A história da disputa pelo acesso a recursos hídricos remonta aos primórdios da vida em sociedade. No início da Idade do Bronze, o acesso às águas foi um fator determinante para o florescimento das primeiras civilizações. Na Mesopotâmia – região localizada entre os rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque – e no Egito, às margens do Rio Nilo, a disponibilidade de água possibilitou o surgimento das cidades, o desenvolvimento da agricultura, da pecuária e do comércio. Tal prosperidade veio acompanhada também dos primeiros conflitos pelo acesso à água.
Mais de 5 mil anos depois, em um planeta muito mais complexo, a água continua sendo um recurso estratégico, que gera cada vez mais conflitos e cuja gestão se tornou vital para a humanidade. De acordo com o relatório Gestão da Água sob Risco e Incerteza, publicado pela ONU em 2012, “a água é um recurso natural crítico, do qual dependem todas as atividades econômicas e ecossistemas. Sua gestão requer arranjos de governança apropriados que permitam tirar a discussão das margens do governo e levá-la para o centro da sociedade”.
Essa governança, no entanto, não tem nada de trivial e continua sendo uma dor de cabeça global. A alta complexidade da gestão dos recursos hídricos combina-se com o crescimento populacional, o aumento da demanda associado às melhorias do padrão de vida das populações e fatores externos – como a mudança climática, a expansão agrícola e o desmatamento –, pressionando as reservas hídricas em nível local e regional.
O Brasil não escapa desse contexto, e a face mais evidente das limitações na capacidade de gestão do sistema hídrico é a crise de abastecimento sem precedentes que castiga o maior centro econômico do País, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Com o verão mais seco desde 1984, o Sistema Cantareira [1] viu os níveis de seus reservatórios caírem para cerca de alarmantes 13% da capacidade (até o fechamento desta edição, no início de abril).
[1] O Cantareira,composto por seis barragens interligadas por um complicado sistema de túneis, canais e estação de bombeamento, é responsável por abastecer 14 milhões de pessoas, incluindo 45% da população da RMSP (parcela correspondente a cerca de 9 milhões de habitantes)
A fim de evitar o colapso, o governo paulista propôs uma polêmica obra emergencial de transposição das águas da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul para o Sistema Cantareira. O projeto foi apresentado à presidente Dilma Rousseff. O governo fluminense, por sua vez, criticou duramente a proposição e também procurou a chefe do Executivo, afirmando que recorreria à Justiça caso o projeto fosse aprovado. O Ministério Público Estadual classificou a crise do Sistema Cantareira como “o maior conflito pela água no Brasil”.
“No momento em que os governadores começam a recorrer ao governo Federal em uma competição pela água, já fica demonstrado que os problemas do acesso aos recursos hídricos não está sendo tratado no âmbito da gestão”, comenta a consultora especializada em serviços ambientais Marussia Whately, ex-coordenadora do Programa Mananciais do Instituto Socioambiental (ISA). “A situação do Sistema Cantareira é muito grave e trata-se claramente de um problema de gestão. Já se sabia há uma década que era preciso diminuir a dependência desse sistema e em 2009 um estudo apontou que ele tinha déficits importantes. Foi irresponsável ficar contando com as chuvas”, afirma Marussia.
Mas, afinal, de quem é a responsabilidade? A incerteza sobre esse ponto revela que os problemas de gestão têm sua raiz na ausência de um arranjo adequado de governança (mais em entrevista com o ex-presidente da ANA José Machado). Na opinião de Marussia, a crise foi desencadeada por um evento climático extremo, que não foi previsto porque a Sabesp não fez um acompanhamento metodológico adequado. No entanto, não cabe à empresa de saneamento o papel de fazer essa gestão, já que se trata de uma companhia de economia mista que visa lucro.capa_2
“A Sabesp tem se mostrado eficiente nos investimentos para redução de perdas e aumento da capacidade de abastecimento – porque isso dá lucro. Mas se trata de uma empresa que vende água e não faz sentido que ela convença seus consumidores a reduzir o consumo e o desperdício, o que é fundamental na gestão sustentável da água”, afirma a consultora.
De acordo com Marussia, jamais poderia caber à Sabesp a decisão de fazer um racionamento, por exemplo. “A Sabesp jamais optará pelo racionamento, mesmo que todos os reservatórios estiverem secos. Temos uma agência reguladora, temos comitês de bacias hidrográficas. Como a decisão pode ser da Sabesp? Esse é o maior indício de desmantelamento do sistema e de uma governança precária”, disse Marussia.
Para Glauco Kimura de Freitas, coordenador do Programa Água para a Vida do WWF-Brasil, a crise tem suas raízes em uma falta de planejamento no setor, fruto do pouco interesse do poder público. “Essa crise pode trazer uma grande oportunidade para os governos entenderem que água é diálogo”, afirmou. Segundo Freitas, os recursos hídricos nunca fazem parte da agenda prioritária dos governos, e a agenda de água fica sempre na vista mais baixa dos tomadores de decisão.
“Vivemos numa cultura da abundância de recursos naturais, de água. Então o Brasil jura que nunca vai faltar água. Mas a questão não é tão imediata, falta planejamento no setor, ela tem de subir na barra de prioridades.”
A água, elemento transversal por natureza, deve estar incorporada em todos os instrumentos territoriais, de acordo com Freitas. O problema, mais uma vez, recai na questão da governança.
“Não se integram os planos de geração de energia, de ordenamento territorial do município, de desenvolvimento rodoviário e o Código Florestal à questão dos mananciais, nascentes e áreas de recarga. Então, vê-se cada vez mais um distanciamento das políticas setoriais da gestão de águas, o que deixa os mananciais ainda mais vulneráveis”, declara.
A crise da água em São Paulo serve de alerta para todo o País, já que as pressões ambientais e sociais que a ocasionaram são as mesmas que se reproduzem, de maneira geral, no mundo: aumento da demanda em um cenário de mudança climática, com crescentes incertezas na regularidade da oferta.
No Brasil, os números mostram que um aumento no consumo da água gerente de Uso Sustentável de Água e Solo da Agência Nacional de Águas (ANA), Devanir Garcia dos Santos, descreve um círculo vicioso: “A população aumenta, melhora de vida e consome mais alimentos. Os produtores rurais precisam, então, destinar mais áreas para produção de alimentos, a fim de suprir a demanda. Com isso, não apenas usam mais água, como ocupam áreas que antes produziam água. Então, consome-se mais e produz-se menos”.
De acordo com o Relatório de Conjuntura dos Recursos Hídricos, publicado pela ANA em 2013, entre 2006 e 2010, houve aumento de cerca de 29% da retirada total de água no País. O uso para irrigação foi o que mais cresceu: quase triplicou em algumas regiões. A irrigação é a principal responsável pelo uso da água no País, representando 72% do total consumido.
Segundo Santos, é preciso que as áreas que produzem grãos mantenham-se também como produtoras de água. “Isso requer alguma adaptação, por isso temos alguns programas dedicados à rotação de culturas, construção de sistemas de drenagem e captação de água e implantação de terraços ou estruturas que aumentam a infiltração de água no solo”, diz Santos. As soluções existem, mas o problema é definir quem paga por elas. “Todos se beneficiam da água, mas só alguns pagam. Por isso, as contas não fecham.”
COBRANÇA: UM CAMINHO
A cobrança pelo uso da água é o principal instrumento de gestão disponível para tentar fechar as contas (mais em “Saídas Possíveis“). Mas, no âmbito federal, essa ferramenta foi implantada, até agora, apenas em quatro bacias: do Rio Paraíba do Sul, do Rio São Francisco, do Rio Doce e dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ). Tudo está ligado. A cobrança viabiliza a gestão, que por sua vez se encarrega de obter dados, monitorar o sistema e produzir informação para um sistema de governança, que faz a gestão compartilhada do sistema.
Um dos problemas fundamentais do sistema, para Santos, da ANA, é que se tem dado muita ênfase à gestão da oferta de água – isto é, obras que garantam um aumento do abastecimento –, mas pouco tem sido feito no campo da gestão da demanda. “A gestão da demanda passa necessariamente pela adoção de práticas de uso sustentável ou racional da água”, explica.
Entram aí a diminuição de perdas físicas, como vazamentos e evaporação, a redução do desperdício, a educação ambiental da população, a captação da água da chuva nas cidades e o incentivo ao reúso da água. “Um exemplo: os municípios de menos de 50 mil habitantes não têm escala para tratar o esgoto. Mas podem fazer uma planta de tratamento intermediário, que permitirá reutilizar a água para a irrigação agrícola, produção de biomassa, ou alimento para o gado. Isso diminuiria o impacto no consumo dos reservatórios”,sugere Santos.
Uma boa opção para incentivar o uso racional da água, de acordo com ele, é o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), que remunera os agentes responsáveis pela produção de recursos hídricos usando o dinheiro arrecadado com a cobrança pelo uso da água. A ANA mantém há 14 anos o Projeto Produtor de Água, que utiliza esse instrumento. “Um aspecto que dificulta o uso do PSA e de outros instrumentos de gestão é o fato de termos dupla dominialidade: as águas de domínio da União – que inclui os rios que passam em mais de um estado ou em fronteiras – e as de domínio dos estados”, diz Santos.
O PSA também esbarra em dificuldades técnicas, por ser um instrumento ainda muito novo, de acordo com Elaine Franco de Campos, coordenadora de Projetos da Agência PCJ, órgão que dá apoio técnico ao Comitê da Bacia PCJ. Muitas vezes, diz ela, há recursos disponíveis para o PSA, mas eles não podem ser gastos, porque não se tem os recursos para as outras necessidades envolvidas com cada projeto, como a execução de estudos da área, cercamento e barraginhas, por exemplo.
Com isso, o Projeto Produtor de Água na Bacia PCJ, em 2013, só conseguiu utilizar R$ 150 milhões dos R$ 395 milhões que tinha disponível. “Não se trata só de pagar o produtor de água, é preciso viabilizar muitas outras coisas e, dependendo do local, não há marco legal que permita o pagamento”, disse Elaine.
Para Juliana Cibim, professora de Direito Ambiental da Faap, a legislação oferece instrumentos e possibilidades para uma boa gestão dos recursos hídricos, mas, na prática, ainda há muito a fazer. “A governança é especialmente complexa nas bacias com muitos municípios, por conta de interesses divergentes e dificuldades de planejamento de longo prazo. E não há dúvida de que temos uma questão de gestão a ser resolvida”, afirma Juliana, que é coordenadora de conteúdo no Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e defendeu doutorado sobre o desafio da governança da água em bacias transfronteiriças.
De acordo com ela, a gestão atual não é ruim, mas encontra obstáculos, porque a questão da água não tem o destaque que merece. “A gestão dos recursos hídricos é extremamente complexa e está atrelada ao planejamento urbano, ao Zoneamento Ecológico-Econômico, ao plano diretor das cidades e aos interesses dos diversos atores. É preciso priorizar a questão da água sempre, em vez de dar destaque a ela apenas em momentos de crise como o atual”, diz.
* Publicado originalmente na Página 22 e retirado do site CarbonoBrasil.
(CarbonoBrasil)
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