A grande maioria de nossos leitores provavelmente desconhece a malha jurídico-administrativa que preside o processo de concessão de licenças para qualquer obra que implique impacto socioambiental. Assim, pode ser induzida a supor que governos e empresas, quando iniciam novos empreendimentos – dos quais, diga-se logo, o país não pode abrir mão – estão sempre, insensivelmente, ameaçando o meio ambiente ou deslocando de seus habitats (em regra miseráveis) comunidades, índios ou quilombolas.
Não é assim. O desenvolvimento do país – sem o qual nada conseguiremos, a começar pela conservação da biodiversidade – não é inimigo do conservacionismo, nem este pode ser arguido para impedir a melhoria das condições de vida das populações, a produção de alimentos, geração de emprego e renda, o crescimento econômico e a riqueza. Pois a questão é esta: criar riqueza, sem o que estaremos obrigados a socializar pobreza, sonho de muitos fundamentalistas, para os quais, ao invés do desenvolvimento de todos os nossos povos, devemos construir parques antropológicos e neles confinar as populações marginalizadas da civilização, para servirem de universo de pesquisa para dissertações de mestrado, ou bolsas de estudo-vilegiaturas em Paris, Londres ou Nova York. Ora, desde que o mundo é mundo, o homem transforma a natureza em seu benefício. E assim devemos fazê-lo, tirando proveito da tecnologia para mitigar impactos ambientais.
A questão fundamental é mesmo esta: para uns (normalmente ambientalistas e conservacionistas moradores dos grandes centros urbanos), se o desenvolvimento é inevitável, devemos, pelo menos, manter na miséria as populações depredadas pela empresa colonial e esquecidas pela civilização.
Entre o planejamento e o início de obras que lhe darão corpo, qualquer projeto percorre, a passo de cágado, um processo de anos no qual interferem centenas de técnicos e funcionários, vários ministérios e um sem número de repartições, como o Ibama e o Incra, os Ministérios Públicos (os estaduais e o federal), os Tribunais de Contas (os estaduais e o da União) e o Judiciário. São longas e arrastadas as discussões sobre a competência da autoridade licenciadora (organismos municipais, estaduais e a União), pois a legislação é concorrente, penosa e autorização para pesquisa de campo (fauna, flora e solo) necessária para instruir os pedidos de licença (e várias são as licenças), as autorizações para supressão vegetal, ora na órbita federal, ora na órbita estadual, ora em ambas, às vezes passam das dezenas as audiências públicas a comunidades direta ou indiretamente atingidas, mobilizando entre outros órgãos, ora a Funai, quando há a presença ou a suspeita da presença de comunidades indígenas, ora, quando o impacto é sobre áreas ditas de descendentes de quilombolas, ONGs as mais diversas e das mais diversas nacionalidades, além da Fundação Palmares.
Isso não é tudo, porém, pois há o que chamaremos de “questões processuais”, caso das exigências relativas ao licenciamento ambiental, como os Estudos de Impacto Ambiental, os EIA, e os Relatórios de Impacto Ambiental (Rima), reuniões técnicas, contratação de empresas especializadas e credenciadas (e, competentes ou não, muito caras) para preparar projetos ambientais e socioeconômicos e atender às demandas, até chegar ao licenciamento, sempre carregado de condicionantes de ordem a mais vária, desde alterações técnicas do projeto original e limitações de sua abrangência, até melhorias sociais e intervenções econômicas, tudo compartilhado entre o Ibama e as autoridades estaduais, no que se constitui o Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente), sob o controle do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), e suas resoluções.
Aí se instala, regente, um emaranhado de leis, decretos, resoluções, portarias, despachos interlocutórios, exigências cabidas e descabidas, estas simplesmente protelatórias, e mais isso e mais aquilo, segundo o talante do tecnoburocrata de plantão, em regra sem compromisso com os projetos estratégicos do país, sem compromisso com os custos derivados da dilação dos prazos das obras, fazendo explodir os orçamentos, sem compromisso com nada, enfim. Para esse funcionário público, o calhamaço que repousa em sua mesa não tem nome nem representa um projeto concreto de melhoria econômica ou social, uma razão, um objetivo a colimar. Trata-se, simplesmente, de um número, uma papelada que atrapalha sua vida. Seu significado intrínseco é irrelevante, e irrelevante para a sociedade e o país sua concretização. E sem responder pelas consequências econômicas de seus atos ou de sua inação, pois, temeroso de amanhã ser processado pelo MP ou pelo TCU, é mais fácil que o funcionário público (e haveremos de concordar que, nas circunstâncias, isto é explicável) tender a adiar ou mesmo evitar qualquer despacho que implique decisão: nada fazendo, por nada pode ser responsabilizado. E assim se imuniza contra qualquer ação de qualquer auditoria ou de qualquer procurador em ócio remunerado.
Ilustro como exemplo do qual tive de viver diretamente. Nos termos de Tratado firmado pelo Brasil e a Ucrânia, e homologado pelos Congressos de ambos os países, foi constituída em 2007 uma empresa binacional, a Alcântara Cyclone Space (ACS) – da qual fui seu primeiro diretor-geral brasileiro –, com a incumbência de construir o sítio de lançamentos do foguete Cyclone-4 em Alcântara, no Maranhão, o qual, associado ao Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA), da Aeronáutica, constituiria a base de um grande complexo espacial, atraindo investimentos em ciência e tecnologia, projeto da Agência Espacial Brasileira (AEB).
Para examinar o primeiro pedido de licença, o Ibama determina à ACS (que para isso contratou empresa especializada e obteve licença das autoridades ambientais maranhenses) a pesquisa de fauna, flora e solo da área onde se pretendia erguer o empreendimento, área essa, esclareça-se, já desapropriada pela União e seus proprietários conhecidos já indenizados, embora permanecessem nas mesmas moradias. Procedimentos pré-pré-preliminares, como se vê. Os técnicos de campo, porém, já no primeiro dia foram impedidos de proceder aos levantamentos exigidos. O juiz federal titular da 5ª Vara (Seção Judiciária do Maranhão), atendendo à “Ação Cautelar Inominada” interposta pelo Ministério Público, condenou a ACS a retirar-se dos povoados ditos de descendentes de quilombolas, com seus técnicos e equipamentos, sob pena de multa (R$ 100 mil diários). Juiz e Ministério Público basearam-se em parecer de antropólogo no qual se afirma que no povoado de Mamuna, em Alcântara, os trabalhos da ACS haviam avançado sobre “áreas nas quais residiriam os que chamam de encantados, seres sobrenaturais (…) que contribuem, em muitos casos para a sustentabilidade dos ecossistemas”, os quais, moradores em rochas na praia, “por (…) terem sido perturbados, teriam se afastado dali” (fls.61/82 do Processo nº 2008.37.00.003691-5).
Resumindo a opereta bufa: a obra ficou parada um ano e quatro meses, carreando um prejuízo de milhões de dólares. Sem mais poder fazer, a ACS e a União se viram obrigadas a aceitar acordo em Assentada, de 5/11/2008 renunciando à área cedida, por força do Tratado, indo o projeto do sítio de lançamentos do Cyclone-4 abrigar-se nos limites do Centro de Lançamentos da Aeronáutica (graças ao empenho pessoal do então ministro da Defesa, Nelson Jobim). A empresa, todavia, teve de retomar todo o processo de licenciamento, para, dois anos passados obter a Licença Prévia (LP), em 5/4/2010. Mas o tempo perdido não foi recuperado e o projeto sofre atrasos que nos desmoralizam diante de nossos sócios e da comunidade internacional e podem comprometer sua viabilidade comercial.
O projeto de construir em Alcântara, um dos mais miseráveis municípios do Maranhão, um dos mais pobres estados da Federação, um centro de pesquisa, produção e aplicação científica e tecnológica no nível dos mais avançados do mundo, esboroou-se, reduzido a um sítio de lançamentos de foguetes.
Quem responde pelo atraso de nosso projeto de autonomia de lançamento de satélites, fundamental para nossa segurança, para nossas comunicações, para nossa agricultura?
Quem é responsável por manter as comunidades miseráveis na miséria?
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FONTE : * Roberto Amaral é cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.
Não é assim. O desenvolvimento do país – sem o qual nada conseguiremos, a começar pela conservação da biodiversidade – não é inimigo do conservacionismo, nem este pode ser arguido para impedir a melhoria das condições de vida das populações, a produção de alimentos, geração de emprego e renda, o crescimento econômico e a riqueza. Pois a questão é esta: criar riqueza, sem o que estaremos obrigados a socializar pobreza, sonho de muitos fundamentalistas, para os quais, ao invés do desenvolvimento de todos os nossos povos, devemos construir parques antropológicos e neles confinar as populações marginalizadas da civilização, para servirem de universo de pesquisa para dissertações de mestrado, ou bolsas de estudo-vilegiaturas em Paris, Londres ou Nova York. Ora, desde que o mundo é mundo, o homem transforma a natureza em seu benefício. E assim devemos fazê-lo, tirando proveito da tecnologia para mitigar impactos ambientais.
A questão fundamental é mesmo esta: para uns (normalmente ambientalistas e conservacionistas moradores dos grandes centros urbanos), se o desenvolvimento é inevitável, devemos, pelo menos, manter na miséria as populações depredadas pela empresa colonial e esquecidas pela civilização.
Entre o planejamento e o início de obras que lhe darão corpo, qualquer projeto percorre, a passo de cágado, um processo de anos no qual interferem centenas de técnicos e funcionários, vários ministérios e um sem número de repartições, como o Ibama e o Incra, os Ministérios Públicos (os estaduais e o federal), os Tribunais de Contas (os estaduais e o da União) e o Judiciário. São longas e arrastadas as discussões sobre a competência da autoridade licenciadora (organismos municipais, estaduais e a União), pois a legislação é concorrente, penosa e autorização para pesquisa de campo (fauna, flora e solo) necessária para instruir os pedidos de licença (e várias são as licenças), as autorizações para supressão vegetal, ora na órbita federal, ora na órbita estadual, ora em ambas, às vezes passam das dezenas as audiências públicas a comunidades direta ou indiretamente atingidas, mobilizando entre outros órgãos, ora a Funai, quando há a presença ou a suspeita da presença de comunidades indígenas, ora, quando o impacto é sobre áreas ditas de descendentes de quilombolas, ONGs as mais diversas e das mais diversas nacionalidades, além da Fundação Palmares.
Isso não é tudo, porém, pois há o que chamaremos de “questões processuais”, caso das exigências relativas ao licenciamento ambiental, como os Estudos de Impacto Ambiental, os EIA, e os Relatórios de Impacto Ambiental (Rima), reuniões técnicas, contratação de empresas especializadas e credenciadas (e, competentes ou não, muito caras) para preparar projetos ambientais e socioeconômicos e atender às demandas, até chegar ao licenciamento, sempre carregado de condicionantes de ordem a mais vária, desde alterações técnicas do projeto original e limitações de sua abrangência, até melhorias sociais e intervenções econômicas, tudo compartilhado entre o Ibama e as autoridades estaduais, no que se constitui o Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente), sob o controle do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), e suas resoluções.
Aí se instala, regente, um emaranhado de leis, decretos, resoluções, portarias, despachos interlocutórios, exigências cabidas e descabidas, estas simplesmente protelatórias, e mais isso e mais aquilo, segundo o talante do tecnoburocrata de plantão, em regra sem compromisso com os projetos estratégicos do país, sem compromisso com os custos derivados da dilação dos prazos das obras, fazendo explodir os orçamentos, sem compromisso com nada, enfim. Para esse funcionário público, o calhamaço que repousa em sua mesa não tem nome nem representa um projeto concreto de melhoria econômica ou social, uma razão, um objetivo a colimar. Trata-se, simplesmente, de um número, uma papelada que atrapalha sua vida. Seu significado intrínseco é irrelevante, e irrelevante para a sociedade e o país sua concretização. E sem responder pelas consequências econômicas de seus atos ou de sua inação, pois, temeroso de amanhã ser processado pelo MP ou pelo TCU, é mais fácil que o funcionário público (e haveremos de concordar que, nas circunstâncias, isto é explicável) tender a adiar ou mesmo evitar qualquer despacho que implique decisão: nada fazendo, por nada pode ser responsabilizado. E assim se imuniza contra qualquer ação de qualquer auditoria ou de qualquer procurador em ócio remunerado.
Ilustro como exemplo do qual tive de viver diretamente. Nos termos de Tratado firmado pelo Brasil e a Ucrânia, e homologado pelos Congressos de ambos os países, foi constituída em 2007 uma empresa binacional, a Alcântara Cyclone Space (ACS) – da qual fui seu primeiro diretor-geral brasileiro –, com a incumbência de construir o sítio de lançamentos do foguete Cyclone-4 em Alcântara, no Maranhão, o qual, associado ao Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA), da Aeronáutica, constituiria a base de um grande complexo espacial, atraindo investimentos em ciência e tecnologia, projeto da Agência Espacial Brasileira (AEB).
Para examinar o primeiro pedido de licença, o Ibama determina à ACS (que para isso contratou empresa especializada e obteve licença das autoridades ambientais maranhenses) a pesquisa de fauna, flora e solo da área onde se pretendia erguer o empreendimento, área essa, esclareça-se, já desapropriada pela União e seus proprietários conhecidos já indenizados, embora permanecessem nas mesmas moradias. Procedimentos pré-pré-preliminares, como se vê. Os técnicos de campo, porém, já no primeiro dia foram impedidos de proceder aos levantamentos exigidos. O juiz federal titular da 5ª Vara (Seção Judiciária do Maranhão), atendendo à “Ação Cautelar Inominada” interposta pelo Ministério Público, condenou a ACS a retirar-se dos povoados ditos de descendentes de quilombolas, com seus técnicos e equipamentos, sob pena de multa (R$ 100 mil diários). Juiz e Ministério Público basearam-se em parecer de antropólogo no qual se afirma que no povoado de Mamuna, em Alcântara, os trabalhos da ACS haviam avançado sobre “áreas nas quais residiriam os que chamam de encantados, seres sobrenaturais (…) que contribuem, em muitos casos para a sustentabilidade dos ecossistemas”, os quais, moradores em rochas na praia, “por (…) terem sido perturbados, teriam se afastado dali” (fls.61/82 do Processo nº 2008.37.00.003691-5).
Resumindo a opereta bufa: a obra ficou parada um ano e quatro meses, carreando um prejuízo de milhões de dólares. Sem mais poder fazer, a ACS e a União se viram obrigadas a aceitar acordo em Assentada, de 5/11/2008 renunciando à área cedida, por força do Tratado, indo o projeto do sítio de lançamentos do Cyclone-4 abrigar-se nos limites do Centro de Lançamentos da Aeronáutica (graças ao empenho pessoal do então ministro da Defesa, Nelson Jobim). A empresa, todavia, teve de retomar todo o processo de licenciamento, para, dois anos passados obter a Licença Prévia (LP), em 5/4/2010. Mas o tempo perdido não foi recuperado e o projeto sofre atrasos que nos desmoralizam diante de nossos sócios e da comunidade internacional e podem comprometer sua viabilidade comercial.
O projeto de construir em Alcântara, um dos mais miseráveis municípios do Maranhão, um dos mais pobres estados da Federação, um centro de pesquisa, produção e aplicação científica e tecnológica no nível dos mais avançados do mundo, esboroou-se, reduzido a um sítio de lançamentos de foguetes.
Quem responde pelo atraso de nosso projeto de autonomia de lançamento de satélites, fundamental para nossa segurança, para nossas comunicações, para nossa agricultura?
Quem é responsável por manter as comunidades miseráveis na miséria?
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FONTE : * Roberto Amaral é cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.
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