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sexta-feira, 28 de agosto de 2015

SP: ‘Não há garantia alguma de que teremos água em janeiro’. Entrevista com Marzeni Pereira


Por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.
A crise no abastecimento de água em São Paulo continua bastante séria, ainda que menos propalada. Para recolocar o assunto em pauta, o Correio da Cidadania entrevistou Marzeni Pereira, ex-tecnólogo da Sabesp, justamente poucas horas depois de fazer a homologação de sua demissão. Em sua visão, a empresa tem condições técnicas de sobra, mas sua orientação ainda voltada aos lucros privados faz prevalecer, com anuência do governo, o que considera políticas “irresponsáveis”.
“Apesar de não ter aumentado os mananciais, não ter reduzido perda e não ter estimulado o reuso, a Sabesp teve uma política de aumentar a venda de água. Aqui está o problema: a curva de demanda ultrapassou a curva de oferta de água. Os mananciais não suportaram por causa disso. Qualquer estiagem um pouco mais prolongada provocaria – e se não fosse agora, seria um pouco mais para frente – a falta de água em São Paulo, em função da política de expansão da venda de água”.
Marzeni Pereira ainda discutiu uma série de questões pertinentes à crise, como a conivência dos meios de comunicação comerciais e a forma como os interesses eleitorais do governo do estado se colocaram acima da emergência de se debater a crise. Além disso, elenca outros interesses, típicos das cartilhas neoliberais, que tomaram conta da agenda de todos os governos e impedem um melhor tratamento dos problemas.
“Não é possível estarmos em pleno século 21 e termos perdas de 30%. Para isso, precisamos acabar com a terceirização no assentamento das redes de água e nas ligações entre os sistemas. Também é necessário que a Sabesp rompa com o cartel das empresas que vendem os materiais com os quais se constroem as redes, por exemplo, os fabricantes de PVC e Ferro Fundido”, criticou.
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A entrevista completa com Marzeni Pereira pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Segundo dados divulgados, pela primeira vez em 31 dias os níveis da Cantareira subiram – ainda que somente 0,1% – entre domingo e segunda-feira da semana passada, atingindo cerca de 19% da capacidade de armazenamento da represa. O que isso representa?
Marzeni Pereira: Houve uma estabilização, não um aumento. Aumentou 0,1% e agora caiu novamente. Está em 18,8%, só que esse número representa um índice 10,5% negativo. Estamos usando, na verdade, 10,5% do volume morto. Ainda há outro problema: possivelmente, já entraremos na segunda parcela do volume morto. No mês de julho do ano passado, começamos a primeira parcela. Neste ano, corremos o risco de começar o mês de agosto utilizando a segunda parcela.
Correio da Cidadania: O que avalia da atual situação do abastecimento de água, lembrando que muitos especialistas previram situações bem complicadas para esse estágio do ano, e também já projetando o verão?
Marzeni Pereira: Levando em conta a resposta anterior, ainda há dois agravantes. Temos menos água este ano do que no ano passado. Agora, temos cerca de 90% da água que tínhamos há um ano atrás. Outro problema é que nesse momento os lençóis freáticos estão mais baixos do que no passado. Com menos água nas represas e nos rios, há um rebaixamento do lençol freático. Isso provoca o que chamam “efeito esponja”. Ou seja, qualquer chuva que caia, ao invés de escorrer e encher os rios e represas, acaba infiltrando e recarregando o lençol.
Isso é um problema, pois não sabemos quando vai chover. Se as chuvas se atrasarem novamente, como aconteceu entre 2014 e 2015 (quando só choveu para valer entre fevereiro e março de 2015), teremos grandes problemas e possivelmente não teremos água até fevereiro. Não há nenhuma garantia de que teremos água em janeiro, por exemplo. Se não chover, como choveu entre 2013 e 2014, vamos entrar em um estado de catástrofe aqui em São Paulo. Não está descartado o colapso do abastecimento. Estamos muito pior do que nos dois últimos anos.
Existe apenas um fator favorável em comparação aos outros períodos: o consumo. Entre 2014 e 2015, o consumo, em função da estratégia do governo estadual para ganhar as eleições – pois não quis divulgar a falta de água e afetar sua agenda eleitoral – estava maior do que agora. Tanto que estávamos fornecendo por volta de 65 mil litros por segundo, de todos os sistemas. Hoje, tiramos cerca de 55 mil litros. Ou seja, mais ou menos 16% de diferença.
O consumo do Cantareira, por exemplo, nesse mesmo período no ano passado, estava próximo dos 25 mil litros por segundo. Agora, estamos em torno de 15 mil litros. Atualmente, a quantidade de água geral é menor do que no ano passado, alguns reservatórios têm mais água do que no ano passado, só que todos eles são reservatórios pequenos em relação ao Cantareira e ao Alto Tietê. Nosso maior reservatório é o Cantareira, seu volume morto é quase três vezes maior do que a totalidade do Guarapiranga. O pessoal acha que o Guarapiranga hoje tem mais água, mas não. Hoje, é no sistema Cantareira que há mais água, apesar de estar no volume morto.
Correio da Cidadania: O que pensa dos descontos feitos para a indústria? Afetaram, ou ainda podem afetar, a qualidade de vida da população ou os considera justificáveis?
Marzeni Pereira: Precisamos ponderar essa questão dos descontos para a indústria. Isso foi uma política adotada pela Sabesp em uma época que sua direção considerava haver um concorrente: os poços, muito utilizados pela indústria. A Sabesp decidiu ir atrás desses grandes consumidores que tinham poços de abastecimento alternativo e fez a proposta para que comprassem água dela e não a tirassem dos poços. Foi uma política implementada com muita ferocidade e urgência, no período em que Gesner Oliveira foi presidente da Sabesp, entre 2007 e 2010.
Esse processo é chamado de contrato de demanda firme e privilegia quem gasta muito. Foi feito com a intenção de que tais consumidores não usem mais os poços. Do meu ponto de vista, é um absurdo oferecer descontos para que um grande consumidor utilize toda essa água potável para fins não potáveis. É uma política que a Sabesp vem adotando durante o período que chamamos neoliberal.
Considero errada a política de aumentar a oferta e vender água a qualquer custo. Se considerarmos o universo do consumo de São Paulo, não é muito representativo. É imoral, mas não muito representativo. Não significa que são os grandes consumidores que estão trazendo problemas de alto consumo, mas os grandes consumidores são parte de uma política da expansão da venda de água.
Apesar de a Sabesp e o governo do estado não terem aumentado a disponibilidade de água nos mananciais, ou seja, os mananciais mantiveram praticamente a mesma quantidade de água de 20 anos atrás, também não houve política consequente de redução de perdas nos últimos 20 anos. Na verdade, houve uma política muito moderada nesse sentido, sem a seriedade necessária. Também não há uma política de reuso de água de esgoto. Podemos dizer que nesse sentido as políticas são ridículas. Existem dentro da Sabesp metas de aumentar o Volume Utilizado (VU), o que para uma empresa voltada ao meio ambiente e à saúde publica não é nada razoável.
Resumindo: apesar disso tudo, de não ter aumentado os mananciais, não ter reduzido perda e não ter estimulado o reuso, a Sabesp teve uma política de aumentar a venda de água. Aqui está o problema: a curva de demanda ultrapassou a curva de oferta de água. Os mananciais não suportaram por causa disso. Qualquer estiagem um pouco mais prolongada provocaria – e se não fosse agora, seria um pouco mais para frente – a falta de água em São Paulo, em função da política de expansão da venda de água.
Correio da Cidadania: Diante disso, que análise você faz da gestão da Sabesp, em especial depois que começou a ser confrontada com a situação de escassez em paralelo a seus lucros?
Marzeni Pereira: Se a Sabesp não tivesse a ingerência do capital, a obrigação de aumentar lucro e arrecadação, teria dado conta da questão do abastecimento de água em São Paulo. Outro problema é que o discurso do governo, voltado para as eleições, também contribuiu. No ano passado, quando tivemos clareza de que o verão 2013/14 não proporcionou a quantidade de água que garantiria a segurança hídrica, a Sabesp elaborou um plano de rodízio para todo o ano de 2014, a fim de ter a garantia de que a água chegaria até 2015 e se, por exemplo, se houvesse menos chuva no verão de 2014/2015, haveria uma segurança mínima para garanti-la até o início de 2016.
Porém, em função das eleições, o plano não foi implantado no início do ano passado. Começou a ser implantado no meio do ano passado e de forma camuflada, sem divulgar que era um rodízio. Dizia-se que era redução de pressão e até hoje não se assume que tem rodízio. Em algumas regiões, o rodízio chega a ser 12 por 12: falta água por 12 horas e chega água por 12 horas. Em outros locais é até mais. Varia de região, de zona de pressão. Assim, a Sabesp teria condições de gerir a crise, não fossem as condições de ingerência, tanto do capital, para não haver redução de lucratividade, quanto do governo do estado, para não ter sua eleição prejudicada.
A Sabesp é a empresa mais preparada do Brasil para gerir o saneamento, tanto pelo corpo técnico que tem, quanto em relação à estrutura que nenhuma outra empresa do ramo tem no Brasil. Mas sua direção está destruindo seu próprio corpo técnico ao mandar muita gente embora, não contratar e não treinar novos profissionais. Preferem contratar empreiteiras, terceirizar e ir implementando aos poucos essa política nefasta do governo.
O governo do estado também tem essa visão de arrecadação. Ele próprio é um grande acionista e não coloca dinheiro na Sabesp e, sim, retira. Não vou dizer que retira tudo, mas parte do que lhe cabe como acionista, e isso é um problema. Para se ter uma ideia, nos últimos 11 anos, entre 2003 e 2014, a Sabesp distribuiu em dividendos 4,5 bilhões de reais. Se fosse uma empresa voltada para o saneamento e não para distribuir dividendos, teria um investimento muito grande no próprio saneamento só com esse superávit.
Porém, por não fazer o rodízio no início do ano passado, houve um outro plano implementado, o qual acho inteligente. Mas precisa ser assumido. O problema é que a Sabesp implanta um rodízio e não assume. Tem de assumir: “Sim, nós implantamos um rodízio e se não tivéssemos feito isso já teria acabado a água”.
O rodízio de horas que foi implantado agora, de fechar os registros entre 10 e 12 horas por dia, fez com que as perdas despencassem. Se, por exemplo, no setor de abastecimento já tivemos perdas de 30%, hoje pode ter caído para 20% ou 15%, pois durante a metade do dia não tem perda por vazamento. A política de redução do tempo de pressurização da rede contribuiu de forma significativa para reduzir as perdas. Por outro lado, inclui um risco de contaminação da rede.
O método de pressurizar a rede durante um período do dia e fechá-la durante outro período do mesmo dia é um método que penaliza menos a população. Por exemplo, foi falado que estava previsto um rodízio de cinco dias sem água e dois dias com água, mas o que acontece é um rodízio diário de três por um, em alguns locais. Nós temos uma parte do dia (6 horas) com água e três partes do dia (18 horas) sem água, o que equivale a seis dias sem água e dois dias com água. Fica 3 por 1, o outro seria 2,5 por 1. Mas o atual rodízio – 3 por 1 –, mesmo sendo mais drástico, penaliza menos a população, porque quem tem caixa d’água – e a maioria da população de São Paulo tem – acaba armazenando-a. Quem não tem, enche os baldes. Se fosse o rodízio de 5 por 2, a penalização seria muito maior.
Um dos grandes problemas do rodízio atual de 3 por 1 é danificar de forma brutal as redes, porque há uma variação de pressão e uma frequência muito grande. No período em que a rede está pressurizada, está com 50, 60 metros de coluna de água, em alguns locais até mais. Em outros períodos está com zero, ou seja, é uma variação de pressão muito grande ao longo de um dia, e isso detona a rede. Isso pode danificar toda a malha de abastecimento da Sabesp, se continuar por um período mais longo. É o processo ao qual chamamos de fadiga, pois provoca um desgaste nas redes.
Isso ainda não foi divulgado na mídia, e talvez seja divulgado pela primeira vez: a Sabesp pode vir a sofrer no próximo período, tendo que trocar toda a sua rede se continuar no sistema de fechar e abrir todos os dias. A fadiga aumenta e as redes podem estourar. O risco é maior onde não tem sistema de admissão de ar e onde não tem ventosa.
Correio da Cidadania: Quanto ao governo estadual, como avalia suas medidas, desde que a crise da água se iniciou? Houve um movimento na direção da melhoria dessas redes, de maior cobrança sobre a empresa?
Marzeni Pereira: Eu considero que o governo continua agindo de forma irresponsável e a mídia que o blinda é conivente ou até mesmo parceira na irresponsabilidade. O que está acontecendo? Há um novo crescimento do consumo em São Paulo. Já estivemos com 50 mil litros por segundo e estamos voltando às cifras de 60 mil metros por segundo.Tal consumo pode aumentar novamente no período mais quente.
Porém, não existe nenhuma garantia de que vai chover no próximo verão. E nem estou dizendo que não vai chover, não é isso. Estou torcendo para chover. Mas não existe a garantia. Ninguém sabe dizer se vai ou não chover daqui a dois ou três meses. Na incerteza, o que deve ser feito? Deve-se agir com precaução. Essa é que deveria ser a política. Quando o governo fala que não vai faltar, está dizendo para a população ficar tranquila, que pode gastar a vontade. Não tem sentido nenhum dizer que não vai faltar água e, ao mesmo tempo, estimular a economia.
Por outro lado, precisa ser muito aliado, muito parceiro, como a mídia comercial, para esconder que o governo está sendo irresponsável com a situação atual. Imagine que nós estamos entrando na segunda parcela do volume morto do Cantareira. Entre setembro e novembro vai ser reduzida a vazão do Cantareira de 15 metros cúbicos por segundo – a de hoje – para 10.
Os outros sistemas vão ter de socorrer o Cantareira, mas já estão precisando de socorro também. O Alto Tietê, por exemplo, que tem menos água do que no ano passado, vai precisar socorrer o Cantareira. E como vai socorrer o Cantareira se não tem água? O Guarapiranga é um sistema pequeno, aumentaram seu tratamento, mas não sua capacidade de reserva. O problema não está no tratamento, está na represa que não tem capacidade, é pequena.
Portanto, não dizer para a população que a crise não passou, não dizer para a população que ainda há risco de colapso e existe um risco de contaminação da rede onde ela está sendo abastecida, é um crime. É um absurdo não dizer isso. No mínimo, o governador do estado de São Paulo deveria ser processado. Porque aqui há um crime ambiental, um crime de saúde publica e um crime de responsabilidade, todos em curso, e como ninguém fala nada? Ou, quando se fala, vemos a mídia soltar as notícias do clima antes, vinculando a crise do abastecimento apenas à falta de chuvas, de modo simplista. É um desserviço.
Correio da Cidadania: Além das questões administrativas referentes a São Paulo, você afirmou em entrevista de 2014 que a crise se devia também ao modelo de desenvolvimento e consumo, em especial ao agronegócio. Nesse sentido, o que pensa da forma como se pauta o assunto diante do público?
Marzeni Pereira: Cada vez mais o agronegócio brasileiro está aumentando sua fatia na economia e cada vez mais ganha força nos organismos políticos, especialmente no Congresso Nacional. E cada vez mais flexibiliza a legislação ambiental, veja o código florestal que sofreu um retrocesso.
Eu andei pesquisando e encontrei um dado muito interessante tirado do Ministério da Indústria e Comércio, no qual segundo os dados de exportação, apenas em 2013, com quatro produtos – carne, soja, milho e café – o agronegócio brasileiro exportou o equivalente a 200 trilhões de litros de água, ou 100 anos de abastecimento de água aqui da região metropolitana de São Paulo. Só para ter uma dimensão desses números: foram mais ou menos 200 sistemas Cantareira exportados em 2013 só com essas quatro commodities. É absurdo tamanho consumo e a liberdade que se tem de exportar mercadorias que têm um alto custo ambiental e que com certeza trazem consequências para as populações da cidade e também para as populações indígenas e ribeirinhas. O agronegócio, quando faz o uso da água, não apenas a utiliza, mas a envenena. Logo, quem se serve dessa água acaba envenenado.
O custo ambiental do agronegócio é muito alto e o seu retorno é muito pequeno. A quantidade de emprego que gera é muito pequena. Só dizer que traz divisas para o país é mero artifício contábil. E daí que a balança comercial foi favorável? No meu ponto de vista, o agronegócio não é benéfico. Precisamos fazer uma discussão séria sobre o agronegócio, o que traz de benefícios e de malefícios. É importante para o país.
Correio da Cidadania: Quais as perspectivas para a população a médio prazo? Quais políticas devem ser empreendidas pelos governos, de quaisquer esferas, para que o problema da água seja contornado?
Marzeni Pereira: A curto prazo é o seguinte: a população vai ter de continuar economizando água. Apesar de o consumo doméstico girar em torno de 8% no Brasil, teremos que economizar. Agora, ninguém discute a economia da indústria ou da agricultura. Só se fala nos 8%; dos 92% restantes ninguém fala. Mesmo assim, acho importante que os 8% economizem. A região metropolitana de São Paulo, por exemplo, consegue preservar a água por mais tempo se economizar.
Outro fator é que temos de torcer para chover, pois se não vai complicar. Mas isso por si só não basta. É preciso uma política agressiva de coleta, tratamento e uso da água da chuva. Aqui em São Paulo temos um potencial de coleta de água de chuva de 15 mil litros por segundo (média anual, entre outubro e março conseguimos coletar muita água de chuvas, só que em períodos secos se coleta bem menos). É a cifra usada pelo Cantareira hoje.
Assim, imagine se há um programa de coleta de água de chuva liderado pela Sabesp – não adianta cada um fazer na sua casa, pode haver problemas de contaminação e epidemias. No curto prazo, poderia ser implantado o projeto de coleta e tratamento de água de chuvas, ou seja, o próprio governo teria de incentivar, com técnicos, grana, projetos, atendimentos. Daí seria possível fazer uma boa coleta no curto prazo.
Para termos uma ideia, o mês que menos chove fica em torno de 40mm. Em uma casa de 100 metros quadrados, é possível coletar por volta de 4 mil litros em um mês, o que daria água por uns 15 dias para os residentes. Infelizmente, tal projeto não é do interesse da Sabesp, afinal, como ficaria sua arrecadação? Dessa forma, a razão mercadológica impede que o governo faça uma campanha séria; prefere correr o risco de entrar em colapso do que tocar um projeto como esse.
No médio prazo, teremos de exigir a reestatização da Sabesp e colocar o saneamento sob o controle da população. Isso é essencial para a população. Sem dúvida, para nunca mais voltarmos a passar por uma crise como essa, mas o problema é: vamos continuar cometendo os mesmos erros? Arrecadando dinheiro com saneamento e entregando para os acionistas e para a iniciativa privada?
Esses recursos arrecadados com saneamento têm de ser reaplicados em saneamento. Está acontecendo na França, onde está se reestatizando e remunicipalizando o saneamento. Vários municípios franceses tinham o saneamento privatizado e eles retomaram uma parte significativa. Inclusive em Paris, onde a arrecadação do saneamento não era reinvestida. Retomaram e até reduziram a conta, o inverso daqui, onde, somando os reajustes que já tivemos em 2015, houve um aumento de 22,7% na conta de água. E a Sabesp está prevendo um novo aumento de tarifa. Isso com a inflação em torno de 10%.
Por outro lado, não podemos simplesmente reestatizá-la e colocá-la na mão de um governo financiado por grandes corporações, principalmente em períodos eleitorais, seja do partido que for. Precisamos, além de estatizar, criar mecanismos para que a população tenha acesso e controle à gestão da empresa. Não tem sentido a população pagar coleta de esgoto para ser jogado de qualquer jeito, sem tratamento, no córrego mais próximo. A população paga para coletar e tratar, não para afastar simplesmente. Nem metade do esgoto é tratado em São Paulo, mas pouca gente sabe. A médio prazo precisamos pensar nisso.
Também é preciso reduzir as perdas de médio prazo. Não é possível estarmos em pleno século 21 e termos perdas de 30%. É um número muito alto e é possível reduzir. Para isso, precisamos acabar com a terceirização no assentamento das redes de água e nas ligações. Esse é um serviço específico e precisa ter gente especializada para que não cause tamanhas perdas. As empresas terceirizadas não treinam a mão de obra, o que causa uma série de erros fatais para o sistema de abastecimento.
Além disso, há uma rotatividade muito grande dos trabalhadores terceirizados. Enquanto um técnico da Sabesp fica 15 anos trabalhando, os terceirizados têm um período de contrato, de dois ou três anos. É um período de experiência e, quando ele começa a entender a coisa, acaba o contrato. É necessário acabar com a terceirização.
Também é necessário que a Sabesp rompa com o cartel das empresas que vendem os materiais com os quais se constroem as redes, por exemplo, os fabricantes de PVC e Ferro Fundido. Existe um lobby para as compras, mesmo havendo materiais que vazam muito menos. Um tubo de PVC tem uma emenda a cada seis metros; já um tubo de PEAD tem uma emenda a cada 100 metros – e essa emenda ainda é soldada e apresenta menos chances de vazar.
Correio da Cidadania: Para finalizar, de que maneira esse momento de terceirização e toda a crise na gestão da Sabesp e no abastecimento de água pode ser relacionado com as demissões?
Marzeni Pereira: Fui demitido da Sabesp no último dia 16 de março. Agora, recebi o aviso prévio e não homologuei porque discordava da demissão. Eles justificaram a demissão pela redução do fluxo de caixa. Realmente, houve uma redução de arrecadação, mas não foram os trabalhadores que causaram a redução do fluxo de caixa. Ela ocorreu em função da redução do consumo, que o próprio governo incentivou, necessária, porque há uma crise abastecimento.
Só entre 2014 e 2015 foram cerca de 600 demissões. Como o ano passado foi eleitoral, praticamente todas as demissões aconteceram agora, em 2015.
Eu, particularmente, recebi meu aviso prévio e minha demissão extraoficialmente no final do ano passado. A justificativa era a minha militância e meu ativismo em função da crise da água, com críticas ao governo. Já existia uma disposição da direção da empresa para me demitir. Eu e mais algumas pessoas estávamos visados para a demissão. No final do ano passado, recebi um telefonema dizendo que seria demitido. Mesmo com a minha militância, era reconhecido na Sabesp como um trabalhador sério, que fazia um bom serviço, sem titubear, sem meios termos.
Tenho clareza de que fui perseguido pelos meus atos. Dei várias entrevistas para mídias “alternativas” e a Sabesp tem um canal de pesquisa no qual tudo o que sai na mídia é rastreado, divulgado internamente e arquivado. Da minha entrevista ao El Pais em fevereiro deste ano, por exemplo, praticamente todos na Sabesp ficaram sabendo. E quase um mês depois eu fui demitido.
A meta de reduzir o quadro de funcionários da empresa vem desde 1995. Há dez anos, a Sabesp tinha cerca de 18 mil trabalhadores; hoje, estamos com menos de 14 mil. Há uma contribuição também do próprio sindicato. Temos um sindicato cuja direção está há muito tempo e trabalha como uma espécie de aliada do próprio governo e dos acionistas. Todo ano é colocado em acordo coletivo a demissão de 2% do quadro de funcionários. Esse ano demitiram 2% além dos aposentados e não há reposição de quadros. Portanto, no momento de crise a Sabesp vem demitindo e repassando os serviços às terceirizadas, que são justamente as empresas que financiam as campanhas eleitorais.
Há uma visão desses administradores neoliberais de que quem faz o serviço bem feito é o setor privado e não o público. Na realidade, o setor público pode fazer bem feito, basta fazer com seriedade e sem se submeter aos parceiros privados. O serviço que a Sabesp faz sem dúvida é muito melhor do que o serviço executado pelos empreiteiros. E outra: o serviço terceirizado ainda é mais caro, além de ter qualidade inferior. Precisamos colocar no papel. A política tanto da empresa quanto do governo é de redução de quadros, cada vez mais vão terceirizando, inclusive, as áreas-fim da empresa.
Voltando à questão do sindicato: houve demissão de 604 trabalhadores este ano e não houve a paralisação de um único dia. Fizeram um “acordo de paz” no qual o sindicato não faria greve, mas a empresa não demitiria mais. Foi dada a liminar que afirmava que nenhum trabalhador seria demitido até o fim das negociações e o sindicato se comprometia a não fazer greve. Mas a empresa já tinha demitido. Há uma conivência.
No ano passado, o sindicato fechou o acordo coletivo antes da data-base para não desgastar o governo, pois havia a possibilidade de fazermos greve nas proximidades da Copa do Mundo e num ano eleitoral. Foi feito esse acordo rebaixado no mês de abril, antes da data-base, em maio. Isso nunca havia sido feito. Sempre se fecharam acordos depois de maio, nunca antes. E foi assinada novamente uma cláusula que prevê a demissão de mais 2% do quadro técnico. Com isso, mais demissões estão previstas para setembro. Significa comprometer ainda mais o abastecimento de água.
Correio da Cidadania é parceiro editorial da EcoDebate na socialização da informação
in EcoDebate, 28/08/2015

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