Pescadores resistiram com foice, enxada e outros instrumentos de trabalho quando 40 anos atrás homens armados a mando do suposto proprietário dos terrenos que queriam desalojá-los. Mas, depois chegaram policiais militares e derrubaram oito casas. A indignação chegou ao máximo com o despejo de uma família com cinco filhos paralíticos, “jogados ao sol na rua”, contou Vilson Correa ao Terramérica. Felizmente, o prefeito ordenou a suspensão da operação e mandou reconstruir as casas, “porque tinha um compadre” na comunidade desalojada.
Vilson tinha nove anos naquele 1970, quando sua casa foi uma das destruídas. Foi seu batismo de fogo na luta para manter a comunidade pesqueira de Zacarias, no município de Maricá, a 60 quilômetros do Rio de Janeiro, diante de sucessivas tentativas de desalojá-la com ameaças e atentados. Hoje, como presidente da Associação Comunitária de Cultura e Lazer dos Pescadores de Zacarias, fundada em 1943, enfrenta um desafio envolvente: a construção de um grande complexo turístico, residencial e comercial que pode extinguir o modo de vida tradicional de seu povo.
A Vila de Zacarias, com suas cem famílias, é exemplo da pressão que sofrem os pescadores artesanais no Brasil, ampliada nos últimos anos por uma expansão econômica que se assenta em grandes projetos energéticos, logísticos e turísticos. Hidrelétricas que se conta às dezenas em alguns rios e agora invadem a Amazônia deslocam populações ribeirinhas e alteram a ecologia fluvial, acabando com as condições para a pesca tradicional. Portos e complexos industriais e turísticos são instalados em baías e outros ecossistemas propícios para a reprodução de peixes e mariscos.
O petróleo, que no Brasil é extraído principalmente do fundo do mar, é outro carrasco, não apenas por seus frequentes vazamentos, como também pela extensa infraestrutura que exige em portos, dutos e embarcações. Diante dessa ofensiva contra seus espaços, o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil, que se organizou na primeira conferência nacional do setor em 2009, iniciou em junho uma campanha pela criação de Territórios das Comunidades Tradicionais Pesqueiras. Trata-se de conseguir 1,38 milhão de assinaturas para propor um projeto de lei que reconheça e garanta o direito dos pescadores a um território, que inclua terras e água, onde possam viver de seu trabalho e sua cultura.
As propostas de iniciativa popular devem ser recebidas pelo Poder Legislativo quando contam com apoio de pelo menos 1% dos eleitores, segundo a Constituição de 1988. Quatro projetos apresentados dessa forma já foram aprovados. Ao contrário dos indígenas e dos quilombolas (descendentes de escravos africanos que vivem em comunidades remanescentes), os pescadores não contam com uma legislação que permita demarcar uma área exclusiva e comunitária, embora seus direitos sejam reconhecidos como um dos povos tradicionais deste país com mais de 192 milhões de habitantes.
O desenvolvimento impulsionado pelo governo estimula “a privatização dos corpos de água” e a aquicultura em escala empresarial, em detrimento dos pequenos pescadores, disse Maria José Pacheco, do Conselho Pastoral dos Pescadores, que apoia o movimento desde Olinda, no Estado de Pernambuco. Segundo ela, a pesca tradicional responde por cerca de 70% do pescado consumido no Brasil. Sua defesa também é uma questão de segurança e soberania alimentar. Os territórios de pesca garantiriam a “reprodução física e cultural” das comunidades pesqueiras, em sua “lógica de visão de mundo, de não acúmulo, mas de relação harmoniosa com a natureza”, acrescentou Maria José ao Terramérica.
No Brasil, há 1,5 milhão de pescadores, de acordo com o Conselho Pastoral, enquanto o Ministério de Pesca e Aquicultura tinha registrados 853.231 até o final de 2010. As estatísticas são precárias, inclusive sobre produção pesqueira, e excluem muitas mulheres que se dedicam a essa atividade, destacou Maria José. “Resistir já é uma vitória”, afirmou ao Terramérica a pescadora Marizelha Lopes, da Bahia, uma das coordenadoras da campanha pelos territórios. O petróleo, as represas e a indústria do camarão são os grandes inimigos do Nordeste.
A criação de camarões se expandiu destruindo mangues vitais para a vida marinha, explicou Marizelha, de uma família de 11 irmãos pescadores na Ilha da Maré, onde “80% dos oito mil habitantes” se dedicam à pesca. A ilha fica perto de Salvador, capital baiana e um grande mercado consumidor. “Não somos contra o progresso, desde que não seja excludente” e a aquicultura e os grandes projetos não impossibilitem a pesca artesanal, esclareceu, acrescentando que não se pode obrigar o pescador a se transformar em aquicultor. “Sou pescadora, não sei fazer outra coisa e não quero”, ressaltou.
As reservas extrativistas (Resex), áreas em que os povos tradicionais aproveitam produtos naturais de maneira sustentável e limitada, são uma alternativa para os pescadores. Nasceram da luta dos seringueiros contra o desmatamento dos madeireiros e agricultores. Em Arraial do Cabo, norte do Estado do Rio de Janeiro, foi criada uma Resex Marinha que beneficia 300 famílias, destacou o secretário estadual de Meio Ambiente, Carlos Minc, em resposta aos pescadores que o criticam por ter autorizado projetos que afetam a atividade.
Entretanto, tanto as Resex quanto as terras de indígenas e quilombolas já demarcadas sofrem invasões de latifundiários e empresas, afirmou José Carlos Feitosa, pescador que enfrenta conflitos diferentes na Amazônia. Ele vive em Aveiro, às margens do Rio Tapajós, grande afluente do Amazonas, onde o governo planeja construir cinco grandes centrais hidrelétricas nos próximos anos. “Será a morte do Tapajós”, teme José Carlos, membro de uma colônia de aproximadamente dois mil pescadores, cuja presença certifica “uma bacia ainda abundante em peixes”.
Maricá era o grande fornecedor de pescado na cidade do Rio de Janeiro há três décadas, quando entregava de 60 a 70 toneladas por semana. Hoje, dificilmente alcança cinco toneladas, disse Roberto Ferraz, secretário-geral da Federação das Associações de Pescadores Artesanais do Estado. Mesmo assim, Vilson persiste na resistência em Zacarias, que começou com seus avós, antes de 1940, quando apareceu um proprietário da terra com documentos oficiais, embora a comunidade pesqueira vivesse ali há “três séculos”, segundo afirmou.
A ameaça atual é a construção de quatro hotéis, um conjunto residencial, centros comerciais e campos de golfe e hipismo na propriedade conhecida como Fazenda São Bento da Lagoa, que inclui a vila dos pescadores. O novo dono da terra e do projeto, a empresa de negócios imobiliários IDB Brasil, administrada pelo grupo espanhol Cetya, em sua publicidade promete a “regularização dos terrenos da comunidade de pescadores de Zacarias” e melhorias ambientais, como reflorestar a área com espécies nativas e tratar todo o esgoto. Os pescadores veem no projeto uma ameaça de extinção. E seus aliados ambientalistas temem que seja destruída a biodiversidade da restinga, o ecossistema que separa a grande Lagoa de Maricá do mar.
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FONTE : (Terramérica/Envolverde)
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