Notícia publicada por este jornal (25/2) traduz a precariedade de serviços públicos para uma população como a da cidade de São Paulo, com mais de 11 milhões de habitantes: a Prefeitura convoca empresas privadas a apresentarem propostas de reativação de um banheiro público no setor da Liberdade, fechado há mais de três anos. E a Prefeitura pretende estender a ação a outros bairros, pois só existem seis banheiros públicos, quando só na área central 3 milhões de pessoas circulam em um dia.
Notícias semelhantes revelariam quadros tão ou mais graves nas áreas de drenagem urbana e inundações (como as das últimas semanas) nas grandes cidades; a quase ausência de ação para eliminar áreas de risco; ou a perda de água nas redes de distribuição (mais de 20% em São Paulo, média de quase 40% no país); ou ainda a gravidade em matéria de poluição urbana, que causa 200 mil mortes por ano no Brasil. E muito mais.
A notícia fez lembrar episódio ocorrido há mais de 30 anos, quando o autor destas linhas dirigia a redação de um jornal em Goiânia. Certa manhã, o jornal foi procurado pelo diretor de um banco, pedindo que não fosse publicada a notícia de que um vigilante expulsara aos safanões de uma agência “um louco, malvestido”, que insistia em abrir ali uma conta, mas “carregava às costas um saco com um penico”. Indignado com o mau tratamento, o “louco” procurara o jornal, onde uma repórter (Lisa França) o ouvira e escrevera notícia relatando o acontecido, incluída a alegação do queixoso de que só carregava o penico às costas porque tinha incontinência urinária, na cidade não havia banheiros públicos e ele não queria urinar na rua, diante de outras pessoas.
Quando, porém, se sugeriu que a jornalista procurasse a família do “louco” e obtivesse mais informações sobre ele e as causas de seus procedimentos – principalmente o de carregar o penico -, ela argumentou: “Já fiz tudo o que as regras da redação pedem, ouvi o queixoso, o pessoal da agência, registrei as razões de todos. Mas acho que não é o caso de procurar a família. Todos os dias o jornal publica declarações de pessoas as mais loucas do País, mas que dirigem até áreas importantes de governo, e não vai perguntar às famílias se elas são desequilibradas”.
Como a regra no jornal era publicar todas as informações, mesmo que desagradassem a autoridades, pessoas influentes, decidiu-se discutir o assunto na reunião diária dos editores. E como acontece quando se discutem temas relacionados com “loucura”, o debate pegou fogo, metade dos editores a favor da publicação, metade contra. Decidiu-se publicar a notícia, preparar um editorial criticando a ausência de banheiros públicos na cidade e, no domingo, abrir espaço para que cada editor escrevesse até 20 linhas com sua opinião. E assim foi feito, com duas páginas inteiras no domingo, que tiveram muita repercussão entre leitores – e levaram autoridades a prometer que instalariam banheiros.
No dia seguinte a mesma repórter, por sugestão de um leitor da notícia do “louco”, foi verificar a precariedade do tratamento dispensado aos internos de um “asilo de loucos”. Foi publicado o texto, com foto em destaque na primeira página, na qual dezenas de internos, todos nus, recebiam um “banho” do jato de água que saía de uma mangueira manobrada por um funcionário. O diretor do “asilo” mandou carta indignada, protestando contra a “falta de ética” do jornal ao publicar a foto – embora ele e outros funcionários se houvessem manifestado no texto. O jornal respondeu em editorial: o que é falta de ética? Dar banho de mangueira simultâneo em dezenas de internos nus ou documentar no jornal a situação humilhante e calamitosa? O governo do Estado informou depois ter mandado fazer uma reforma no asilo.
Crianças brincam perto de esgoto a céu aberto em Brasília. Foto: Valter Campanato / AgenciaBrasil
Crianças brincam perto de esgoto a céu aberto em Brasília. Foto: Valter Campanato / AgenciaBrasil

Hoje a comunicação documenta a cada dia o descaso com a população, que paga impostos e mantém funcionários e serviços. Pode ser no quadro da poluição urbana (que mata 200 mil pessoas no Brasil a cada ano, segundo a Organização Mundial de Saúde), nos serviços médicos e na sua incapacidade de enfrentar doenças advindas da migração de vetores para áreas urbanas, com a remoção de seus hábitats naturais; pode ser na inacreditável deficiência dos nossos sistemas públicos de saneamento (quase 40% das residências no País não estão ligadas a redes de esgoto) e na perda de 37% da água que sai das estações de tratamento e se perde em vazamentos e furos – enquanto se discute a possibilidade de racionamento. Enfim, pode ser por muitos ângulos, todos a mostrar a inviabilidade de seguirmos pelo caminho de amontoar milhões de pessoas em áreas urbanas e não sermos capazes de atender às suas necessidades do cotidiano.
Há solução? Há poucos dias, os jornais também noticiaram que em 2018 o Lago Paranoá, em Brasília, terá suas águas utilizadas para o abastecimento de 600 mil pessoas. Há quase um quarto de século, quando o autor destas linhas foi secretário de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia do Distrito Federal, o lago recebia esgotos sem tratamento gerados por mais de 1 milhão de pessoas. Mas primeiro conseguiu-se – vencendo fortes resistências – implantar o sistema de esgotos por ramais condominiais, eficiente e mais barato, impedindo que os dejetos chegassem diretamente ao lago (graças ao condominial, Brasília tem hoje 100% na coleta de esgotos). Depois, construindo-se duas estações de tratamento no lago, com financiamento conseguido quando, num evento público, se mostrou ao então presidente Collor que eram despejadas ali, onde ele praticava jet ski, 200 toneladas de fezes humanas a cada dia (200 gramas de matéria orgânica por pessoa). Na mesma hora ele deu ordem para que o diretor de um banco oficial abrisse financiamento para construir as estações – o que foi feito. O lago deixou de receber esgotos sem tratamento. E agora servirá para abastecer a população.
Caminhos há.
* Washington Novaes é jornalista.
** Publicado originalmente no site O Estado de S. Paulo.
(O Estado de S. Paulo)