“Nossos "lixos" nos aproximam do comportamento "humano e sanitarista" da matriz desta visão do mundo eurocêntrica”, ressalta Jacques Saldanha durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line. Ao entender o marco regulatório acerca do tratamento do lixo urbano, Saldanha explica que, para ele, lixo é algo que não existe. “Tudo o que não serve, sobra ou é excretado por uma espécie será, de alguma forma, o nutriente e a fonte de sobrevivência de outra”, explica. Para ele, “tanto o plástico quanto o Bisfenol A são ícones deste momento de nossa história planetária que nos abre, por sua crise socioambiental, oportunidades de nos tornarmos alfabetizados ecológicos”.
Com a aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, realizada no início de agosto, o país passa a ter um marco regulatório na área de resíduos sólidos. A lei deixa clara a diferença entre o que é resíduo e que é rejeito e reúne princípios, objetivos, instrumentos e diretrizes para a gestão dos resíduos sólidos. O projeto responsabiliza ainda as próprias empresas pelo recolhimento de produtos descartáveis e estabelece a integração de municípios na gestão dos resíduos. Além disso, segundo esta lei, toda a sociedade é responsável pela geração de lixo.
Luiz Jacques Saldanha, que concedeu a entrevista a seguir por email, é engenheiro agrônomo e ambientalista.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor analisa esse marco regulatório para o tratamento de lixo urbano no país aprovado recentemente?
Luiz Saldanha – Sem dúvida que toda a situação em que encaramos e esclarecemos o que vinha sendo levado, há décadas, de forma turva e confusa, é um passo importantíssimo. A partir daí, temos instrumentos para sabermos como enfrentaremos esta dramática vergonha que a sociedade ocidental gerou e ampliou para todos os rincões deste planeta. Parece mentira que se precisou mais de 20 anos para que esta vergonha seja não só reconhecida como, pela primeira vez, assumida.
No entanto, mesmo com este passo, a essência de ser uma vergonha continua. Isso porque ainda estamos agindo como analfabetos ecológicos. Analfabetos porque ainda não nos demos conta de todo este manancial de matérias-prima que produzimos e, ao invés de chamá-lo por seu verdadeiro nome, insistimos em denominá-lo como “resíduos”. O ecologista fundamental de nosso tempo, o gaúcho José Lutzenberg [1], dizia que muitas vezes aquilo que chamamos de poluição é uma coisa certa no lugar errado. E aqui está, no meu ponto de vista, uma coisa certa sendo conceituada de forma errada.
Não existe lixo
Na natureza, como nos lembra o físico e ecologista austro-norteamericano Fritjof Capra [2], não existe resíduo. Tudo o que não serve, sobra ou é excretado por uma espécie será, de alguma forma, o nutriente e a fonte de sobrevivência de outra. Ou seja, considerarmos o que nos sobra, o que excretamos ou o que não nos serve como um lixo e isso demonstra um grande desconhecimento do ambiente planetário ao qual estamos irremediavelmente ligados e visceralmente vinculados. A não ser que o que geramos como resíduo seja antinatural, artificial e/ou insalubre. Aí sim, o ciclo da vida poderá ser contaminado, intoxicado e/ou violentado.
Mas, como ainda decidimos fazer parte desta visão de mundo ocidental, dar “nomes aos bois” nesta área de nossos “dejetos”, nossos “lixos” nos aproximam do comportamento “humano e sanitarista” da matriz desta visão do mundo eurocêntrica. Mundo que não só reverenciamos, mas também queremos imitar. Chegando até a perdoar algum “pequeno engano” como a recente exportação de containeres de lixo pela Alemanha, como vimos há poucos dias atrás no porto de Rio Grande. Assim, criar formas legais de impedir que “joguemos” tudo fora, indiscriminadamente, como viemos fazendo, sejamos entes públicos, indústrias ou consumidor comum, em nossos ambientes mais sagrados, como áreas de banhado, mangues, várzeas, pedreiras e espaços últimos de vegetação nativa... já nos coloca muito próximos do mundo limpo e saneado, como faz a Europa anglo-saxônica, por exemplo. Mesmo que ainda seja no papel e virtualmente.
Próximos passos
Quero destacar um avanço que considero ambientalmente importantíssimo e avançado. A inclusão do aspecto da “não geração”. Ou seja, agora nos apropriaremos desta alternativa até para discutirmos se a produção de alguma coisa pode ou não ser feita. E até mais: poderemos começar a exigir conhecermos todos os componentes de quais produtos estão no mercado atualmente.
Um caso extremamente ruidoso hoje é o uso indiscriminado de aditivos que as indústrias vêm colocando, há anos, indiscriminadamente, nas resinas plásticas com nosso total desconhecimento. E é sabido, cientificamente, que eles estão levando à extinção de todos os machos no planeta, por serem disruptores hormonais. O caso mais contundente é a substância química artificial chamada Bisfenol A [3]. Agora chegou o tempo de levantarmos esta possibilidade de sua “não geração”. Podemos repetir o que países do hemisfério norte estão fazendo: Proibirem legalmente, por exemplo, seu emprego em mamadeiras infantis e embalagens de alimentos, destacadamente infantis, como o Canadá e vários estados e cidades norte-americanas estão fazendo. Estão seguindo um princípio que esta norma brasileira contempla: o princípio da precaução. Estão, minimamente, protegendo a saúde de todas as gerações, tanto de seres humanos como de animais, já que estas moléculas permanecem não só nos produtos, mas no ciclo da vida e vão se acumulando indefinidamente na cadeia alimentar. Outro aspecto que quero destacar é a confirmação da responsabilidade sobre os “resíduos” de todos os partícipes em todas as fases de vida de quaisquer produtos, incluindo os agrotóxicos.
IHU On-Line – Que impacto a nova lei de tratamento de lixo pode ter sobre os catadores?
Luiz Saldanha – Penso que total. Primeiro porque são reconhecidos como tais. Eles terem sido citados como parte integrante no processo de “tratamento dos resíduos” é fundamental. Não sei se alguma legislação de outros países integra a figura do catador de lixo como uma solução “tecnológica” que se considera social, ambiental e sanitariamente indispensável para o correto tratamento dos resíduos urbanos.
Vale lembrar que em 1990, quando nós, um grupo de técnicos ligados à limpeza urbana e ambientalistas, fizemos um seminário em Porto Alegre, no Instituto Goethe, que denominamos de Lixo, um instrumento de resgate social, fomos olhados com desdém e com certo desprezo por muitos tecnocratas da área do saneamento. Como foi com esta norma, estes ecologistas na prática, mesmo que inconscientes, também precisaram de vinte anos para serem reconhecidos social, técnica e legalmente. E a nível nacional! Lutzenberger sempre dizia que os catadores estavam fazendo mais pela ecologia do que, muitas vezes, o próprio ministro do meio ambiente.
IHU On-Line – Como o senhor vê a questão das cooperativas que devem gerir os resíduos sólidos, como sugere a nova lei?
Luiz Saldanha – Aqui vem um tema bem complexo, mas muito interessante, social e tecnicamente falando. Porque, além de expandir para a definitiva inclusão dos catadores como uma das formas corretas de destino final dos resíduos, ainda se avança para o conceito de ligar esta tecnologia ao coletivo, ao cooperativismo. Ou seja, é chancelada legal e nacionalmente no ciclo de nossa sociedade estes elos que desnudam o nosso analfabetismo ecológico, só que agora em um outro plano. É admitida, efetivamente, sua existência que era somente de fato e, para muitos de nós, somente suportável.
Pelo menos no papel (e na postura dos que elaboraram esta norma), estes elos perdidos e escamoteáveis passam a ser reinseridos no ciclo da vida social, não mais como dois grandes rejeitos de nossa sociedade ocidental, como “lixo” e “lixeiro”. A partir desta norma, os primeiros passam a serem vistos como matérias-primas e os outros, até então excluídos por se imiscuírem em nossas “sujeiras”, como partícipes essenciais da reciclagem dos resíduos urbanos. E isso é muito belo. E mais belo porque os dois desrespeitados e desorganizados pela negligência de nossa arrogância e pelo nosso desamor, agora são dignos de serem recebidos com tapete vermelho pelos espaços empresariais e palacianos porque já não mais viverão nos fundos de nossas casas desqualificados e misturados uns com os outros. E virão em grupos organizados e, por isso, politicamente fortes, perfeitamente visíveis e socialmente acolhidos.
IHU On-Line – Quais são os principais ganhos ambientais proporcionados pela reciclagem?
Luiz Saldanha – Antes da reciclagem, devemos considerar que esta norma nos abriu um outro fato importantíssimo que citei anteriormente: a “não geração”. Isso nos remeterá a um dos “R’s” fundamentais já que saímos dos clássicos: reduzir, reutilizar e reciclar. Passamos a ter o direito definitivo de rejeitar. O que é muito mais intenso do que o provisório recusar.
Daqui para frente, teremos condições de encaminhar para reciclagem aquilo que, desde sua fabricação, já estiver presumido o princípio da reciclagem. Deixaremos de encaminhar quaisquer coisas que, por desconhecimento, poderão estar representando um perigo para os nossos parceiros sociais da reciclagem, os catadores. Teremos, como sociedade, condições de exigir mais honestidade e transparência dos fabricantes que hoje colocam no mercado produtos sobre os quais não temos nenhum acesso sobre sua verdadeira composição. E digo isso respaldado no que a ciência está demonstrando do que têm sido os aditivos e plastificantes, por exemplo, que estão escondidos e camuflados dentro de nomenclaturas onde não constam todos os seus componentes.
Este, para mim, passa a ser o princípio da reciclagem: a colocação no mercado de produtos que sejam feitos com esta perspectiva. Serem ambientalmente recicláveis e, principalmente, saudáveis para serem manuseados pelos catadores organizados em estruturas sociais como as cooperativas.
IHU On-Line – Há quase 18 anos o Congresso Nacional discute diferentes projetos de lei sobre o tratamento de lixo urbano e não consegue avançar. O que impedia isso?
Luiz Saldanha – Pelo que expus anteriormente, podemos perceber que existia um imenso vazio no que chamei de analfabetismo ecológico. Desconhecíamos ainda, como sociedade, que os nossos “lixos”, fossem humanos ou materiais, como grandes riquezas de nossa sociedade.
Friso que só a existência desta abertura legal não quer dizer que represente a mudança de percepção de nossa cultura socioambiental. Há um longo caminho a se percorrer para se transmutar este conceito de lixo humano e material. Mas esta norma mostra, depois de tantos anos, que uma mudança já ocorreu. E é esta mudança que devemos valorizar, privilegiar e elogiar. Um passo foi dado. E devemos cuidar e acalentar para que esse passo seja o patamar de outros de transformação na busca de nos alfabetizarmos social e ambientalmente.
IHU On-Line – A lei vai mudar também o tratamento que se dá aos plásticos? De que forma?
Luiz Saldanha – Pode-se perceber que tanto o plástico quanto o Bisfenol A são ícones deste momento de nossa história planetária que nos abre, por sua crise socioambiental, oportunidades de nos tornarmos alfabetizados ecológicos. Ícones que devem ser usados como fundamentos para as mudanças que são muito mais amplas. Elas envolvem nossa compreensão de que existem muitos interesses, tanto econômicos como sociais – e mesmo culturais –, para que fique tudo como está. Este é o desafio maior, em meu entendimento, das organizações que lidam com o ensino, com todas as formas de educação, com os direitos humanos e mesmo com a moral, a ética e a espiritualidade.
IHU On-Line – Apenas 13% dos municípios brasileiros tem aterros sanitários. Qual a situação desses aterros? Onde as demais cidades (87%) depositam seus lixos?
Luiz Saldanha – Assim como não deve existir “lixo”, da mesma forma também não deve existir “jogar-se fora” quaisquer materiais que deverão sempre retornar ao ciclo da vida. No meu entendimento, aceitar que possam existir locais para se colocar quaisquer coisas que devem ser “tratadas” de forma “sanitária”, nos remete novamente para os equívocos civilizatórios do analfabetismo ecológico.
Repito: se algo não pode ser reabsorvido pelos processos naturais da vida, este algo deve ser definitivamente banido. Devem ser efetivamente eliminadas tanto sua produção como sua fabricação. Deveremos todos ter a humildade de saber que, em nossa arrogância civilizatória, estamos errando. Bem como ter a tranquilidade de reconhecermos que estamos encarnados num planeta onde a Vida é a grande mestra e é ela que nos mostra o limite de nossa pretensão. Assim, falar em aterro, seja sanitário ou não, é somente mais um eufemismo do status quo.
IHU On-Line – Em Porto Alegre, há a lei que visa retirar os carroceiros das ruas. Como o senhor vê essa questão?
Luiz Saldanha – Esta é uma questão que considero muito delicada. Reconheço que há uma convivência muitas vezes bem difícil no trato dos cavalos pelos carroceiros. No entanto, vejo que, se não tivermos uma percepção mais ampla, não conseguiremos reconhecer o óbvio de que o uso dos cavalos pelos carroceiros é somente porque não dispõem de recursos para terem uma Kombi, um caminhãozinho ou outro meio de coletarem o lixo. Assim, acho que nós, de Porto Alegre, parecemos estar sendo ecologicamente corretos com os cavalos, mas socialmente injustos com carroceiros. E me pergunto: será que as pessoas não se dão conta que este grupo de pessoas não teve outra alternativa de sobrevivência do que viver de “nossas sobras”? E será que a partir desta lei, aparecerão alternativas que foram inexistentes até agora?
Acho que não fomos muito fraternos com esta parcela da sociedade, ao não percebemos que optaram por esta via para não buscarem sua sobrevivência por outras vias, como a criminalidade ou pelo comércio da droga. Ao viverem compulsoriamente do lixo, trocaram outras “facilidades” pela dureza da vida de carroceiro. O que nos resta agora é vermos como nossa cidade vai enfrentar caminhos de sobrevivência deste grupo social.
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FONTE : (Envolverde/IHU On-Line)
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