No mesmo dia 20 último, quando foi publicado nesta página texto do autor destas linhas que, num de seus tópicos, relacionava problemas do desmatamento e de ângulos dos nossos métodos agropecuários com mudanças climáticas e perda da biodiversidade, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO-ONU) editava boletim em que seu secretário-geral, José Graziano da Silva, alertava: “O modelo de produção agrícola que predomina hoje em dia não é adequado para os novos desafios da segurança alimentar no século 21″ – mesmo sabendo que o número de pessoas que passam fome no mundo se reduziu em 100 milhões na última década e está hoje em 805 milhões no total.
A forma como estamos produzindo “já não é aceitável”, acrescentou ele. Porque não evita a degradação dos solos e a perda da biodiversidade – ambos essenciais também para as gerações futuras. E por isso tudo “precisamos de uma mudança de paradigma: sistemas alimentares devem ser mais sustentáveis, inclusivos e resilientes”. Até mesmo para que se possa enfrentar o problema das mudanças climáticas. E sem essa disposição serão afetadas a produção de alimentos, sua disponibilidade e a estabilidade de seus componentes – já que nesse âmbito todo “os solos, que abrigam pelo menos um quarto da biodiversidade global, são decisivos no ciclo do carbono”. A agroecologia, concluiu ele, é “uma forma promissora de avançar com a produção de alimentos de modo mais sustentável”.
Nos mesmos dias, no Fórum Mundial para a Agricultura e a Alimentação, em Berlim, o secretário-geral acrescentou ainda que não se pode esquecer que até 2050 precisaremos de “um aumento de 60% na produção de alimentos, 50% na geração de energia e 40% mais no uso da água” (altamente problemático no panorama atual) – sem falar no aumento indispensável na produção de biocombustíveis.
Também nesse artigo da última sexta-feira foi mencionado o estudo Radiografia das Pastagens, que trata de “atividades agropecuárias e aquecimento global (mitos e verdades sobre o CH4 e CO2), de autoria do médico veterinário Flavio Prada e da engenheira agrônoma Laura de Santis Prada. É um texto para o qual planejadores de governos, empresários do setor agropecuário e estudiosos do clima precisam voltar sua atenção. Porque enfatiza o problema de geração de carbono pelo gado bovino no País – temos 210 milhões de cabeças de gado em 160 milhões de hectares de pastagens.
Os autores do estudo fizeram uma revisão “de trabalhos publicados por pesquisadores de renome nacional nas áreas de anatomia e nutrição de ruminantes”. E demonstram que “os bovinos zebus (Bos indicus) eliminam 30% mais fezes que os bovinos europeus (Bos taurus), devido à maior capacidade de rúmen e ao tamanho do intestino”. Também porque “a digestibilidade é maior 15% no gado europeu”. Por isso “o gado zebu elimina mais CO2 (dióxido de carbono) e CH4″ (gás metano).
Lembram eles ainda que trabalho da Amazon Integrated Carbon Analysis alerta para “a intoxicação da floresta amazônica”, com enormes riscos para o meio ambiente – “a floresta emitiu 0,51 pentagramas de carbono, equivalentes a 510 milhões de toneladas de carbono, valor muito acima do esperado”. Com o forte avanço recente da pecuária em grande parte da Amazônia, a preocupação cresce, já que – como mencionado aqui algumas vezes – estudos da Embrapa mostram que cada boi emite 58 quilos de metano por ano (em seus arrotos e eructações); e que o metano é mais de 20 vezes mais prejudicial que o CO2.
O modelo pecuário brasileiro, afirmam os autores do estudo, com menor absorção de matéria seca nos alimentos e maior eliminação de fezes que no modelo europeu, é muito mais problemático, ainda mais que na Europa e nos Estados Unidos o modelo predominante é o do semiconfinamento, em que as rações podem ser mais equilibradas e dosadas – enquanto por aqui quase todo o plantel é de gado zebu ou azebuado, em pastagens não controladas, com variedades de gramíneas pouco adequadas e, por isso mesmo, acrescidas de insumos químicos que tentam compensar a deficiência em nutrientes. Só que, “quanto mais baixa a qualidade da forragem, maior a produção de metano pelo gado, o que obriga o pecuarista a gastar mais com alimentação de melhor qualidade”.
E mais, “o gado que pasta nessas áreas necessita constantemente de mineralização complementar: caso contrário voltam a aparecer as desnutrições, com vários tipos de patologias, diretas como ‘cara inchada’ ou indiretas por agentes anaeróbicos (botulismo). Nestas andanças, come mais, defeca mais e apresenta menor digestibilidade e metabolização dos alimentos consumidos; e rumina menos, pois perde muito tempo à procura de alimentos e água, para melhor digestão”.
Pode parecer esotérico, absurdo, inconsequente relacionar a carne da mesa de cada dia com mudanças climáticas; insustentabilidade de modelo agrícola ou pecuário; perda de biodiversidade; menor competitividade, nas exportações, com produtos concorrentes de outros continentes; segurança alimentar; distribuição de renda no mundo. Mas não há como escapar. A cada dia mais, a ciência e as instituições de âmbito mundial avançam por esses terrenos. Melhor que cuidemos logo, antes de sermos obrigados pela geografia política, pela economia global, por tudo.
O noticiário de cada dia nos mostra também que não há como pensar em vivermos isolados de tudo, cegos. A realidade nos assalta. Por mais difícil e incômodo que seja repensar tudo e mudar nossas práticas, teremos de fazê-lo, em todos os lugares, todos os momentos.
Repetindo palavras de uma instituição como a FAO-ONU e de seu dirigente máximo, “o modelo de produção agrícola que predomina hoje em dia não é adequado para os desafios da segurança alimentar no século 21 (…). Precisa ser revisto (…). Não é aceitável”.
* Washington Novaes é jornalista.
** Publicado originalmente no site O Estado de S. Paulo.
(O Estado de S. Paulo)
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