Há algumas décadas atrás, quando começava minha militância em prol da causa ambiental, especialmente no tocante à defesa das florestas tropicais, me chamou a atenção a leitura de um livro intitulado “Mito Moderno da Natureza Intocada” (de Antonio Carlos Sant’Ana Diegues, sem dúvida constitui um clássico da literatura ambiental e uma obra referencial), em que se discutia não apenas o modelo de unidades de conservação em que não havia a presença humana ou se retiravam as populações dessas unidades, mas se questionava todo o paradigma da concepção preservacionista em que eram necessários “santuários naturais intocados”.
Foi bastante salutar e enriquecedora a leitura, e pelo que apreendi e inferi da minha bagagem literária ambiental, a publicação de tal obra coincidiu com o a eclosão e difusão do termo “socioambiental”. Em suma, no intervalo político entre a conferência de Estocolmo em 1972 e a conferência do Rio em 1992, o movimento preservacionista global passava-se de uma visão em que os remanescentes naturais deixavam de ser tratados segundo uma óptica em que a melhor maneira de protegê-los seria isolá-los, para uma óptica (apregoada como conservacionista) de integração do ser humano nesses ambientes ou em parte deles. Até aí tudo bem …
O grande problema é que não apenas se passou para o extremo oposto do espectro ideológico, mas o próprio discurso, ou melhor, retórica “socioambiental” se tornou uma enorme panacéia universalmente aceita e acrítica. Ou seja, por um lado passou-se à profissão de fé de que o homem tem que integrar tudo, não sendo lícito excluí-lo dos últimos remanescentes virgens, sendo que, no caso do Brasil em particular, as unidades de conservação de proteção integral não constam mais na agenda política.
Por outro lado, tem-se um discurso que abrange quase tudo, uniforme e pasteurizado, em que todos (ou quase todos) concordam democraticamente e tacitamente de que é preciso “crescer sem destruir” (e ainda poucos questionam o limite ou teto máximo para esse “crescimento”). Esse discurso vai desde estudos sérios e consistentes até a física holística, teoria do tudo, modismos, política vazia e tudo mais que couber…
Uma exemplificação nítida disso foi a Cúpula dos Povos na Rio+20, da qual participei em meados desse ano, em que se misturavam movimentos sociais, hippies, espetáculos circenses, manifestações feministas e todo um caldeirão cultural que raramente falava sobre proteção de “bichos e plantas” propriamente ditos.
Alguns ambientalistas críticos argumentam que o discurso “socioambiental” é necessário ao movimento conservacionista, por ser mais palatável politicamente para as “grandes massas”, e logo, sua retórica seria um “mal necessário” para angariar simpatizantes à causa ambiental (“os fins justificam os meios”). Pragmaticamente até concordo, a questão é o exagero a que se chegou, e o temor de que simplesmente se caia num perigoso consenso em que se perderam de vista os reais problemas e suas respectivas reais soluções (que na maioria das vezes contrariam os interesses de curto prazo).
O mais preocupante disso é que não apenas o meio político, mas o próprio capitalismo selvagem se apoderou dessa panacéia vazia, e camuflou sua voracidade destrutiva atrás de um discurso homogêneo, tépido, emoliente e em que todos concordam. E poucos mantiveram a lucidez ou o espírito crítico para desmascarar esse “inimigo sem rosto”.
Atualmente algumas vozes ainda colocam o “dedo na ferida”: superpopulação, perda maciça de biodiversidade e outras inúmeras reais mazelas que, pelo fato de nos incomodarem (colocar o “dedo na ferida” sempre incomoda) e clamarem por medidas urgentes e políticas de longo prazo muitas vezes duras e anti-populistas (inclusive controle de natalidade), são sempre camuflados pelo discurso “socioambiental, transverso, inclusivo, e pela necessidade de revermos nossos padrões de crescimento…”, tão pomposo como redundante, óbvio e vazio …
E os sete bilhões de habitantes que superlotam nosso esgotado planeta? Não será hora de colocar um limite? E as destruídas e sofridas florestas tropicais que ainda abarcam mais da metade da biodiversidade das terras emersas? Não será hora de deixá-las intocadas, como um repositório genético para as futuras gerações? Mas as grandes massas votantes e seus representantes ainda não têm a coragem de tomar essas medidas e preferem ficar repetindo o “discurso socioambiental”.
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FONTE : Bruno Versiani dos Anjos é analista ambiental do IBAMA e MsC em Ecologia (mestre em Ecologia).
Nota: O livro “Mito Moderno da Natureza Intocada“, de Antonio Carlos Sant’Ana Diegues, está disponível para acesso e download, no formato PDF, em http://www.radioisotopos.ufrj.br/radioiso/arquivos/DIEGUES_MITO.MODERNO.NATUREZA.INTOCADA.pdf
EcoDebate, 30/08/2012
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