“Queremos que se defenda a lei, nem que seja o princípio da razoabilidade, pois o chamado desenvolvimento, agora, já é explicitamente insustentável. Queremos que as empresas e os governos responsáveis por isso tudo tenham que pagar na justiça e tenham o destino que a história lhes reserva”. O desabafo é do biólogo gaúcho Paulo Brack, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Na sua visão, as licenças ambientais para a liberação das atividades nas hidrelétricas gaúchas continuam sendo emitidas “muito mais como uma decisão política do que com base em fundamentos técnicos e que deveriam respeitar os marcos legais da área ambiental. A ordem é atender as demandas econômicas mais imediatas”.
E acrescenta: “O licenciamento continua sendo forçado a avaliar os empreendimentos de forma isolada, caso a caso, e acaba entrando numa lógica esquizofrênica que consolida a maneira de atender, simplesmente, os ditames dos projetos governamentais e os interesses das empresas. O que vai se perder em biodiversidade parece não interessar mais. Os estudos de impacto consagram-se como uma grande formalidade, tremendamente tendenciosos e de baixo nível técnico, servindo apenas para assegurar a emissão de licenças. É um escândalo, que ninguém mais nega e acaba se tornando fato consumado”.
Paulo Brack é mestre em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos. Desde 2006, vem fazendo parte da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio e também representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – Ingá, no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS – Consema-RS.
IHU On-Line – Quantas usinas hidrelétricas o Rio Grande do Sul tem atualmente?
Paulo Brack – A Agencia Nacional de Energia Elétrica – ANEEL possui um banco de informações de geração que dá conta de que, aproximadamente, 75% da energia elétrica do Rio Grande do Sul provêm de hidrelétricas (mais de 5 mil MW), em quase 50 empreendimentos. Cerca de 70% são formados por Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs, que produzem até 30 MW. Algumas hidrelétricas são compartilhadas com o Estado de Santa Catarina e localizam-se no Rio Pelotas-Uruguai. A usina hidrelétrica (UHE) de Itá, que fica entre Aratiba (RS) e Itá (SC), é a maior de todas, gerando mais de 1.300 MW. O Rio Grande do Sul teve, até quinze anos atrás, sua energia elétrica baseada principalmente nas hidrelétricas da bacia Rio Jacuí. Agora a fronteira da hidroenergia se desloca, sem parar, para a bacia dos rios Uruguai e Taquari. No caso do rio Pelotas-Uruguai, que estamos acompanhando mais de perto, existem já quatro grandes hidrelétricas, em colar, no eixo do rio (Foz do Chapecó, Itá, Machadinho e Barra Grande). Sem falar em outras da mesma bacia que se localizam no Rio Canoas (SC), ou seja, Campos Novos, que opera há alguns anos, e Garibaldi, que recém recebeu licenças ambientais. Agora desejam liberar mais uma, a UHE de Pai Querê, colada à montante de Barra Grande.
IHU On-Line – Qual a real necessidade de cada uma delas?
Paulo Brack – Depende do modelo de desenvolvimento a que estamos nos referindo. A produção energética, no modelo atual, visa prioritariamente o crescimento econômico e a concentração, a reboque, do consumo desenfreado, principalmente do primeiro mundo. O setor elétrico, hoje, é dominado por grandes empresas privadas, algumas multinacionais do setor eletrointensivo de exportação de produtos com baixíssimo valor agregado (minérios de ferro, alumínio, cimento etc.). Estas questões são levantadas principalmente pelo professor Dr. Célio Bermann, do Programa de Pós-Graduação em Energia da USP, e pelo Dr. Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA. Eles afirmam que o benefício desta geração não é, necessariamente, para o povo brasileiro.
Além disso, Bermann destaca que poderíamos aumentar a eficiência energética no Brasil com o uso mais racional, e com a repotencialização das hidrelétricas já construídas, o que representaria um ganho de mais de 30% do gasto atual.
Fearnside, por sua vez, demonstra que a matéria morta no fundo dos reservatórios das hidrelétricas é responsável pela emissão de muita quantidade de metano e gás carbônico, que são os principais gases relacionados ao efeito estufa e ao aquecimento climático global. No modelo atual brasileiro, após 1998, temos a maior parte da produção de energia concedida a empresas privadas, o que favorece a visão de mercado na área. Ou seja, torna-se interessante ao mercado o uso de 100% dos nossos rios para a produção energética com ganhos econômicos a empresas, em parte estrangeiras. A ANEEL faz leilões de energia, emite concessões, o que significa também leiloar nossos rios. Infelizmente, acaba não interessando a este modelo o uso mais racional da energia e as questões socioambientais. Neste modelo não são contabilizados os verdadeiros impactos ou prejuízos, que são muitos, e, assim, a hidreletricidade torna-se mais “barata” e mais “competitiva” do que a energia solar e a eólica, que representam menor impacto.
IHU On-Line – Quem mais sofre as consequências das hidrelétricas no Rio Grande do Sul?
Paulo Brack – Dezenas de milhares de famílias foram e continuam sendo desalojadas no estado e, inclusive, daí surgiu em parte o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), a partir da última década de 1970. No Brasil, segundo o relatório da Comissão Mundial de Barragens , que admite entre 40 a 80 milhões de pessoas diretamente afetadas, e pelas estimativas do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB já teríamos, até hoje, mais de um milhão de pessoas expulsas de suas terras. Os planos decenais da Empresa de Pesquisas Energéticas – EPE do Ministério de Minas e Energia prevêem outras cem mil pessoas, obrigatoriamente, desalojadas. Neste valor, pelo menos 15% seriam povos indígenas.
No Rio Grande do Sul, se forem incluídos todos os projetos previstos de hidrelétricas (dez ou onze grandes hidrelétricas em série no Rio Uruguai), destacando-se a maior delas, a UHE Garabi (entre o Rio Grande do Sul e a Argentina), provavelmente teríamos mais de 50 mil pessoas afetadas. Isso é uma calamidade social.
No que se refere à biodiversidade, a catástrofe já está acontecendo, temos provas e vamos continuar a denunciar. Por exemplo, uma espécie de bromélia (dyckia brevifolia) do salto do Yucumã (Derrubadas, RS), abaixo das barragens do trecho do rio Uruguai, praticamente desapareceu e caminha para a extinção devido à alteração da vazão do rio. Estão destruindo também a biodiversidade da Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, patrimônio defendido pela Constituição, e as principais Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade (Ministério de Minhas e Energias, 2007). Estes projetos foram concebidos lá no governo militar, em 1977, e praticamente não sofreram alterações, e agora ganham força com o modelo atual que compromete o futuro do planeta. Esta visão vem sendo adotada pelos últimos governos do Brasil, tanto pelos programas Avança Brasil como pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.
IHU On-Line – Quais os principais entraves ambientais e sociais provocados pela hidrelétrica de Pai Querê, no Rio Pelotas?
Paulo Brack – A palavra entrave talvez não seja a mais apropriada. Eu diria danos. Neste caso, decorrentes da então quinta hidrelétrica, colada às outras quatro referidas anteriormente. Ela atingiria em cheio a Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, patrimônio mundial pela Unesco.
O muro desta hidrelétrica teria 150 metros de altura, e transformaria a área em um lago de águas comprometidas pela decomposição da matéria vegetal morta, desaparecendo florestas e um rio límpido e cheio de corredeiras, com rica fauna e flora aquática que vive em condições de habitats muito particulares. Poderiam desaparecer mais de duas dezenas de espécies de peixes de rios caudalosos, destacando-se peixes do grupo dos cascudos, somando-se a isso a destruição de florestas com Araucária, das mais contínuas ainda existentes e em boas condições de conservação do sul do Brasil. Os dados do estudo de impacto ambiental, apresentados recentemente, confirmam que mais de quatro mil hectares de florestas sucumbiriam com esta obra.
Teríamos, por exemplo, a supressão ou morte por afogamento, como ocorreu em Barra Grande, de mais de cinco milhões de árvores (200 mil araucárias), o que corresponderia a três vezes a arborização urbana de Porto Alegre. Da mesma forma estão em situação crítica de ameaça de extinção outras dezenas de espécies da flora, identificadas no local, e várias espécies da fauna terrestre. Este é o caso do puma, da jaguatirica, do queixada (espécie de porco do mato restrito à área, no RS), do gavião-de-penacho, do urubu-rei, entre outros.
No que se refere à população humana, nem sempre os dados apresentados pelas empresas são confiáveis, mas o EIA-RIMA (estudo e relatório de impacto ambiental) dá conta de 334 famílias. Em Barra Grande, onde foram atingidas mais de 1200 famílias, o MAB admitiu que as empresas subestimaram o valor total.
Em geral as empresas não contabilizaram pessoas sem escrituras reconhecidas e os posseiros. As informações são disponibilizadas basicamente pelas empresas e o governo se baseia nelas, sem fazer uma checagem, pois isso requer vontade política e não interessa às metas do crescimento.
IHU On-Line – Como o senhor relaciona a hidrelétrica de Pai Querê e a de Barra Grande?
Paulo Brack – Barra Grande foi baseada em um estudo de impacto ambiental profundamente irregular, realizado pela empresa Engevix, uma das que mais constrói barragens no Brasil, o que gerou uma multa de 10 milhões de reais emitida pelo Ibama. A empresa recorreu, e passou incólume, como, em geral, acontece com as empreiteiras no Brasil. As irregularidades foram reconhecidas, além do Ministério de Meio Ambiente, pela justiça. Para dar permissão para a continuidade da obra, em setembro de 2004, foi elaborado um documento, chamado Termo de Compromisso (TC) de Barra Grande , assinado pelo governo, as empresas e a justiça, com alguns condicionantes, infelizmente não cumpridos até agora.
O dano de muitas hidrelétricas é irreparável. Em Barra Grande foram perdidos seis mil hectares de florestas, que representavam um corredor único entre a floresta do Alto Uruguai e a floresta com Araucárias. As imagens do Google Earth denotavam uma enorme mancha verde-escura que eu tive a oportunidade de ver, no local.
Em janeiro de 2005, fiquei surpreendido quando, na desembocadura do rio Vacas Gordas com o rio Pelotas, deparei-me com uma das matas mais exuberantes que havia visto. Olhava para todos os lados e via só florestas, com um porte impressionante. Olhava para baixo e via águas cristalinas, correntes e rasas, povoadas de diferentes tipos de peixes de corredeiras. Uma série de plantas raríssimas e restritas àquelas condições. E sentia que isso tudo ia se acabar. Depois vi a beleza das corredeiras do Parque Municipal de Encanados, que era um cartão postal de Vacaria, ser condenada à morte. Não conseguia entender e também não tinha ideia de que em Pai Querê poderia ser uma situação semelhante à de Barra Grande.
Outra desgraça premeditada, como parte de uma grande calamidade que ameaça de colapsar a biodiversidade da bacia do Rio Uruguai e transformá-lo em uma mera escada de lagos, fatiados por concessões a empresas que não param de crescer. Também não tinha a ideia de que a avalanche de hidrelétricas, concebidas há mais de 30 anos, apenas estava começando. A triste ironia deste processo é que a Camargo Corrêa, uma das proprietárias e empreiteiras responsáveis pela construção de Barra Grande, exibia no local da obra alguns cartazes, com sua certificação ambiental ISO 14.001 e placas que diziam “cuide do meio ambiente” e “preserve a flora e a fauna”.
E a BAESA, consórcio da obra, fez de conta que resgatou a vida da bromélia-dos-lajedos (dyckia distachya), abrindo clareiras na beira da barragem e tentando criar um ambiente artificial para que esta espécie ameaçada e endêmica do trecho do rio pudesse continuar vivendo. A bromélia até pode continuar fora de seu habitat, mas não se sabe por quanto tempo porque as populações devem ser numerosas e com variabilidade genética, o que não foi o caso. Este “privilégio” sequer atingiu outras tantas espécies restritas às condições descritas aqui, provavelmente em vias de extinção, fato que contraria o artigo 225 da Constituição Federal, que não permite que se coloquem em risco de extinção as espécies de nossa flora e fauna. Queremos que se defenda a lei, nem que seja o princípio da razoabilidade, pois o chamado desenvolvimento, agora, já é explicitamente insustentável. Queremos que as empresas e os governos responsáveis por isso tudo tenham que pagar na justiça e tenham o destino que a história lhes reserva.
IHU On-Line – Quais as principais irregularidades, contradições e questões que ficaram pendentes, depois de cinco anos de emissão da licença?
Paulo Brack – As pendências de Barra Grande foram várias. O governo federal não faz questão de cumpri-las, apesar de muitas tentativas de técnicos do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama. A primeira, é que o TC de Barra Grande colocava a obrigatoriedade de uma avaliação ambiental estratégica ou integrada (AAI ) da bacia do Rio Uruguai, antes de dar continuidade ao licenciamento dos demais empreendimentos. Isso foi feito, às avessas, pelo Ministério de Minas e Energia.
Foi criado um documento, praticamente encomendado, pelo setor da produção de energia hidrelétrica, realizado por companhias consultoras que prestavam serviços às empresas hidrelétricas. Como era de se esperar, consideraram viáveis todos os empreendimentos previstos, agregando, porém, algumas mitigações. O Ministério do Meio Ambiente considerou o estudo inadequado e insuficiente, vindo a solicitar outro, que foi coordenado pelo prof. Dr. Rafael Cabral Cruz, da Unipampa, juntamente com pesquisadores da UFSM, chamado FRAG-RIO Uruguai.
Este estudo é de alto nível e responde, de forma inteligente, a este processo. Por exemplo, o estudo aponta que para se garantir a sobrevivência de peixes, como o dourado e o surubim, devem ser mantidos pelo menos 80 km de rio sem barramentos. Ou seja, o trabalho reforça a visão necessária de uma avaliação prévia global da bacia bem como a necessidade de trechos de rios livres de barramentos, levantando as grandes fragilidades socioambientais de cada trecho, com destaque à área de Pai Querê. Estes itens deveriam estar, sempre, em primeiro lugar em relação às regras de mercado. Lamentavelmente, o estudo foi criticado de forma meramente política e sem critérios científicos pela senhora Márcia Camargo, assessora do Ministério de Minas e Energia e que estava afinada à ex-ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Resultado: por colocar em dúvida algumas obras do PAC, o estudo foi enfraquecido e, pelo menos temporariamente, deixado de lado.
Também foram afastados do processo de licenciamento, ou colocados na “geladeira”, alguns dos técnicos mais sérios do Ibama, que acompanhavam o projeto de Pai Querê. Em relação às outras pendências do TC, destacamos aqui a obrigatoriedade na criação do Corredor Ecológico do Rio Pelotas-Uruguai, que foi proposto por técnicos do Ministério do Meio Ambiente denominado como Refúgio da Vida Silvestre do Rio Pelotas-Aparados da Serra. A ex-ministra da Casa Civil, o Ministro de Minas e Energia e o Presidente da República acabaram mandando engavetar a proposta até que seja garantida a emissão da licença ambiental para tocar adiante Pai Querê.
Quanto à área que deveria ser comprada para compensar o que se perdeu com Barra Grande (5.740 hectares), a BAESA depositou o valor em juízo, pois o Ibama não teve autorização do governo federal para definir que a área mais semelhante, e que deveria ser adquirida, seria justamente a área prevista para Pai Querê. E ficaram pendentes também os resultados do monitoramento da fauna e da flora bem como os programas para a garantia de sobrevivência das espécies ameaçadas. O MAB também reclama itens relativos ao não cumprimento de várias indenizações às famílias atingidas pela UHE de Barra Grande.
IHU On-Line – Como o senhor avalia, de forma geral, os estudos feitos antes da instalação de hidrelétricas no Rio Grande do Sul em relação ao impacto ambiental?
Paulo Brack – Apesar do esforço heróico de muitos técnicos do órgão federal (Ibama) – que analisa os trechos interestaduais ou o binacional do Rio Uruguai – e dos órgãos estaduais (FEPAM-SEMA e FATMA) – que analisam os rios exclusivos dos Estados – infelizmente, as licenças continuam sendo emitidas muito mais como uma decisão política do que com base em fundamentos técnicos e que deveriam respeitar os marcos legais da área ambiental. A ordem é atender as demandas econômicas mais imediatas. Existe uma “correia de transmissão”, de cima para baixo, a partir da cúpula dos governos, sobre a chefia do setor de licenciamento. O licenciamento continua sendo forçado a avaliar os empreendimentos de forma isolada, caso a caso, e acaba entrando numa lógica esquizofrênica que consolida a maneira de atender, simplesmente, os ditames dos projetos governamentais e os interesses das empresas. O que vai se perder em biodiversidade parece não interessar mais. Os estudos de impacto consagram-se como uma grande formalidade, tremendamente tendenciosos e de baixo nível técnico, servindo apenas para assegurar a emissão de licenças. É um escândalo, que ninguém mais nega e acaba se tornando fato consumado.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a condução do Ibama em relação às hidrelétricas no Estado?
Paulo Brack – O Ibama no Rio Grande do Sul tem uma equipe que se pauta por alta seriedade e cumprimento da lei. Conheço alguns técnicos do órgão e reconheço o grande esforço dos mesmos para fazer com que existam razoabilidade e ponderação de equilíbrio no processo de licenciamento. Porém, estão na mira do governo e a desmotivação e a desvalorização são evidentes. O desprestígio pode ser ilustrado quando o presidente da República, em mais de uma oportunidade, criticou o que atribui como um “excesso de zelo”, por exemplo, “com as pererecas” (BR 101) e “bagres” (Hidrelétricas do rio Madeira). O Ministério Público, o Tribunal de Contas e as ONGs também são alvos permanentes da crítica sistemática do poder Executivo, na área ambiental. Existe um superpoder explícito dos chefes dos executivos. Estes se colocam, muitas vezes, acima da Constituição, das leis e do poder Judiciário. Desestruturam o órgão ambiental, de forma deliberada.
A forma truculenta de se levar as obras do PAC, da infraestrutura pesada, enfraquece os órgãos ambientais, o que eu considero um esquema já coordenado, que deve ser combatido, urgentemente. Chegamos a ponto em que os técnicos dos órgãos ambientais são alvo indiscriminado de assédio moral por parte dos dirigentes políticos, nos âmbitos federal, estadual e municipal, e fica por isso mesmo… Acabo recebendo queixas frequentes por parte de técnicos dos órgãos ambientais das três esferas de Estado que vivem, cotidianamente, esta pressão psicológica, talvez, por eu ser membro do Conselho Estadual de Meio Ambiente – CONSEMA do Rio Grande do Sul e por fazer parte de uma ONG muito atuante, o INGÁ. Porém a gente, em geral, não tem provas e os técnicos têm medo de denunciar. Isso é revoltante. Os critérios técnicos tornam-se letra morta e o órgão ambiental transforma-se em um setor de mera chancela e de subserviência aos interesses puramente políticos e econômicos, como ocorria há algumas décadas.
Consagra-se a visão de que os rios e a natureza como um todo são também mercadorias. Existe uma reação em cadeia de desmoronamento da estrutura de Estado no que se refere à proteção ambiental. Um retrocesso de décadas. É uma guerra pelo crescimento econômico, e a qualquer preço. Isso se reflete em uma verdadeira guerra contra a própria natureza. Tal situação se aprofunda na época pré-eleitoral, inclusive porque muitas empresas, que fazem parte deste esquema imediatista, são doadoras de campanhas milionárias aos grandes partidos e a candidatos alinhados a esses governos. Isso é abominável.
IHU On-Line – Como o senhor avalia o tratamento dado pelo Ministério do Meio Ambiente às hidrelétricas no Rio Grande do Sul?
Paulo Brack – Tivemos a oportunidade de conversar com a atual ministra Izabella Teixeira, quando era secretária executiva do então ministro Minc, no final de 2008. Apesar de ela concordar com muitas de nossas ponderações, deu para sentir que estava sendo pressionada a continuar esse processo político de liberação célere e indiscriminado de empreendimentos no Brasil, para não afetar o núcleo do governo que tocava o PAC. Também tivemos um contato bem produtivo com técnicos do Ministério do Meio Ambiente, em Brasília, tratando destas questões. Inclusive, em 2005, conversamos com o ex-diretor de licenciamento do Ibama, Nilvo Silva, que tentou levar para o setor uma forma mais inteligente de avaliação ambiental estratégica das bacias, desenvolvida aqui da Fepam, quando em 2001 ele presidia o órgão. O método de análise facilitaria a avaliação posterior de cada empreendimento. Entretanto, a tecnocracia economicista odeia a inteligência e a razoabilidade na área ambiental. Ele foi forçado a se demitir e ir para o Quênia, representando o Brasil no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.
O outro diretor de licenciamento, que ficou em seu lugar, o também gaúcho, Luis Felippe Kunz Jr., foi demitido pelos mesmos motivos. O que chama mais atenção é que foi na gestão de Marina Silva, em 2007. Este diretor, corretamente, estava defendendo o ponto de vista dos técnicos do Ibama que queriam mais tempo para decidir a licença para as hidrelétricas do rio Madeira (Jirau e Sto. Antônio), em Rondônia, porque os dados denotavam grande impacto, principalmente em erosão e sedimentação no rio, e muitos riscos e incógnitas. Este é o quadro que ninguém mais pode negar. E, para finalizar, um dos técnicos do Ministério do Meio Ambiente me confessou que acredita que todos os argumentos mais legítimos na área ambiental não sensibilizam mais o governo federal ou os demais governos. O que poderia funcionar, segundo ele, era darmos muita visibilidade ao tema (manifestações), e recorrermos à lei, via Ministério Público.
IHU On-Line – Quais as consequências da ocupação de hidrelétricas para a bacia do Rio Uruguai?
Paulo Brack – O Rio Uruguai desapareceria como rio. O governo federal não fala disso, mas a construção de mais de dez hidrelétricas coladas desde oeste, São Borja (34 metros acima do mar) até o leste, São José dos Ausentes (900 m.a.m.) condenaria o rio à morte. Até agora mais de 30 mil pessoas foram afetadas pelas barragens já construídas, e outro número igual ou maior pode sofrer estes danos. As pessoas que perdem suas terras, o seu chão, podem ter transtornos e entrar numa espiral depressiva para o resto da vida.
Além disso, com a avalanche de hidrelétricas que nos querem impor, provavelmente centenas de espécies poderiam ser extintas, mesmo que isso leve alguns anos ou décadas. Mas o processo está em curso. Os índices de extinção mundial de espécies por ano (27 mil) já são mil vezes maiores que os naturais, segundo Edward Wilson. Com as hidrelétricas isso seria muito trágico.
Tenho enorme carinho pelo Rio Pelotas e o Rio Uruguai e prezo pela cultura dos gaúchos que contam e cantam a história da região. No norte do Estado, o Rio Uruguai se confunde com a história dos missioneiros e do Caminho das Tropas , no Rio Pelotas. É uma bela paisagem que está lá há milhares de anos. Meus pais me ensinaram a amar a natureza e respeitar todas as formas de vida. E tento passar isso para meus filhos, meus alunos e outras pessoas. Creio que muitos de nós, gaúchos, prezamos por tudo isso e nos emocionamos também com as músicas de Cenair Maicá, Noel Guarani e Pedro Ortaça que cantam as belezas do Rio Uruguai, das corredeiras, das florestas e da gente que povoa a beira deste nosso maior rio do Estado. Eu não quero acreditar que este desastre da morte do Rio Pelotas-Uruguai possa acontecer. É impossível acreditar que ninguém vai fazer nada para interromper esta insanidade.
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FONTE : (Ecodebate, 31/08/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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