Campanha pede demarcação e homologação das terras indígenas e se manifesta contrário às PEC’s 215 e 038
“Eu vinha para cá (Brasília) e vinha chorando porque tantos parentes já passaram por aqui pedindo suas terras e foram assassinados sem tê-las”. Porém, dessa vez, Ládio Veron Guarani-Kaiowá, autor das lágrimas, não chegou ao Planalto Central apenas com a memória da luta dos que morreram sem ter a posse dos territórios tradicionais garantida.
Junto com Ládio, 20.234 pessoas de todo o mundo exigiram nesta terça-feira, 4, em Brasília, a demarcação e homologação das terras indígenas, julgamento dos processos parados, a revogação da Portaria 303, da Advocacia Geral da União (AGU), e contra as Propostas de Emendas à Constituição (PEC’s) 215 (Câmara) e 038 (Senado).
As mais de 20 mil pessoas não estavam presentes, mas subscreveram o manifesto Em Defesa da Causa Indígena, que desde junho deste ano circula o mundo. Os idealizadores da campanha, a Associação dos Juízes pela Democracia (AJD) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entregaram, ao lado de lideranças indígenas de todo país, o documento e as assinaturas para representantes dos três poderes nacionais – Executivo, Legislativo e Judiciário.
Pela manhã, organizações apoiadoras da causa indígena, lideranças dos povos, integrantes da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), deputados e demais participantes estiveram em audiência na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, durante seção presidida por Domingos Dutra (PT/MA).
À tarde, o grupo seguiu rumo ao Supremo Tribunal Federal (STF) para entregar as mais de 20 mil assinaturas para o presidente da Corte, ministro Joaquim Barbosa. Agenda que seguiria para a Secretaria da Presidência da República. A presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marta Azevedo, também se prontificou em receber o manifesto e as assinaturas.
“Essa é uma amostra de que o povo brasileiro quer que a Constituição seja cumprida. Em 1988 ficou definido que o governo federal teria cinco anos para demarcar todas as terras indígenas, o que não ocorreu em 1993 e passados quase 20 anos depois disso apenas 1/3 das terras estão regularizadas”, argumentou a desembargadora Kenarik Boujikian, representando a AJD.
Para Kenarik, a campanha e o manifesto buscam sensibilizar os três poderes da República quanto às responsabilidades diante da questão. “O Judiciário tem uma dívida com a Constituição e os povos indígenas. Os processos envolvendo a regularização das áreas não podem ficar parados durante anos, décadas. Se quiser acelerar isso, o Judiciário acelera”, salientou Kenarik.
Conforme a desembargadora, o Executivo, no caso a Presidência da República, deve apresentar um plano, com parâmetros concretos, para demarcar e homologar as terras indígenas. Da mesma forma, deputados federais e senadores devem mostrar que de fato se preocupam com os povos indígenas e em uníssono rechaçarem as PEC’s 215 e 038 – que transferem do Executivo para o Legislativo a demarcação e homologação de terras indígenas.
O manifesto foi assinado por todas as organizações indígenas brasileiras, lideranças, além de nomes como o dos intelectuais e escritores Boaventura de Sousa Santos, Eduardo Galeano, Milton Hatoum e Fernando Morais, os atores Wagner Moura e Letícia Sabatella, o jurista Dalmo Dallari, além de jornalistas e centenas de personalidades e cidadãos dos mais diversos setores da sociedade brasileira.
Estratégias definidas
“Os ruralistas estão com uma estratégia que atende dois pontos: 1. impedir a demarcação de terras indígenas que foram invadidas pelo latifúndio e não estão na posse dos indígenas, apesar de tradicionais; 2. invadir e explorar as terras indígenas que foram reconhecidas e estão na posse dos povos indígenas”, apontou o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto. Para atender a tais objetivos, conforme o indigenista missionário, as “forças anti-indígenas” articularam as PEC’s, a Portaria 303, que partiu do próprio Executivo, e o PL 1610 da Mineração em Terras Indígenas.
A liderança Guarani Kaiowá Ladio Veron enfatizou que o direito a terra foi uma vitória dos povos indígenas e apoiada pelos próprios deputados. No entanto, hoje esses mesmos políticos não querem garantir o que historicamente defenderam. Ângela Wapixana, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), lembrou que a Constituição Federal, no dispositivo indígena (artigo 231), sequer foi cumprida e deputados e senadores querem a alterar. A indígena, em protesto, decidiu não se pintar para mostrar que ser índio e índia é algo mais profundo que o aspecto visual.
“É difícil mostrar isso (o ser índio e a importância do território) para uma sociedade que não quer nos entender, mesmo porque tem entre seus heróis assassinos de índios e negros”, atacou a Wapixana, que falou pela bancada indígena da CNPI. O cacique Marcos Xukuru do Ororubá (PE), representando a Apib, corroborou com a parente dizendo que o PL 1610 não leva em consideração a proposta sobre mineração em terra indígena apresentada na proposta de Estatuto do Índio, parada no Congresso Nacional.
“Esse estatuto foi debatido em mais de dez encontros pelo país, discutido em dois anos de consulta aos povos. Por que o governo federal nunca colocou força para aprová-lo? O que vemos são os interesses econômicos se sobrepondo aos direitos indígenas”, disse o cacique Xukuru, também integrante da CNPI. Zacarias Terena (MS) ressaltou ainda que o desinteresse do governo pela questão indígena motiva a violência, pois os indígenas seguirão retomando os territórios tradicionais.
A ausência da Funai na mesa da audiência foi cobrada pelos indígenas e deputados. A assessora para assuntos parlamentares do órgão indigenista, Ticiana Imbroisi, justificou que a presidente Marta Azevedo teve outro compromisso, mas garantiu que até o final deste ano todos os estudos do processo demarcatório serão finalizados para terras indígenas Guarani-Kaiowá (MS). Além disso, que a Funai está comprometida com o Estatuto dos Povos Indígenas e que, portanto, detém opinião contrária ao PL 1610.
Ao final do encontro foi aprovada uma moção contra a PEC 215 e pela revogação imediata da Portaria 303, entregue pelos indígenas ao presidente da Câmara Federal, deputado Marco Maia (PT/RS). A Portaria 303, por enquanto, está apenas suspensa, com prazo para entrar em vigor logo após a votação pelos ministros do STF dos embargos declaratórios da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Entre outras providências, a portaria acaba com a consulta prévia, livre e informada – garantia presente na Constituição brasileira e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Violações não cessam
Na Amazônia, entre os estados do Mato Grosso e Pará, no último dia 7, um indígena Munduruku foi assassinado durante Operação da Polícia Federal em território indígena demarcado. No Mato Grosso do Sul, indígenas Kadiwéu são despejados de terra homologada há mais de um século, enquanto Guarani-Kaiowá sofrem ataques e pressões dos mais variados tipos.
No Rio Grande do Sul, indígenas Kaingang e Mbyá vivem às margens das estradas, acampados sob o intenso frio do Sul do país, sobrevivendo há décadas em pequenos pedaços de terra entre as cercas do latifúndio e o asfalto das rodovias.
No Vale do Javari, onde vivem cerca de 4 mil indígenas Marubo, Kanamari, Matis, Kulina, Maioruna, Korubo e ao menos outros 13 povos não contatados, a situação da saúde é calamitosa. Entre eles está o mais alto índice contaminação pela hepatite, sobretudo do tipo B, mortal e sem cura – mais de 85% da população está contaminada por um ou mais tipos do vírus -, e também fortes epidemias de malária. Ambas atacam diretamente o fígado, e a associação dos dois problemas tem enfraquecido a população e levado a um índice gravíssimo de mortes. Há anos a população pede medidas urgentes ao governo brasileiro – que deixou de ser uma briga por políticas públicas que atendam aos indígenas e passou a ser uma espécie de combate ao extermínio destes povos.
Outro caso emblemático é dos Awá-Guajá, no Maranhão. Caso seja concretizada, a expansão da ferrovia Carajás pela mineradora Vale promoverá o desaparecimento das florestas e da fauna, fonte de vida daqueles indígenas, que hoje têm suas terras invadidas por madeireiros.
A APIB denunciou às Nações Unidas (ONU) a violação de direitos e o genocídio promovidos contra os povos indígenas da Brasil, destacando a PEC 215 e a Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU) como instrumentos jurídicos contrários a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
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FONTE : * Publicado originalmente no site Brasil de Fato.
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