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segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Agrotóxicos e o caráter predatório do capital - Raul Marcelo

Para o pensador István Mészáros (1), “no momento em que o capital, com seu dinamismo irrepreensível e não problemático que tudo invade, apareceu no palco histórico, a margem de segurança de seu impacto objetivo sobre a natureza era tão imensa que as implicações negativas não faziam diferença”. Contudo, Mészarós destaca que “as circunstâncias de nosso tempo carregam a certeza absoluta da autodestruição humana no caso de o corrente processo de reprodução sócio-metabólica do capital não for levado ao seu fim definitivo no futuro próximo”. Para o pensador “não há nada em princípio integralmente repreensível na destruição de determinadas partes ou formas da natureza para sua transformação em alguma outra coisa”, mas “a ampla margem de segurança desapareceu para sempre”. A capacidade destrutiva do capital encontrou limites estruturais absolutos no próprio sistema, a ponto de obstruir o futuro da humanidade.

A agricultura sempre foi uma das atividades humanas de maior interferência na natureza. Contudo, é a partir da avassaladora transformação decorrente da implantação do pacote tecnológico calcado na “Revolução Verde”, em meados do século 20, que se aprofundam as alterações no ambiente rural e na organização econômica e social do campo. No Brasil, de tal transformação resultou o atual modelo predominante de agricultura identificado no agronegócio.

[Leia na íntegra]O agronegócio brasileiro caracteriza-se por uma dinâmica produtiva que afronta qualquer anseio de justiça social, econômica e ambiental. Consolida-se como um modelo produtivo devastador, seja no aspecto social, pelo seu perfil excludente e concentrador, seja no aspecto ecológico, pela sua negligência para com os impactos ambientais que provoca.

Sob a égide do sistema capitalista, as atividades agrícolas deixaram de ter sua finalidade voltada às necessidades humanas prementes, como por exemplo, fonte de alimentos, energia e outras utilidades. As transformações da natureza permitidas pela agricultura foram incorporadas pelo metabolismo capitalista como uma de suas formas de apropriação do fruto do trabalho alheio. Qualquer finalidade “humanista” ditada pelos interesses econômicos que dominam as atividades agropecuárias passou a ser mero pretexto, não mais importando a produção para suprir exclusivamente as necessidades humanas alimentares, energéticas ou para qualquer outro fim. O capital define relevância para a atividade agropecuária como produtora e consumidora de mercadorias, permitindo o fechamento de um ciclo para o aperfeiçoamento da mais valia. Não ao acaso, é cada vez mais comum empresas fornecedoras dos insumos agrícolas e empresas compradoras da produção agropecuária comporem a mesma corporação monopolista em aprofundamento de poder sobre importante atividade produtiva. Trata-se de situação de alto risco à soberania alimentar do povo brasileiro.

O conceito de soberania alimentar declarado no “Fórum Mundial de Soberania Alimentar”, em Havana, Cuba, 2001, apresenta absoluta oposição à lógica concentradora do agronegócio: “O direito dos povos de definir as próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito a boa alimentação para toda a população com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e diversidades dos modos camponeses, pesqueiros e indígenas de produção agropecuária, de comercialização e de gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental”.

O conceito associa a defesa da soberania alimentar com a defesa da soberania econômica, política e cultural dos povos. Foi elaborado e incorporado por diversos movimentos populares e traz incisivo questionamento à transformação de produtos agropecuários em “commodities”, com a produção ditada por interesses do grande capital, inclusive, com ameaça ao abastecimento alimentar para a saciedade de vorazes interesses especulativos.

O agronegócio, por meio de sua base tecnológica e dinâmica brutal, traz sérias conseqüências: devastação de ambientes naturais e de tradições culturais locais pela expansão de fronteiras agrícolas sem a devida preocupação com os seus impactos; atropelo das obrigações legais ambientais, destacadamente das previstas no Código Florestal; transformações genéticas nas sementes, valorizando a produtividade dependente de insumos industriais em detrimento da diversidade, da adaptabilidade e da variabilidade genética das espécies; criação de animais com métodos de confinamento geradores de resíduos poluentes (hormônios, antibióticos, gases etc.), além de carregados de crueldade; incorporação maciça de agrotóxicos, de fertilizantes químicos industriais e de pesadas máquinas ao modo de produção, trazendo erosões, contaminações ao ambiente e riscos à saúde humana, sobretudo ao trabalhador rural.

Essa panacéia tecnológica altamente excludente criou para a produção agropecuária uma forte relação de dependência de produtos industriais sob domínio de transnacionais e empobreceu o agricultor por meio do amplo fluxo de renda do campo para a geração de lucros ao setor industrial. Suas implicações sociais e econômicas são nefastas: queda de qualidade no modo de vida camponês, precário assalariamento do homem do campo, êxodo rural e urbanização desenfreada e desorganizada. A análise compilada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) com base no Plano Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008, retrata a situação: das 8 milhões de famílias que vivem no campo, 2 milhões de famílias sobrevivem com menos de 1 salário mínimo mensal.

No Brasil, a implantação das técnicas da “Revolução Verde” ocorreu sob o beneplácito estatal, por meio de subsídios à aquisição de pesadas máquinas agrícolas; de privilégios fiscais às indústrias de insumos; pesquisa, assistência técnica e extensão rural públicas subservientes aos interesses das transnacionais; e no financiamento e crédito rural atrelados à obrigatoriedade de aquisição e uso de fertilizantes industriais e de agrotóxicos.

Com o crescimento das preocupações ambientais, as corporações empresariais beneficiadas por esse modelo destrutivo, principalmente as transnacionais dos agrotóxicos, também detentoras do domínio de sementes híbridas e transgênicas, passaram a, descaradamente, propagandearem-se como corporações voltadas aos interesses da “vida”, focadas no desenvolvimento de tecnologias sustentáveis ambientalmente. Tentaram criar um mito de que sem seus produtos não haveria capacidade de suprir as necessidades alimentares da população: os efeitos colaterais dos agrotóxicos são apregoados como uma espécie de mal menor ante a possibilidade de fome mundial. Desconsideram que, mais do que uma questão de produção de alimentos, a fome que recai sobre grande parcela da população mundial é conseqüência do insano caráter concentrador do sistema capitalista.

Em face das evidentes contradições entre a sustentabilidade propagandeada por essas corporações e os danos provocados por seus processos produtivos e produtos, não existe viabilidade para medidas mitigadoras ou compensatórias para técnicas tão degradantes à natureza e ao ser humano. Nem mesmo uma pretensa agenda de desenvolvimento verde, dentro dos marcos do capitalismo, conseguiria resolver tal contradição, pois o capital, embora criação humana, é inumano, irracional e desprovido de senso de auto-preservação, tendo apenas como sua essência a transformação de tudo em mercadoria.

É nessa perspectiva que cinicamente as transnacionais tentam, por exemplo, impor os agrotóxicos e os transgênicos como elementos essenciais da economia brasileira, associando-os, além da necessidade à produção de alimentos, como fundamentais à geração de empregos e de riqueza à nação. Seus asseclas cantam em prosa e verso a participação do agronegócio e da agroindústria no PIB e na pauta de exportações brasileiras. Reafirmam, orgulhosamente, o histórico e atrasado caráter agroexportador e concentrador da economia brasileira. Por outro lado, dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) evidenciam a concentração de terras no campo brasileiro: 1% das propriedades rurais detém 46% da área passível de produção agropecuária, sendo ainda que os 50 mil proprietários de áreas rurais superiores a 1.000 hectares concentram mais de 50% das áreas agricultáveis.

Os agrotóxicos estão entre os elementos do agronegócio mais emblemáticos do caráter predatório do capital. São compostos químicos desenvolvidos para efeito biocida. Hoje, estão, predominantemente, em voga aqueles de síntese orgânica industrial, cuja disseminação inicial ocorreu em conveniente desvio de finalidade de substâncias que inicialmente apresentavam propósito bélico, como armas químicas. Tal desvio foi de grande contribuição para o crescimento e a pujança da indústria química no pós-guerra. Entre os exemplos dessas substâncias de guerra estão os gases letais derivados de ácido fosfórico, que deram origem a pesticidas do grupo dos organofosforados, ainda de intenso uso na agricultura brasileira, muito embora com proibições em ampla gama de países.

Pelas suas características próprias e pelo seu propósito de uso, os agrotóxicos distinguem-se de outras substâncias perigosas utilizadas ou derivadas de outros processos produtivos. Enquanto nas últimas, a ação humana busca tirá-la do ambiente, expurgando qualquer possibilidade de exposição direta e afastando risco ambiental ou à saúde, os agrotóxicos têm sua disseminação intencional no ambiente, inexistindo técnicas de aplicação que permitam seu uso sem qualquer risco de exposição às pessoas ou ao meio ambiente. Considere-se o agravante de que seu uso mais comum ocorre sobre produtos que a população irá consumir na sua alimentação.

Paradoxalmente, constata-se que a nocividade ambiental dos venenos agrícolas compromete, ao longo do tempo, o próprio sistema de produção, impossibilitando aquele que é o suposto objetivo da tecnologia: redução de ataques de pragas e aumento da produtividade agrícola. Ocorre que somado à monocultura, o intenso uso de pesticidas provoca desequilíbrios ecológicos que induzem o ressurgimento de pragas ou a proliferação de novas pragas pelo crescimento populacional descontrolado ocasionado pela quebra da biodiversidade, ou pela resistência genética adquirida, formando “superpragas”, quase indiferentes aos agrotóxicos. Entre os exemplos, pode se citar a recente e descontrolada afetação sofrida pela citricultura paulista, em função da disseminação do “Greening”, doença bacteriana transmitida pelo inseto Diaphorina citri.

No âmbito da saúde humana, o impacto dos agrotóxicos assume proporções impressionantes. De acordo com alguns pesquisadores, estimam-se em aproximados 540 mil trabalhadores contaminados anualmente por agrotóxicos no desenvolvimento de atividades de trabalho no país, com 4.000 mortes (2). Afora as intoxicações de trabalhadores, os agrotóxicos ocasionam riscos à saúde da população geral por meio da contaminação de mananciais de captação de água para consumo e de alimentos.

Seguindo a lógica de subordinação aos interesses maiores do capital, a partir de 2008, o Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos do mundo e, nos últimos anos, o grande importador dessas substâncias letais, muitas com uso vetado no próprio país de origem. O opulento agronegócio brasileiro passa a dar sobrevida às estruturas industriais em obsolescência do exterior, como é o caso daquelas que processam e sintetizam agrotóxicos à base de paraquat, de carbofuran e de outras substâncias organofosforadas.

São Paulo é o estado que mais consome agrotóxicos, representando cerca 20% do mercado nacional. Também é o campeão dos casos notificados de intoxicações por agrotóxicos, correspondendo a 26,71% do total das notificações registradas em 2007.

Neste quadro, apresentamos Projeto de Lei nº 281/2010, objetivando o cumprimento da determinação constitucional de proteção à saúde e ao meio ambiente pelo poder público.

O projeto dispõe sobre normas de controle, produção, comércio e uso de agrotóxicos no Estado de São Paulo. A proposição levou em conta a competência concorrente prevista na Constituição Federal e tem como orientação primordial a proteção da saúde humana e do meio ambiente, além de uma produção agrícola de qualidade e menos dependente das transnacionais.

A proposta inova ao prever, expressamente: um cadastro de caráter autorizativo e não apenas homologatório como ocorre hoje, possibilitando aos órgãos estaduais de saúde, agricultura e meio ambiente, responsáveis pelo controle e fiscalização, a tomada de medidas mais restritivas que as dos órgãos federais; exemplifica motivações para o pedido de impugnação de cadastro de agrotóxicos, alertando entidades organizadas e cidadãos para a possibilidade da iniciativa e para maior atenção ao tema; cria um sistema de monitoramento de resíduos e de aperfeiçoamento da fiscalização; traz ao poder público estadual a obrigação de divulgação de técnicas substitutivas aos agrotóxicos; exemplifica tipificações de condutas, de modo a dar maior força coatora frente às irregularidades, uma vez que, hoje, a pouca eficácia das ações do poder público estadual levam ao desdém e favorecem a negligência do suposto fiscalizado; define o papel da assistência e da responsabilidade técnica aos estabelecimentos com atividades relacionadas aos agrotóxicos; e possibilita maior controle social sobre a questão, pois estipula instrumentos aos órgãos estaduais para dar eficácia e efetivamente cumprir suas atribuições constitucionais e, por outro lado, viabiliza maior cobrança política e jurídica perante eventual inércia governamental.

Num período em que as estruturas de Estado são colocadas em xeque pelas forças políticas neoliberais que hegemonizam os aparatos governamentais, o tema dos agrotóxicos deve ser trazido à baila, não só pelos seus efeitos danosos no âmbito sanitário e ambiental, mas pela sua profunda relação com um sistema econômico injusto, de amplo e unilateral benefício aos interesses do capital.

A representação política ruralista/agronegocista passa por intenso recrudescimento, com fortes interações nas estruturas de poder, ditando políticas públicas, iniciativas legislativas conservadoras e influências no judiciário, sempre voltadas ao benefício do modelo de produção concentrador, excludente e devastador. A forma de ação de tais forças retrógradas ilustra a indiferença que, mesmo perante as evidências de agravamento do colapso ambiental no futuro próximo, o capital se coloca como absoluto e “fecha os olhos” para a insuperável contradição trazida pela grave crise ambiental, persistindo na sua ilusão de “eterna” reprodução. Fazem-se necessárias contraposições a essas forças destrutivas e reacionárias. Em seu modesto alcance, o Projeto de Lei nº 281/2010 e o debate que se pretende agitar a partir dele buscam extrapolar o foco meramente tecnicista da questão, trazendo à tona as faces política e ideológica que envolvem a questão dos agrotóxicos.

Notas:

(1) ISTVÁN MÉSZÁROS, “O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico”, Boitempo Editorial, 2007, p.27/28.

(2) FREDERICO PERES e OUTROS, “Os Impactos dos Agrotóxicos sobre a Saúde e o Meio Ambiente”, Revista de Ciência & Saúde Coletiva, Vol. 12, nº 1, jan/mar, 2007, p.4 (editorial).
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FONTE : Raul Marcelo é deputado estadual e líder do PSOL na Assembléia Legislativa do estado de São Paulo. Artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação. (EcoDebate, 04/10/2010).

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