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sábado, 20 de dezembro de 2014

Disputas por Territórios, Disputas por Sustentabilidade


Parte do documento apresentando pelo minerador, em reunião do COMDEMA, de Rio Grande/RS.
Parte do documento apresentando pelo minerador, em reunião do COMDEMA, de Rio Grande/RS.
Maicon Bravo, do Centro de Estudos Ambientais (CEA)
            A atual crise socioambiental passou a imprimir um padrão de relevância por questões ecológicas em variadas obras e atividades, efetivas ou potencialmente poluidoras, por diversas regiões e biomas do país. A elaboração de Estudos Prévios de Impacto Ambiental (EPIAs) e Relatórios de Impacto Ambiental (RIMAs) atestam múltiplas facetas dos problemas e conflitos ambientais que desafiam os governos federal, estaduais e municipais.
            Tendo por finalidade a defesa do ambiente, esta preocupação e relevância – expressadas na Constituição Federal, em seu artigo 225 – acaba por remeter, ultimamente, ao conceito de sustentabilidade. Presente no jargão ambiental como uma alternativa ecológica aodesenvolvimento sustentável[1], o termo passa a compor o quadro terminológico em disputa em tempos de crise socioambiental, sofrendo apropriações e manipulações a fim de traçar legitimidade sobre quais ações seriam ou não sustentáveis.
            Henry Acselrad[2] destaca que “[…] distintas representações e valores vêm sendo associados à noção de sustentabilidade: são discursos em disputa pela expressão que se pretende a mais legítima. Pois a sustentabilidade é uma noção a que se pode recorrer para tornar objetivas diferentes representações e ideias”.
            Nesse sentido, atores portadores de diferentes perspectivas disputam o conceito de sustentabilidade para justificar e tornar legais e aceitáveis – até desejáveis – suas iniciativas. “[…] Abre-se uma luta simbólica pelo reconhecimento da autoridade para falar em sustentabilidade”.
            Tal é o caso do Projeto Retiro, posto pela Rio Grande Mineradora S.A. em São José do Norte. O Relatório de Impacto Ambiental (www.rgminer.com.br/wp-content/uploads/2014/09/rgm-2014-07-03-BAIXA.pdf) de tal atividade poluidora se vale, em alguns momentos, o termo sustentabilidade.
Na página 15 consta:
O projeto idealizado considerou a natureza inerte dos minérios extraídos e dos produtos gerados, bem como o uso de processos não agressivos ao meio ambiente, que possibilitem um empreendimento pautado nas melhores práticas da sustentabilidade ambiental.
            Temos na página 18:
A área da lavra do Projeto Retiro corresponderia à extensão total dos terrenos mineralizados em minerais pesados (Ilmenita, Rutilo, Zirconita e Titanomagnetita); no entanto, durante a elaboração do projeto conceitual, com base nos estudos ambientais realizados e incorporando critérios e medidas de proteção ambiental amparadas na legislação, a RGM delimitou a área de lavra de forma a assegurar a sustentabilidade do empreendimento.
            O RIMA, em outro momento, faz uso do desenvolvimento sustentável, apresentando na página 61:
A implantação do Projeto Retiro trará poucos efeitos sinérgicos ou cumulativos negativos sobre o ambiente natural, uma vez que sua área de intervenção, em sua maior parte, já integra as áreas utilizadas a um bom tempo para atividades antrópicas altamente modificadoras do ambiente, seja para o plantio da cebola e/ou arroz, plantio de pinus, pecuária de pequeno porte ou mesmo criação de animais domésticos.
Em contrapartida poderá servir como um apoiador no processo de planejamento do crescimento e no ordenamento do território da região e, assim, auxiliar o município na construção de uma boa base, possibilitando o desenvolvimento sustentável do mesmo a longo prazo, além é claro, de promover ganhos ambientais pela compensação e recuperação ambiental previstas pelo empreendimento.
            Partindo desta leitura do RIMA, percebe-se que a apropriação que o empreendedor faz do conceito de sustentabilidade insere-se, de maneira forçosa e ligeira, na matriz da eficiência, explicitada por Acselrad (2009, p.47). De acordo com este autor,
[…] adotando-se o ponto de vista de uma razão prática utilitária, a lógica da eficiência insere o homem em processos culturais de adaptação entre meios e fins. […] A alocação eficiente dos recursos é aquela que respeitaria as preferências dos consumidores ponderadas pela capacidade individual de pagamento. Seu ambiente institucional é o mercado competitivo em que vigorariam preços relativos determinados pela oferta e pela demanda.
            Neste sentido, o projeto tem como necessário o aprofundamento da inserção do território, no caso São José do Norte e região, no circuito de consumo global e sua regulação através das demandas de um mercado globalizado. As medidas compensatórias teriam a pretensão de mitigar os impactos negativos tidos como aceitáveis e superáveis dentro do panorama socioambiental, e a sustentabilidade da atividade seria o foco das delimitações do projeto. Como superação das limitações socioeconômicas vividas pelo município vislumbra-se uma alternativa portadora de profundos impactos socioambientais para uma região muito sensível e território de populações tradicionais.
            Sustentabilidade, em geral, seria a capacidade de sustentar ou manter constante ou estável algo ou alguma situação no tempo, torná-lo perene. Esta frouxidão, infelizmente, dá margem a interpretações equivocadas ou parciais do termo, e estas possibilitam ações superficiais ou socioambientalmente injustas em nome da sustentabilidade. A complementação necessária do termo: sustentar o quê, para quem, quando, onde, por quê, por quanto tempo, referente ao Projeto Retiro denuncia o caráter exclusivamente mercantil do empreendimento. A simples reflexão sobre os seus 21 anos de vida útil evoca a efemeridade do projeto, colidindo com as aspirações da comunidade de vida e comunidade de destino dos agricultores familiares do Primeiro Distrito de São José do Norte.
            O conflito socioambiental que se esboça entre agricultores familiares e poluidores contrapõe duas lógicas distintas: a lógica da permanência, da sucessão de gerações, da territorialidade, da identidade e do pertencimento, e a lógica mercadológica, pautada na velocidade e no descarte, no deslocamento de proveitos e na fixação de rejeitos, ou nas palavras de Porto-Gonçalves[3]:
[…] O meio ambiente é o lugar onde não só se produz mas também onde se mora. Considere-se  que todo processo de produção não só produz coisas a seres usufruídas mas também rejeitos que não circulam entre as fronteiras tal e como as mercadorias, como quer o livre comércio. Muitos dos rejeitos ficam e, assim, tornam-se parte do ambiente de quem fica no lugar, em benefício daqueles que só querem os proveitos que, geralmente, estão fora do lugar.
            Do mesmo modo que um projeto de vida útil tão curta impede que se possa construir planejamentos de longa duração – a despeito de seu caráter impactante –, efetivamente sustentáveis, este prazo de intervenção no local é suficiente para transformar e desfigurar o modo de vida tradicional das famílias que vivem na área almejada pelo empreendimento. O resultado óbvio, ao romper os laços que vinculam os agricultores ao território é formar um grupo, cada vez maior enquanto a atividade se desenvolve, de desplazados, sujeitos que tiveram cortadas suas raízes com os territórios aos quais pertenciam.
            O que entra em disputa é um modo de vida que tem se reproduzido, à revelia da promoção ou proteção estatal, durante gerações, e a proposta de desconstrução deste modo de vida para uma inserção no mundo globalizado. Um modus vivendi que adaptou-se e formou a natureza local, e uma atividade extrativa que promoverá profunda transformação da paisagem mediante entrega do território “com o mínimo de inconveniência e o mais rápido possível”.
            Assim, a sustentabilidade deve assumir um viés mais profundo e mais abrangente, vinculado à promoção de atividades equilibradas com vistas à conquista de uma vida digna. Deve também ser uma política emergente, formada a partir das bases territoriais, das pessoas mergulhadas na realidade concreta da vida que se quer sustentar (humana e cultural, e não-humana). Deve ascender do grupo de agricultores, os maiores interessados na vida, e não impostas por agentes externos cujos interesses pela região resumem-se ao quanto são capazes de acumular em menos tempo possível. Deve passar pelo projeto de “qual futuro quero para os meus” existente no núcleo de agricultores familiares de São José do Norte.
[1] Entre tantas definições possíveis, entende por Desenvolvimento Sustentável a iniciativa de naturalizar a mercantilização da natureza com vistas a alcançar um padrão de exploração ambiental, promovida pelos processos produtivos. que tenda a ser menos insustentável do que o atualmente praticado.
[2] ACSELRAD, Henri (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. 2.ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p.44.
[3] PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p.301.

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