(FONTE : Herton Escobar - O Estado de S.Paulo, 26/09/2012)
"Cuidado onde você pisa. Daqui pra lá é delas, e daqui pra lá é delas", avisa
Maurizélia de Brito Silva, logo que chegamos à Reserva Biológica do Atol das
Rocas.
Em resumo: só podemos caminhar pela praia e por uma trilha de areia que leva até a escada da base de pesquisa. Qualquer passo em falso para a direita ou para esquerda significa pisar na cabeça ou no ninho de alguma ave. É época de reprodução, e a areia de ambos os lados da trilha está forrada de trinta-réis, ou "esterninhas", cada uma delas deitada sobre um ovo. Aqui, o homem pede licença para passar.
É assim que se caminha pelo Atol das Rocas, uma das mais belas, isoladas e inóspitas unidades de conservação do Brasil. Um recife coralíneo circular incrustado no topo de uma montanha submarina a 270 km de Natal, que passa metade do tempo dentro d'água, metade fora.
Chegar lá exige mais de 20 horas de navegação a vela, quando o vento ajuda. À primeira vista, é uma paisagem surreal, que poucas pessoas além de pesquisadores, navegadores e pescadores intrometidos têm o privilégio ocasional de contemplar.
Um filete de areia branca que se eleva timidamente do mar, adornado de duas casinhas, algumas ruínas e uma meia dúzia de coqueiros que parecem brotar do oceano como um oásis flutuante.
Quem desembarcar neste paraíso em busca de silêncio, sombra e água fresca, porém, vai dar de cara com uma beleza brutal. O atol não tem água doce, as sombras esparsas dos coqueiros não oferecem refresco do sol e as 150 mil aves que se reproduzem ali fazem uma algazarra constante, dia e noite, 24 horas por dia.
Sem falar que esse oásis é guardado há mais de 20 anos por uma fera humana, muito mais eficiente em afastar intrusos do que os tubarões que patrulham suas águas: a natalense Maurizélia, ou Zelinha, como é mais conhecida.
Com pouco mais de 1,60 metro, 53 quilos, 46 anos, cabelos pretos, pele queimada de sol, muita dedicação e um comprometimento inabalável com a conservação, Zelinha é uma lenda do ambientalismo brasileiro. Pequenina, ex-alcoólatra e sem nível superior, nunca portou arma nem ostentou diploma, mas conhece o atol melhor do que qualquer cientista e já botou muito pescador casca-grossa para correr dali. Uma fera para tubarão nenhum botar defeito.
"Se o atol fosse fácil de cuidar eu não seria a chefe; seria algum doutor", resume Zelinha.
Funcionária da reserva desde 1991 e chefe desde 1995, ela fala do atol como uma mãe que fala de um filho. E a lista de dificuldades que enfrentou para defendê-lo é enorme. Sua maior batalha foi com os pescadores, que, atraídos pela abundância de peixes no entorno do atol, recusaram-se por muitos anos a manter suas redes e anzóis fora da reserva.
Armada apenas com um bote, uma câmera e uma filmadora, Zelinha usava de sua autoridade e malícia caiçara para afugentar os invasores. "Quando tinha de peitar a gente peitava; quando tinha de correr a gente corria; quando tinha de conversar, a gente conversava", conta. "A gente fiscalizava sem arma, sem nada, só indo pra cima e não deixando os caras pescar."
"A gente saía feito doido atrás de barco. Era todo dia", lembra Jarian Ribeiro da Silva, de 39 anos, braço direito de Zelinha desde 1996. Mais um que, como ela, chegou ao atol, se apaixonou pelo lugar e nunca mais saiu. Antes, vivia de bicos em Natal, como segurança, pedreiro, marceneiro. Até que seu irmão casou com uma pesquisadora do atol e Zelinha lhe ofereceu um cargo de ajudante, com salário que ela paga do próprio bolso.
Beleza inóspita
A rotina nos primeiros anos era duríssima. Zelinha e Jarian chegavam a passar meses sozinhos no atol, enfrentando os pescadores. A reserva não é aberta a visitação, e as expedições científicas eram esporádicas, pois a infraestrutura era mínima. Nos dois primeiros anos de ocupação havia apenas um acampamento precário, infestado de ratos e escorpiões. Em 1993 inauguraram um pequeno abrigo de dois cômodos, quarto e cozinha, onde Zelinha morou e trabalhou durante 15 anos.
Água doce sempre foi o bem mais precioso, usado a conta-gotas, exclusivamente para alimentação. A comida também precisava ser racionada, pois não havia entrega rotineira de mantimentos. Zelinha e Jarian viviam de doações feitas por barcos de passagem, pela Marinha, ou trazidas por pesquisadores.
"A gente tinha de pedir comida e água para todo mundo", recorda Zelinha, com lágrimas nos olhos. "Tinha dias que a gente só sentava e chorava. Chorávamos escondidos dos pesquisadores, para não mostrar fraqueza."
Sua personalidade forte e luta incansável contra os pescadores rendeu a Zelinha o apelido de "xerife dos mares". Na intimidade, porém, ela revela seu lado mais frágil. "A gente mostrava muita coragem no mar, mas voltava para o atol e as pernas tremiam de tanto medo", lembra ela, com Jarian ao lado. "Criamos esse personagem, incorporamos essa atitude, e assim sobrevivemos."
A solidão era um problema. Até 2008, nunca houve uma linha de comunicação permanente com o continente. O abrigo tinha uma antena de internet via satélite, mas nem sempre um laptop para tirar proveito dela. Sobrava apenas o rádio, para falar com navios e aeronaves de passagem. "Quando encostava um veleiro aqui a gente dava piruetas de alegria, porque era alguém para conversar", lembra Zelinha.
Parceria
As coisas só começaram mesmo a melhorar a partir de 2007, quando a organização SOS Mata Atlântica resolveu expandir suas atividades para o mar e escolheu o Atol das Rocas como primeiro "filho adotivo" de um programa criado para apoiar a gestão de áreas marinhas protegidas no País.
A organização captou R$ 1,7 milhão em doações privadas e criou um fundo (hoje com R$ 2,6 milhões), cujo rendimento líquido será usado para custear as despesas da reserva. Em cima disso, foram levantados R$ 900 mil para pagar a construção de uma nova base, compra de botes, motores, sistema de energia solar, internet, equipamentos, comida e outras necessidades imediatas.
A média de investimento até agora foi de R$ 50 mil por ano, segundo a SOS. As doações são de empresários paulistas, que não querem ter seus nomes divulgados. Como contrapartida, eles têm o direito de visitar o atol uma vez por ano - sob a supervisão de Zelinha, sem exceções.
O suporte é dado em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pelas unidades de conservação federais do País, que continua a bancar, principalmente, o transporte até o atol e os custos administrativos da unidade.
Os dias de penúria e mendicância acabaram. Zelinha e o atol agora têm uma base com 130 metros quadrados de área útil, com três quartos, cozinha ampla (e com geladeira cheia), e decks espaçosos para área de convívio e trabalho. Do lado de fora, dois botes infláveis e três motores. E o mais importante: uma agenda de pesquisa lotada até 2014, com equipes de até cinco cientistas revezando-se na base a cada mês.
"O atol está funcionando de forma exemplar", comemora o empresário Roberto Klabin, presidente da SOS Mata Atlântica.
Quando ele procurou o ICMBio pela primeira vez pedindo a indicação de uma unidade de conservação marinha para "adotar", ofereceram-lhe Fernando de Noronha. Mas não; ele queria um lugar menos complicado, onde a organização pudesse fazer a diferença e produzir resultados reais rapidamente. Apareceu o atol, e ele adotou na hora.
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Jonne Roriz/AE
Zelinha caminha sobre as formações recifais
no interior do atol
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É assim que se caminha pelo Atol das Rocas, uma das mais belas, isoladas e inóspitas unidades de conservação do Brasil. Um recife coralíneo circular incrustado no topo de uma montanha submarina a 270 km de Natal, que passa metade do tempo dentro d'água, metade fora.
Chegar lá exige mais de 20 horas de navegação a vela, quando o vento ajuda. À primeira vista, é uma paisagem surreal, que poucas pessoas além de pesquisadores, navegadores e pescadores intrometidos têm o privilégio ocasional de contemplar.
Um filete de areia branca que se eleva timidamente do mar, adornado de duas casinhas, algumas ruínas e uma meia dúzia de coqueiros que parecem brotar do oceano como um oásis flutuante.
Quem desembarcar neste paraíso em busca de silêncio, sombra e água fresca, porém, vai dar de cara com uma beleza brutal. O atol não tem água doce, as sombras esparsas dos coqueiros não oferecem refresco do sol e as 150 mil aves que se reproduzem ali fazem uma algazarra constante, dia e noite, 24 horas por dia.
Sem falar que esse oásis é guardado há mais de 20 anos por uma fera humana, muito mais eficiente em afastar intrusos do que os tubarões que patrulham suas águas: a natalense Maurizélia, ou Zelinha, como é mais conhecida.
Com pouco mais de 1,60 metro, 53 quilos, 46 anos, cabelos pretos, pele queimada de sol, muita dedicação e um comprometimento inabalável com a conservação, Zelinha é uma lenda do ambientalismo brasileiro. Pequenina, ex-alcoólatra e sem nível superior, nunca portou arma nem ostentou diploma, mas conhece o atol melhor do que qualquer cientista e já botou muito pescador casca-grossa para correr dali. Uma fera para tubarão nenhum botar defeito.
"Se o atol fosse fácil de cuidar eu não seria a chefe; seria algum doutor", resume Zelinha.
Funcionária da reserva desde 1991 e chefe desde 1995, ela fala do atol como uma mãe que fala de um filho. E a lista de dificuldades que enfrentou para defendê-lo é enorme. Sua maior batalha foi com os pescadores, que, atraídos pela abundância de peixes no entorno do atol, recusaram-se por muitos anos a manter suas redes e anzóis fora da reserva.
Armada apenas com um bote, uma câmera e uma filmadora, Zelinha usava de sua autoridade e malícia caiçara para afugentar os invasores. "Quando tinha de peitar a gente peitava; quando tinha de correr a gente corria; quando tinha de conversar, a gente conversava", conta. "A gente fiscalizava sem arma, sem nada, só indo pra cima e não deixando os caras pescar."
"A gente saía feito doido atrás de barco. Era todo dia", lembra Jarian Ribeiro da Silva, de 39 anos, braço direito de Zelinha desde 1996. Mais um que, como ela, chegou ao atol, se apaixonou pelo lugar e nunca mais saiu. Antes, vivia de bicos em Natal, como segurança, pedreiro, marceneiro. Até que seu irmão casou com uma pesquisadora do atol e Zelinha lhe ofereceu um cargo de ajudante, com salário que ela paga do próprio bolso.
Beleza inóspita
A rotina nos primeiros anos era duríssima. Zelinha e Jarian chegavam a passar meses sozinhos no atol, enfrentando os pescadores. A reserva não é aberta a visitação, e as expedições científicas eram esporádicas, pois a infraestrutura era mínima. Nos dois primeiros anos de ocupação havia apenas um acampamento precário, infestado de ratos e escorpiões. Em 1993 inauguraram um pequeno abrigo de dois cômodos, quarto e cozinha, onde Zelinha morou e trabalhou durante 15 anos.
Água doce sempre foi o bem mais precioso, usado a conta-gotas, exclusivamente para alimentação. A comida também precisava ser racionada, pois não havia entrega rotineira de mantimentos. Zelinha e Jarian viviam de doações feitas por barcos de passagem, pela Marinha, ou trazidas por pesquisadores.
"A gente tinha de pedir comida e água para todo mundo", recorda Zelinha, com lágrimas nos olhos. "Tinha dias que a gente só sentava e chorava. Chorávamos escondidos dos pesquisadores, para não mostrar fraqueza."
Sua personalidade forte e luta incansável contra os pescadores rendeu a Zelinha o apelido de "xerife dos mares". Na intimidade, porém, ela revela seu lado mais frágil. "A gente mostrava muita coragem no mar, mas voltava para o atol e as pernas tremiam de tanto medo", lembra ela, com Jarian ao lado. "Criamos esse personagem, incorporamos essa atitude, e assim sobrevivemos."
A solidão era um problema. Até 2008, nunca houve uma linha de comunicação permanente com o continente. O abrigo tinha uma antena de internet via satélite, mas nem sempre um laptop para tirar proveito dela. Sobrava apenas o rádio, para falar com navios e aeronaves de passagem. "Quando encostava um veleiro aqui a gente dava piruetas de alegria, porque era alguém para conversar", lembra Zelinha.
Parceria
As coisas só começaram mesmo a melhorar a partir de 2007, quando a organização SOS Mata Atlântica resolveu expandir suas atividades para o mar e escolheu o Atol das Rocas como primeiro "filho adotivo" de um programa criado para apoiar a gestão de áreas marinhas protegidas no País.
A organização captou R$ 1,7 milhão em doações privadas e criou um fundo (hoje com R$ 2,6 milhões), cujo rendimento líquido será usado para custear as despesas da reserva. Em cima disso, foram levantados R$ 900 mil para pagar a construção de uma nova base, compra de botes, motores, sistema de energia solar, internet, equipamentos, comida e outras necessidades imediatas.
A média de investimento até agora foi de R$ 50 mil por ano, segundo a SOS. As doações são de empresários paulistas, que não querem ter seus nomes divulgados. Como contrapartida, eles têm o direito de visitar o atol uma vez por ano - sob a supervisão de Zelinha, sem exceções.
O suporte é dado em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pelas unidades de conservação federais do País, que continua a bancar, principalmente, o transporte até o atol e os custos administrativos da unidade.
Os dias de penúria e mendicância acabaram. Zelinha e o atol agora têm uma base com 130 metros quadrados de área útil, com três quartos, cozinha ampla (e com geladeira cheia), e decks espaçosos para área de convívio e trabalho. Do lado de fora, dois botes infláveis e três motores. E o mais importante: uma agenda de pesquisa lotada até 2014, com equipes de até cinco cientistas revezando-se na base a cada mês.
"O atol está funcionando de forma exemplar", comemora o empresário Roberto Klabin, presidente da SOS Mata Atlântica.
Quando ele procurou o ICMBio pela primeira vez pedindo a indicação de uma unidade de conservação marinha para "adotar", ofereceram-lhe Fernando de Noronha. Mas não; ele queria um lugar menos complicado, onde a organização pudesse fazer a diferença e produzir resultados reais rapidamente. Apareceu o atol, e ele adotou na hora.
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