A tragédia que atingiu Angra dos Reis e vitimou 52 vidas na virada do ano não aconteceu por acaso. Em 2007, um relatório elaborado pelo Projeto de Proteção da Mata Atlântica (PPMA) em parceria com o Instituto Estadual de Ambiente (Inea) para a primeira fase do Plano de Manejo do Parque Estadual da Ilha Grande, já alertava a respeito de construções irregulares na praia do Bananal, onde foram encontradas 31 vítimas. “Crescimento dos assentamentos humanos em direção a cota 100metros na vertente do Bananal; ocupação desordenada acima da cota 40metros”, dizia o texto (veja imagem ao lado).
O aviso parece não ter surtido efeito. Nesta quarta, o superintendente do Inea da Ilha Grande Júlio Avelar, admitiu a O Eco que é provável que a Pousada Sankay – estabeleciamento parcialmente destruído pelos deslizamentos de terra – não tenha licença ambiental. "Ainda não tenho a informação se a Sankay tem licença ambiental, mas é provável que não", afirmou.
Com as fortes chuvas do final do ano, dezenas de desmoronamentos de terras ocorreram ao redor do município. Além disso, muitos outros morros e encostas correm sérios riscos de tombar. Maurício Ehrlich, pesquisador da área de geotecnia da Coppe-UFRJ, explica que o tipo de relevo, tanto na Ilha Grande quanto no continente, tem inclinação muito forte. No caso da praia, a capa de solo é muito estreita, além de a rocha embaixo ser recheada de fendas, o que favorece a instabilidade.
“Em resumo, o acúmulo de chuvas intensas satura a camada de terra, o que diminui a resistência do contato solo-rocha. Gera-se uma ruptura da base e a parte de cima da montanha desce junto. Além disso, as fendas das rochas são um depósito de água, o que exerce pressão elevada”, explica
De acordo com ele, áreas parecidas estão por toda a parte e em perigo. Ou seja, não deveria comportar qualquer tipo de habitação. “O problema é que os órgãos que licenciam não têm suporte técnico. Apenas o município do Rio tem o GeoRio. Ideal era que todos os estados brasileiros investigassem as estruturas geológicas. De todo modo, o volume de chuva foi anormal”, completa.
Difícil previsão
Julio Avelar, do INEA, afirma que, em virtude da grande área vegetada, era muito difícil qualquer previsão de desastres. “No futuro, podemos exigir que o interessado apresente laudo geotécnico para ter maior segurança. Mas há quantos anos não existiam aquelas casas de antigos moradores sem ter um problema desses?”, indaga.
André Ilha, diretor de Biodiversidade do Inea, também acredita que se trata de um fenômeno natural, já que as ocupações na Ilha Grande se concentram nas zonas costeiras, e não em alturas elevadas.
Ele adverte, porém, que o processo geralmente acontecia de forma muito lenta e gradual, o que mudou nos últimos tempos. Agora, tem sido drasticamente acelerado em função das mudanças climáticas. Por isso, diz, será necessário rever os planejamentos, justamente no momento em que a sociedade passa por uma transição na forma e frequência com as quais ocorrem os eventos naturais extremos.
Isimar dos Santos, professor de meteorologia do Instituto de Geociências da UFRJ, concorda que chuvas torrenciais, secas prolongadas e outros episódios serão constantes. Mas ainda é cedo para relacioná-los com o desastre de Angra.
Nesta quarta-feira, uma equipe com 28 técnicos do Inea seguem para a Ilha Grande. Durante três dias, com apoio de embarcações de outros órgãos, ela fará um levantamento de áreas de risco. Os olhos estarão voltados para a face continental, já que na parte oceânica quase não há ocupação. “Este grupo passará a conta para o governo da transferência necessária das pessoas que vivem em terrenos perigosos. Os focos principais serão as praias Vermelha, Araçatiba e Provetá. Já teremos uma excelente ideia da situação na sexta-feira”, diz Ilha.
Há ainda a proposta de, em breve, aumentar os limites do Parque Estadual da Ilha Grande para a cota 40mt e 60mt, dependendo da região. Em determinadas áreas, onde não há ocupação humana, o perímetro pode, inclusive, chegar na linha do mar. Isto impediria qualquer nova obra.
No Bananal, o deslizamento começou acima da cota 100, portanto dentro da unidade de conservação. Izar Aximoff, chefe do parque, fez um sobrevôo pela área impactada e acredita que não haja irregularidades. “Mas não dá para garantir, até porque a queda de terras pode existir no meio da encosta, sem nenhuma habitação”, afirma.
No centro de Angra, os rastros da destruição de uma noite que deveria ser de festa estão por toda a parte. O caso mais grave é o do Morro da Carioca, onde, segundo a Defesa Civil Municipal, já foram encontradas 21 vítimas fatais. Apesar de a topografia frágil, o boom populacional na região a partir da década de 50 colaborou com o desgaste do solo e acúmulo de lixo. Foi a esta época que aportou ali o estaleiro Verolme, seguido pelas construções das usinas nucleares de Angra, iniciadas em 1972.
“Este problema atinge o Morro da Carioca, mas também diversos outros, como o do Perez, Carmo e Sapiatuba, cujo deslizamento interrompeu a Rio-Santos. Praticamente todas as montanhas do Centro estão em estado de risco”, avalia Rafael Ribeiro, coordenador da Sociedade Angrense de Proteção Ecológica (Sapê), uma das não-governamentais mais atuantes no sul do estado Fluminense.
Existe uma série de fatores que contribuem para as ameaças latentes. Um dos principais é o acúmulo de moradores no município, atraídos por empregos nos estabelecimentos industriais – Angra 3, por exemplo, deve contratar nove mil funcionários no pico das obras.O resultado é conhecido: adensamento urbano, construções irregulares, impermeabilização do solo e desmatamento.
“Aconteceu isto lá. Ocupação de pontos da base e também do topo. Normalmente, quando ocorre algo semelhante, há aterros, dutos, fossas com infiltrações, bloqueios para descidas naturais de água e, o que é pior, sem qualquer engenharia por trás apoiando. A situação, que já era instável graças às características geológicas daquelas formações, piorou bastante”, explica Maurício Ehrlich, da Coppe/UFRJ. Vale lembrar que, de acordo com o Plano Diretor da cidade, aprovado em 2008, são permitidas edificações nas cotas 40 metros e 60 metros – varia de acordo com cada lugar.
Para Ribeiro, da Sapê, Angra nunca teve um planejamento urbano capaz de receber todos os imigrantes e tampouco estudos de identificação das áreas de risco. Para completar, há um grande impasse com a concentração fundiária, uma vez que as grandes baixadas encontram-se nas mãos de altos proprietários. Apesar de não estar dentro da Área de Preservação Ambiental (APA) de Tamoios, o Morro da Carioca pode sofrer a vistoria de fiscais da Superintendência do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) na Ilha Grande.
“É a prefeitura que cuida, mas nós precisamos autorizar a instalação de energia elétrica. Se uma casa estiver em Área de Preservação Permanente (APP), podemos tomar procedimentos legais. Caso volte a chover muito forte ali, pode haver novos desabamentos”, diz Júlio Avelar. Existe a possibilidade de que um fenômeno parecido volte a acontecer.
Segundo Isimar, da UFRJ, não houve excepcionalidade na noite do réveillon. Ele, que ainda não estudou o índice pluviométrico daquele dia, acredita que o acidente ocorreu em virtude de eventos similares aos de 2002, quando chuvas torrenciais também deixaram dezenas de vítimas na região. “Chamamos o fenômeno de Zona de Convergência do Atlântico Sul. Trata-se da alta evaporação no oceano em decorrência do aquecimento típico do verão em parceria com a chegada de ar úmido da Amazônia. Foi o que houve no fim do ano. Esta zona pode acontecer mais uma ou duas vezes neste verão. Pelos mapas, a minha intuição é que a intensidade dos temporais da semana passada foi inferior a de 2002”, assegura.
No último dia 30 de novembro, reportagem especial publicada aqui mostrava críticas ferrenhas de ambientalistas e promotores públicos contra a emissão do Decreto 41.921 pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Na medida, aumentou-se a permissividade para a ocupação de áreas protegidas dentro da APA Tamoios, unidade de conservação que engloba a costa de Angra dos Reis e a Ilha Grande. Leia mais aqui.
Alexandre Oliveira, do Comitê de Defesa da Ilha Grande (Codig), lembra do decreto 41.921, aprovado pelo governador Sérgio Cabral em junho. A determinação, que libera parte das Zonas de Conservação da Vida Silvestre (ZCVS, uma das quatro áreas determinadas pelo Plano Diretor da APA de Tamoios) para construções, foi muito combatida pelo conselho da APA e ativistas locais. “A topografia da Ilha, assim como de Angra, é muito favorável a este tipo de acidente. As ZCVS estão todas na parte da frente e apresentam um risco enorme”, assegura.
Em comunicado oficial, Marilene Ramos, secretária de Ambiente do Estado, rechaça qualquer analogia entre o decreto e os desastres da primeira madrugada do ano. “Esse decreto foi trazido à tona com os acontecimentos em Angra dos Reis como se fosse algo que pudesse vir a agravar qualquer tipo de ocupação em área de risco no município. Na verdade, são coisas distintas (...). O que temos é uma série de processos de licenciamento de construções nessas áreas de ZCVS em que há uma dúvida na documentação existente, principalmente, em IPTU (...). O que fizemos, então, foi dizer que seria aceitável a ocupação de até 10% da zona de conservação em área já antropizada”. Luis Firmino, presidente do Inea, completa dizendo que o decreto não permite qualquer construção em encosta.
Pelo menos este imbróglio parece estar perto do fim. Segundo André Ilha, a empresa que fará o novo Plano de Manejo da APA de Tamoios foi contratada. O prazo para a confecção é de cinco meses. Já existe, porém, o trabalho feito para a parte da unidade relativa à Ilha Grande. O Conselho Consultivo local aceitou a proposta do governo e vai analisar o texto até o fim de janeiro. Caso dê tudo certo, é possível que Cabral baixe um decreto em fevereiro aprovando esta parte do plano. Até junho, as ilhas e a zona costeira se juntam e um novo decreto, este sim revogando e substituindo o 41.921, deve constar no Diário Oficial.
Enquanto o meio do ano não chega, a população de Angra tenta se recompor após um dos maiores acidentes da década. Agora, a expectativa é que o governo descubra os espaços com algum tipo de perigo e leve as famílias para locais seguros. Além disso, fiscalizar as irregularidades e conter o avanço desenfreado de novas habitações também é um passo seguro. Mas é necessário ter um plano de emergência para retirar os moradores com eficiência e rapidez ao menor sinal de problema. “Tentei sair da cidade no dia 31 de manhã, mas não consegui de jeito nenhum. Não dava para acessar o trevo, nem dar a volta pela saída do morro da Cruz. E se um dia cai uma barreira em cima da usina nuclear, que funciona sem parar?”, questiona Rafael Ribeiro, da Sapê.
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FONTE : Felipe Lobo, "O ECO" - http://www.oeco.com.br/
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