Todas as fotos que ilustram essa matéria são de autoria de Yuri Kiddo, repórter do VilaMundo.
Nem o sol escaldante das tardes de dezembro é capaz de diminuir a fila de carroceiros à espera da balança na cooperativa Vila Madalena Reciclagem.
Um a um, eles pesam os objetos recém-capturados pelas ruas paulistanas, conferem o valor arrecadado, jogam palavras-cruzadas, ignoram as notícias trágicas do Cidade Alerta e deixam o tempo passar, relaxando corpo e mente após mais um longo dia de trabalho.
“Hoje devo ter andado mais de 20 quilômetros”, revela Jessé Rodrigo, cuja carroça já estava ativa às 7h da manhã. Enquanto desmonta os objetos coletados em busca de cobre – um dos materiais mais valorizados na cooperativa –, o jovem catador conta que gosta de fazer sempre o mesmo itinerário pelo Baixo Pinheiros e lembra de um objeto inusitado que garimpou em suas andanças: uma bússola. “Vendi por mil reais. Quadros e objetos antigos costumam valer muito.”
Finalizando a coleta vespertina, os carroceiros cruzam a portinhola grafitada que dá acesso ao local e enfileiram os carrinhos. Durante duas horas, o movimento foi regular “mesmo em uma segunda-feira, que costuma ser o dia fraco para nós”, segundo Rivair de Oliveira, o Fumaça, ex-catador que hoje trabalha na cooperativa.
Função vital
A Vila Madalena Reciclagem existe desde 1989, mas há apenas um ano está sob a nova direção de Marcos, que também possui uma cooperativa de catadores em Santo Amaro. “Na região de Pinheiros tem mais material bruto na rua, então tenho mais carroceiros aqui do que lá”, conta. A cooperativa oferece chuveiro, banheiro e armário para os 22 catadores – além de carrinhos para quem precisar.
“Como trabalho há muitos anos nessa área, vejo que a maioria ainda trata os carroceiros com muita discriminação, mas sei que são pessoas honestas”, elogia o patrão. Contudo, ele afirma que “nunca viu evolução” para a situação de quem trabalha com a reciclagem de materiais descartados pela sociedade. “A vizinhança e a prefeitura mais atrapalham do que ajudam.”
Estimativas da Cempre (Compromisso Empresarial para Reciclagem) apontam para a existência de aproximadamente um milhão de catadores de materiais recicláveis no Brasil. Tal número só tende a crescer, pois muitos municípios continuam sem coleta seletiva e, em 2013, a produção diária de lixo no país foi de 210 mil toneladas.
Portanto, é inegável que o catador tem uma função social vital para a promoção de uma cidade sustentável. Contudo, ainda são impostas muitas barreiras para quem exerce essa atividade. Em metrópoles como São Paulo, por exemplo, apenas 1% do lixo é reciclado formalmente – número que seria ainda menor sem os carroceiros.
“É por isso que eu não entendo por que os motoristas ainda buzinam pra gente nas ruas, fora o tanto de gente que olha feio pra mim”, reclama Rato, há 11 anos catando para a cooperativa. Franzino, o ex-cobrador de ônibus em Teresina (PI) usa toda sua força e mais um pouco para levantar a carroça e se aproximar da balança. “Eu gosto muito do meu trabalho. Andar pela cidade me distrai a mente”, observa.
Valorização
Após a pausa para o almoço, a carroça de Antonio volta carregada com quase 300 kg de ferro, além de um bocado de papelão e centenas de latinhas de alumínio. Carroceiro há mais de dez anos, Antonio revela o segredo para evitar dores nas costas: usar a força apenas para equilibrar o carrinho, deixando o resto para as leis de gravidade.
“Já rodei a cidade inteira em busca de material para encher a carroça”, afirma. A liberdade para andar pelas ruas de São Paulo também é comemorada por Antonio. Após a pesagem dos objetos, recebeu R$ 75 e preparou o retorno para o Sacomã: “Agora é chegar em casa, tomar banho e comer uma rabada, que amanhã começa tudo de novo.”
Colorida, a carroça de Fábio foi pintada pelo grafiteiro Mundano em um evento recente. “A arte dele serviu para a gente ser mais valorizado”, aponta o catador, que encontrou uma esteira de corrida na rua e agora faz a alegria de quem está por ali. “Há onze anos que eu subo e desço as ladeiras da Vila Madalena até a rua Rodésia.”
Quem aparece com uma carroça emprestada é Márcio. Ele foi e voltou até o Itaim Bibi para encher o carrinho com plástico e papelão. “Fazia serviço em um mercado que faliu. Poder trabalhar na rua é muito melhor”, diz. Na última semana, encontrou no lixo uma panela de barro e presenteou um grande amigo com o achado.
Observando o movimento e ajudando todos que passam por ali, Fumaça é enfático ao falar da antiga ocupação. “Quero voltar a trabalhar com a carroça pela liberdade que ela me dá”, confessa. “É um serviço honesto que faz a limpeza da cidade, tarefa que nenhuma prefeitura consegue dar conta.”
* Publicado originalmente no site Portal Aprendiz.
(Portal Aprendiz)
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