Quando se discute o tema das cidades sustentáveis, há várias noções e abordagens em disputa. Fenômeno típico de um campo marcado pela polissemia e pelas controvérsias em torno de visões de mundo concorrentes, a sustentabilidade no espaço urbano remete necessariamente à busca pelo bem viver. Sendo assim, é matéria por definição política, tanto em sua referência às formas de se viver junto na pólis, na cidade, quanto à própria essência da visão de mundo e das ideologias que ensejam. Ao contrário do que as visões tecnicista e gerencialista sobre o espaço urbano defendem, infelizmente também presentes nas disputas pelo significado da sustentabilidade, não se trata apenas de um agrupamento de melhores práticas, estratégias e recursos de gestão empregados em prol da preservação do meio ambiente nas cidades.
Nesse emaranhado de visões, debates e embates, a inexistência de uma concepção monolítica e fechada sobre o que vêm a ser as cidades sustentáveis, ao contrário do que muitos ativistas socioambientais podem imaginar, não é problema ou uma suposta etapa de uma trajetória ainda inicial de uma visão de mundo que uma dia se tornará precisa, delimitada, hegemônica e definitiva. Pelo contrário, a riqueza de opiniões e opções é fruto de um dos componentes mais importantes do desenvolvimento sustentável, que muitas vezes passa despercebido para aqueles que focalizam suas lentes sobre a natureza e se esquecem que a preservação ambiental é sempre um assunto do encontro entre “bichos, plantas e gentes”, o componente das liberdades democráticas e da construção do interesse público. Portanto, os caminhos do desenvolvimento sustentável nas cidades são muitos e levam a muitas “Romas”, a muitas cidades.
A cidade sustentável se sustenta em cima de alguns pilares. O primeiro deles é a crença de que a noção de desenvolvimento sustentável é melhor do que a de sustentabilidade, pois indica que é processo contínuo e se conecta a outras discussões sobre desenvolvimento que marcaram e marcam os debates em sociedade sobre o bem viver e o interesse público, presentes na também rica polissemia de adjetivos para o desenvolvimento: econômico, local, urbano, comunitário… Ao se trabalhar com a noção de desenvolvimento sustentável como guia para a compreensão da realidade e a intervenção social continua-se na mesma trilha da discussão sobre desenvolvimento e não se perde os avanços que o adjetivo sustentável tem conseguido arregimentar, apesar de sofrer com os duros golpes de incompreensão, pouca criatividade, covardia e interesses escusos que teimam em se aproveitar dele.
Além disso, cabe notar que sustentabilidade, por mais em voga que esteja, não é atributo de cidades. Não existem cidades sustentáveis! Existem cidades que desenvolvem dinâmicas favoráveis, mas que precisam ser sempre contínuas e refeitas, além de aprimoradas, em direção ao desenvolvimento sustentável. Não adianta sustentar o meio ambiente de uma cidade e o entorno ser degradado. Aliás, isso nem é passível de ocorrer. Da mesma forma, ao contrário do que o discurso da moda adora defender, não existem empresas sustentáveis, lideranças sustentáveis, práticas sustentáveis, existem sim organizações, pessoas, posturas e ações que contribuem para o processo de desenvolvimento sustentável e aquelas contribuem muito pouco ou nada e ainda aquelas que se opõem a isso. O desenvolvimento sustentável não se constitui em etapa final de uma longa jornada de uma cidade, uma empresa, uma liderança, na qual se atinge a sustentabilidade, mas sim na própria caminhada ad infinitum, sempre caminhada, sempre esforço, sempre mais exigente e sempre diante de novos desafios para toda a sociedade, até mesmo porque a natureza e as comunidades estão constante mutação, em direção ao bem viver e deixar outros seres e coisas bem viver e existir.
Cabe destacar também que a ideia de sustentabilidade nunca foi apenas preservar o meio ambiente, desde que Ignacy Sachs ajudou a formular a noção de ecodesenvolvimento, que depois se transformou, para pior, convenhamos, em desenvolvimento sustentável. Usando as ideias de Ignacy Sachs, pode-se compreender que o desenvolvimento sustentável é sempre em um território e, portanto, varia de um local para outro, não existindo o desenvolvimento sustentável, mas os processos de desenvolvimento sustentável em diferentes cidades. E para que ele se efetive, Sachs defende que a participação popular é essencial, visto que a defesa do meio ambiente não se mantém em contextos de baixa participação popular, restrição de liberdades democráticas, limitação autocrática da atuação da imprensa, reduzida transparência e controle social frágil. Esse pesquisador também defende que o desenvolvimento sustentável precisa se fundar na redução das desigualdades sociais e da pobreza, visto que populações em situação de vulnerabilidade estão mais sujeitas a se vitimarem com as tragédias ambientais e a darem vazão a processos de degradação ambiental para garantirem sua sobrevivência, ao passo que grupos que detém renda muito elevada em relação à média da sociedade podem desenvolver um estilo de vida baseado em consumo exagerado e desnecessário, que se torna referência para outros segmentos sociais, disseminando modos de vida pouco ou nada compatíveis com o desenvolvimento sustentável. Em suma, o desenvolvimento sustentável tem estreita conexão com o modo de vida das comunidades, sendo assim também uma expressão cultural dos diferentes grupos sociais que compõem as cidades. Por fim, ele opera dentro da chamada economia verde e inclusiva, aquela que se desenvolve em bases que protegem o meio ambiente e ajudam a mitigar desigualdades econômicas, sociais, políticas e no acesso ao meio ambiente.
Vários campos de conhecimento, como já é amplamente sabido, se cruzam na construção dos saberes ambientais, como defende Enrique Leff. No campo das chamadas ciências sociais e humanas, as tradições de estudo do Urbanismo, Economia, Direito, Gestão Pública, Ciências Sociais, Antropologia, Ciências Políticas e Administração se embaralham oferecendo múltiplas abordagens e perspectivas que devem ser resgatadas e postas em ação e diálogo para a promoção do desenvolvimento sustentável nas cidades. Nesse caldeirão, devem estar presentes o planejamento regional e urbano, o estudo dos modos de vida e sociabilidade urbanos, a análise de políticas públicas, a discussão sobre a ampliação da cidadania e as dinâmicas de democracia participativa, o direito à moradia, à mobilidade e à regularização fundiária nos espaços urbanos e uma série de outros temas, abordagens e tradições de estudos que têm como objeto de análise e de desejo as cidades.
Numa época em que as cidades também recebem inúmeros adjetivos que vão desde as cidades competitivas, cujo um dos casos emblemáticos é Barcelona, passando pelas cidades inteligentes, digitais, democráticas, inovadoras até chegar nas cidades resilientes, as cidades sustentáveis podem se transformar apenas em mais uma meta bem abstrata em um oceano repleto de possibilidades, com muitos riscos de inanição diante de tantos focos de ação, dispersando esforços e lutas. A arte e a maestria por detrás da construção dos processos de desenvolvimento sustentável nas cidades reside em se alcançar o difícil, mas necessário equilíbrio entre pluralidade de caminhos e frentes de ação e a convergência de esforços, energias e avanços nas formas de vida e convivência urbanas.
Ainda assim, nessa multiplicidade de estudos, abordagens, ferramentas de trabalho e possibilidades de ação, algumas referências são essenciais. Mesmo correndo-se o risco de deixar de lado algumas obras e pesquisadores seminais, pode-se dizer que sem algumas discussões e análises dificilmente se consegue alcançar uma compreensão mais robusta e capaz de suportar mais e melhores estratégias, políticas, programas e instrumentos de intervenção socioambiental nas cidades. São elas geradas por Pedro Jacobi e seus estudos sobre participação e meio ambiente, movimentos sociais ambientais e construção da consciência ambiental no ambiente urbano; Ricardo Abramovay e sua compreensão sobre as estreitas conexões entre mercados e realidades sociais e culturais, oferecendo inovadoras análises sobre formas híbridas de construção de dinâmicas econômicas capazes de preservar o meio ambiente e mitigar desigualdades sociais; José Eli da Veiga e a sua compreensão dos limites das dinâmicas econômicas tradicionais e os mitos da difusão da chamada “economia verde”, capaz de tudo, menos de efetivamente esverdear as cidades; Saskia Sassen, uma das maiores estudiosas das cidades, e sua discussão sobre espaço urbano, globalização, gentrificação e resistência espacial; Ladislau Dowbor e os aparatos teóricos que mobiliza para discutir desenvolvimento local de forma a valorizar, respeitar e ajudar a promover os saberes locais na construção das bases da chamada economia inclusiva e criativa; Richard Sennett e sua trajetória de estudos sobre as cidades, demonstrando como podem ser um espaço privilegiado de construção da cooperação, mas também locais repletos de contradições e ambiguidades na construção das chamadas cidades inteligentes e inovadoras; David Harvey, outro pesquisador essencial, e sua visão sobre a dinâmica econômica das cidades, sua inserção no circuito global de transações mercantis e o curto-circuito da economia capitalista nos tempos atuais; Jeremy Rifkin e sua discussão sobre economia de baixo carbono, do acesso e do compartilhamento; Mike Davis, autor de Planeta Favela, obra essencial para o entendimento da “morte e vida severina” nas cidades pelo mundo afora e seus estudos sobre a crescente urbanização, degradação do meio ambiente nas cidades, desigualdade e exclusão; Andrea Zhouri e suas análises sobre os avanços, dificuldades e ambiguidades da construção de políticas públicas ambientais e de uma governança urbana mais compartilhada na gestão do meio ambiente; Henri Acselrad e suas investigações baseadas nas noções de justiça ambiental e racismo ambiental, que oferecem um olhar essencial sobre as contradições ambientais bem escondidas no ambiente urbano; Raquel Rolsnik e suas análises sempre contundentes sobre as cidades que excluem e desrespeitam direitos das populações em situação de risco e vulnerabilidade, colocando-as em maior e mais incisiva degradação através de políticas públicas higienistas, sobretudo em tempos de megaeventos esportivos; e enfim, mas não em último lugar, Yves Cabannes e seus estudos sobre a apropriação coletiva do espaço urbano, construindo dinâmicas compartilhadas e democráticas de governança dos bens públicos urbanos tanto em cidades ricas quanto em espaços urbanos de países pobres e em desenvolvimento.
Mas como sempre perdura a pergunta, principalmente por parte do leitor ávido por se envolver nas batalhas socioambientais urbanas, de como promover efetivamente essa utopia tão necessária, urgente e possível de ser conquistada, mesmo que a duras penas, a difusão mais robusta do desenvolvimento sustentável em sua cidade, cabe listar algumas frentes de ação principais. O desenvolvimento sustentável nas cidades brasileiras opera necessariamente pela: a) ampliação dos espaços de participação popular na discussão sobre caminhos para o desenvolvimento e por parcerias intersetoriais, ou seja, entre governos, organizações da sociedade civil e empresas que não sejam capturadas pelos parceiros mais fortes e por interesses privados travestidos de públicos; b) dinâmica econômica que permita que pequenos empreendimentos inovadores em termos sociais ambientais floresçam com crédito justo e que geram trabalho, renda e condições de trabalho justas, mitigando a pobreza e reduzindo as diferenças de renda dentro do espaço urbano; c) promoção de políticas públicas que contribuam para o transporte coletivo em detrimento do individual; d) ampliação do acesso a parques, jardins e natureza não apenas para quem tem renda, status e poder nas cidades; e) política de tratamento adequado da água capaz de efetivamente mitigar problemas de enchentes ou de escassez para os pobres; e) redução dos níveis de poluição atmosférica; f) difusão de uma educação ambiental capaz não apenas de informar e conscientizar sobre os problemas ambientais urbanos, mas de mudar atitudes e posturas no dia-a-dia da realidade das cidades; g) ampliação do saneamento urbano para todos, principalmente para as comunidades periféricas; h) promoção do encontro e da vida compartilhada entre diferentes grupos que compõem o espaço urbano, fazendo florescer a diversidade em suas diferentes dimensões na concretude de um mesmo local, ao contrário de segregá-las em bairros populares, periferias e guetos; i) difusão da expressão cultural das populações periféricas, combatendo o “racismo ambiental”; j) promoção de formas compartilhadas de acesso e gerenciamento da habitação popular em oposição ao lobby dos interesses imobiliários urbanos; l) ampliação da cultura de transparência, prestação de contas e controle social; m) implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, sem que nenhuma concessão seja feita para dinâmicas empresariais ávidas por excluir os recicladores da riqueza gerada pelo lixo atualmente e por difundir tecnologias de incineração, comprovadamente desfavoráveis ao meio ambiente e a saúde humana.
Como vários caminhos levam ao desenvolvimento sustentável e como isso é quase que mudar tudo ao mesmo tempo agora e promover na Terra a “Cidade de Deus” de Santo Agostinho, pode-se começar com um passo de cada vez. Para tanto, é preciso que floresçam nas cidades não apenas o belo e contagiante espírito de indignação contra as mazelas das políticas públicas e da política no Brasil, mas também uma multiplicidade de organizações da sociedade civil, atuando nos múltiplos campos de promoção do desenvolvimento sustentável no espaço urbano, movidas por uma indignação que resulta em obras, ações, maiores e melhores debates, maiores e melhores dúvidas e controvérsias, que semeadas em solo democrático, podem levar a melhores formas de se bem viver nas cidades desde que sejam sempre regadas pelo compromisso com o interesse público.
* Publicado originalmente no site Plurale.
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