
A sensação de abundância de água gera a atitude de descaso para com ela. Quando falta, acorda-se para seu valor e toma-se consciência de sua importância vital. A hidroalienação começa a se dissolver quando a água torna-se um assunto devido à sua escassez ou devido ao seu excesso, que traz inundações. O cidadão se pergunta, então: se o Brasil dispõe de 12% de toda a água doce do mundo, por que ela falta na minha torneira ou na minha casa? Por que a infraestrutura para captar, transportar, tratar e distribuir a agua é desigual, cara, beneficia os que mais podem?
Para superarmos o hidroanalfabetismo e aprendermos a conviver de modo harmônico com a água são valiosas várias abordagens.
Precisa-se aprender que a água passa pelo nosso corpo e pelos corpos dos demais seres vivos animais e vegetais e que somos parte do ciclo integral da água. A instalação de balanças hídricas em museus de ciência e tecnologia, que pesem e mostrem a quantidade de água existente no corpo de cada pessoa, criança ou adulta, é um instrumento poderoso para despertar tal consciência.
Do mesmo modo, visitas guiadas a estações de tratamento de água são valiosas para que se perceba o investimento necessário para colocar a água num padrão de qualidade que a torne potável. Visitas a estações de tratamento de esgoto são úteis para perceber os custos de sua despoluição.
A observação de sistemas para captar água de chuva e de cisternas para armazená-la também é valiosa: ajuda a conceber modos de aproveitar de modo descentralizado a água que vem da atmosfera para finalidades úteis no cotidiano, tais como regar jardins e uso não potável.
É relevante aprender sobre as bacias hidrográficas e como se interconectam as águas superficiais e as subterrâneas. Conhecer o valor dos serviços prestados pela natureza quando há áreas de proteção de mananciais que facilitam a infiltração de água no solo e a formação de reservas subterrâneas. Cada vez que se perdem tais serviços ambientais, aumenta a necessidade de investir em obras de infraestrutura hídrica – reservatórios, aquedutos, estações de tratamento, o que encarece o custo da água.
Em nosso tempo de mudanças climáticas, o tema da água veio para ficar, pois ela é o elemento da natureza que responde mais diretamente a variações de temperatura. Eventos extremos de seca e inundação tornam-se mais frequentes e intensos. Conhecer também como as ilhas de calor que se formam sobre as cidades aumentam os riscos de inundações.
Na escala global, saber como funciona o ciclo da água na natureza e sua presença em estado gasoso, liquido ou solido, como evapora ou congela, ajuda nessa tomada de consciência. Isso envolve também saber sobre a formação e a movimentação de nuvens e chuvas e sobre o grande serviço prestado pela evaporação nos oceanos, que dessaliniza água de modo natural. Na escala de um continente como a América do Sul, é relevante saber como os rios voadores, as nuvens que se movimentam a partir da Amazônia, contribuem para as chuvas no centro oeste e no sudeste, e as conexões que existem entre as torneiras secas no sudeste e o desmatamento da Amazônia.
A abordagem econômica pode ser realçada ao se evidenciarem os prejuízos sofridos na indústria, na agricultura, nos transportes e na geração de energia quando falta água; e ao se valorizarem os serviços hídricos prestados gratuitamente pela natureza.
Nesse contexto das mudanças climáticas aumenta a imprevisibilidade, as séries históricas de dados de chuva e vazão tornam-se referências menos uteis e aumentam os riscos de conflitos entre os vários usuários da água (por exemplo, entre hidrovias x geração de energia; geração de energia x agricultura; agricultura x abastecimento humano). Tais conflitos tendem a crescer à medida que a população aumenta e a demanda por água também se expande. Aprender sobre os conflitos que ocorrem entre países, estados e municípios que disputam uma mesma água traz a dimensão social e politica.
Há, então, a necessidade de aprender como reduzir o consumo e desenvolver tecnologias que levem à redução de desperdícios. Os arquitetos, engenheiros e urbanistas podem projetar ambientes construídos e cidades que se relacionem de modo harmônico com a água e nos quais ela esteja integrada.
De especial importância é a hidroalfabetização de governantes – prefeitos e vereadores, governadores e deputados, presidentes, ministros e senadores, juízes e promotores – pois de sua consciência depende a formulação e colocação em prática de políticas e programas que levem a uma relação consciente da sociedade e dos cidadãos com a água.
É necessário promover a hidroconsciência e o conhecimento, a capacitação dos cidadãos, dos usuários da água, dos técnicos, dos gestores públicos e dos empresários.
Programas e campanhas de comunicação são parte relevante da hidroalfabetização. Jornalistas e comunicadores têm papel relevante na hidroalfabetização, assim como professores de crianças, jovens e adultos. Do mesmo modo, nas escolas e nas universidades, em cada disciplina o tema da água pode ser abordado com criatividade, de modo a despertar a curiosidade dos estudantes e a formar pesquisadores e cientistas hidroconscientes. Profissionais de todos os campos podem aplicá-la, intelectuais usar a razão para expandir e elevar a relação das pessoas com ela. Na ciência e na escala cósmica, saber como ela se apresenta nos demais planetas, cometas e corpos celestes traz a dimensão que une o macro e o micro, da água no universo àquela que existe no próprio corpo.
Por fim, os artistas podem usar a emoção e impulsionar a aprendizagem sobre a água na agenda cultural – na música, na literatura, no cinema, no paisagismo, na arquitetura e no urbanismo e sua importância para a saúde e o bem estar humano.
Para reduzir o consumo pode ser eficaz aumentar as contas para quem consome mais. Mas isso não necessariamente ajuda a formar a hidroconsciência daqueles mais abastados, para quem faz pouca diferença pagar uma conta normal ou o triplo dela. A hidroalfabetização precisa ir além da simples educação pelo bolso e buscar desalienar efetivamente os cidadãos em relação à agua.
Capacitar municípios para que conduzam com responsabilidade hídrica o planejamento e a gestão de uso e ocupação do solo, bem como seus sistemas locais de saneamento;preparar os estados para que tenham capacidade de gestão ambiental e de recursos hídricos, e de colocar em prática planos de contingência para quando elafaltar;integrar as instituições federais articuladasem todos os âmbitos da federação; formar pessoas capazes de formular e cumprir leis hidroconscientes.
Essas são algumas das abordagens que podem compor um programa holístico e transdisciplinar. Aprender esse bê-á-bá é essencial na hidro alfabetização, que por sua vez é parte da hidroconsciência. Pode-se saber soletrar, ler palavras, escrever, mas nãocompreender o seu significado. É necessáriodesenvolver uma visão orgânica de como a água flui no ambiente, para além de visões sistêmicas parciais e setoriais; ampliar a consciência da água como parte de um sistema hídrico, que por sua vez é componente vital de um organismo vivo, seja ele o corpo humano, uma bacia hidrográfica ou o planeta Terra. A hidroconsciência pode contribuir para formar novas atitudes e posturas coletivas e individuais que sejam mais responsáveis para com a água.
* Maurício Andrés Ribeiro é autor de Ecologizar, Meio Ambiente&Evolução humana.www.ecologizar.com.brecologizar@gmail.com
(O Autor)
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