundamente traumático, mas não impossível de sobreviver a ele. Segundo o especialista em hidrologia Antonio Carlos Zuffo, da Unicamp, o uso da Billings, com todas as suas limitações, é um último recurso que permitiria evitar o cenário mais dramático este ano, em que a cidade sofreria uma evacuação ou mesmo fuga em massa até que obras de maior porte prometidas pelo governo fossem entregues. A legislação brasileira proíbe a distribuição de água não tratada, mas, no caso de um colapso, os bairros de São Paulo poderiam ser abastecidos pela Billings [1], enquanto a água potável viria de caminhões-pipa.
“Entre não receber água nenhuma e receber água bruta, fico com a segunda opção. Pelo menos o vaso sanitário funciona. Depois de três dias sem água, uma casa fica inviável”, afirma Zuffo, lembrando que essa água não poderia servir nem para beber, nem para cozinhar, nem para tomar banho. O grande empecilho para o uso da represa é justamente a impossibilidade de tratar a água em um ritmo satisfatório. A principal estação de tratamento (ETA), aGuaraú [2], é responsável por cerca de metade da água que serve São Paulo, através do Sistema Cantareira. Porém, se o principal sistema de São Paulo chegar a zero, será impossível, segundo Zuffo, aumentar a capacidade das outras estações para compensar a falta da Guaraú.
O engenheiro afirma que também é impossível levar a água da Represa Billings até a ETA Guaraú porque elas se encontram em lados opostos da cidade e com grande diferencial de altitude. O que é possível, segundo o governo estadual, é lançar a água da Billings no Sistema Alto Tietê, mas o volume tratável não é suficiente para o abastecimento de toda a cidade.
Além do problema logístico, o leito das represas também necessita de algum tempo para recuperar sua umidade. Assim, é possível que o Sistema Cantareira chegue a meados do ano com entrada de água suficiente apenas para abastecer uma parte da cidade. Por isso, Zuffo considera a possibilidade de que, em algum momento deste ano, seja necessário um rodízio mais extremo que o já aventado: 1 dia abastecido e 5 dias secos.
Locomotiva engasgada
O principal dano para a metrópole paulista, caso os reservatórios cheguem mesmo a zero, será sentido a longo prazo: o enfraquecimento, ou até esvaziamento econômico, que não ocorre de uma vez, mas lentamente. Por isso, o físico João Francisco Justo Filho, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, estima que o impacto mais duradouro da crise será econômico.
Para Justo, a partir do momento em que os reservatórios esgotem todos os volumes mortos, o momento-chave a considerar é aquele em que houver uma plena segregação da disponibilidade de água. Ou seja, quando o poder público, perante a calamidade real, for obrigado a somente fornecê-la para residências, hospitais e outros pontos estratégicos, fechando o registro de indústrias e centros comerciais.
A partir daí o efeito-cascata das consequências sociais e econômicas se intensifica. Primeiro vêm as férias coletivas e, em seguida, as demissões. Em paralelo, cai a arrecadação de impostos nas três esferas de governo, afetadas pela queda na atividade econômica. Empresas podem transferir-se para outras cidades e cancelar investimentos no principal centro econômico do País.
Ao desemprego se somaria o aumento dos preços de alimentos, sobretudo os hortifrutigranjeiros, produzidos nas cercanias da Região Metropolitana. Além disso, muitos supermercados poderiam fechar as portas, criando dificuldades de abastecimento.
Cabe lembrar também o risco de quedas de luz, já que as hidrelétricas poderão ter seu funcionamento reduzido por causa da estiagem. Reações populares, possivelmente violentas, também não são descartadas, a exemplo do que ocorreu durante o auge da falta d’água em Itu (SP), em outubro. Os especialistas, porém, não quiseram especular sobre a proporção que essas reações poderiam ter em uma cidade muito maior.
Justo também se preocupa com os efeitos higiênicos dos cortes de fornecimento. Não apenas a pressão reduzida permite a entrada de impurezas na água que abastece as casas, como a própria tubulação começa a sofrer um processo de degradação. Portanto, populações sedentas, sem emprego, com falta de energia, sem opções de lazer e com dificuldade de abastecer suas despensas também correrão o risco de contrair doenças graves [3].
Zuffo descreve o cenário como uma “bola de neve”: fechando indústrias, acaba a atividade produtiva. Começa também o desabastecimento de produtos, cujo preço aumenta, porque ele tem de vir de outras regiões. E tem o desemprego, que reflete no aumento da violência. Também cai a arrecadação de impostos, bloqueando a intervenção do poder público. “E ainda tem o problema ecológico: se não tem água nem para a cidade, como mantê-la nos rios por motivos ecológicos?”, questiona.
Paliativos
Duas propostas paliativas que têm circulado são postas em questão pelo professor da Unicamp. Uma é a construção de cisternas, que captam água em nível ainda muito superficial, ao contrário de poços artesianos. A outra é o recolhimento da água da chuva: não apenas essa solução só serve para o período chuvoso, como também envolve riscos para a saúde. A água que desce dos telhados carrega fuligem, dejetos de pombos e outras formas de sujeira.
Em falas públicas, o físico e ambientalista Délcio Rodrigues alertou para a necessidade de decretar um estado de alerta ou de emergência para permitir a racionalização do uso de poços artesianos e a fabricação massiva de caixas-d’água, comparando a radicalidade da iniciativa com uma economia de guerra, em que toda a indústria de um país é reorientada para a produção de material bélico.
Zuffo concorda com a necessidade de decretar o estado de alerta. “Nunca presenciei uma situação tão grave, então é necessário tomar esse tipo de medida”, diz.
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[1] Ao sul da capital, a Represa Billings tem 995 bilhões de metros cúbicos de água com alto índice de poluição por esgoto.
[2] A Estação de Tratamento de Água do Guaraú tem capacidade para tratar 33 mil litros por segundo.
* Publicado originalmente na edição 93 da Página 22.
(Página 22)